4. Limites à liberdade de testar
A sucessão testamentária, no Brasil, teve sempre utilidade secundária e residual, não penetrando nos hábitos da população, como se vê na imensa predominância da sucessão legítima nos inventários abertos. São fatores desse pouco uso as exigências formais que a lei impõe aos testamentos, o custo destes e a aceitação social das regras legais da sucessão legítima. É imenso o fosso entre a preferência da doutrina jurídica especializada pela sucessão testamentária e a realidade social brasileira. Em seu grandioso Tratado de Direito Privado, Pontes de Miranda dedica um dos tomos à sucessão legítima e quatro à sucessão testamentária. Porém, em correspondência ao sentimento coletivo de apreço à sucessão legítima, fundada no princípio da igualdade entre os herdeiros, a Constituição (art. 5º, XXX) elevou o direito à herança ao status de direito fundamental. São dois os fins sociais principais da norma constitucional: o de impedir que o legislador infraconstitucional suprima totalmente esse direito e o de garantia de sua aquisição pelos herdeiros.
O testador exerce sua autonomia ou liberdade de testar de modo limitado quando há herdeiros que a lei considera necessários. Nesta hipótese, que é a mais frequente, sua autonomia fica confinada à parte disponível, não podendo reduzir a legítima desses herdeiros. Sua autonomia é mais ampla quando não há qualquer herdeiro necessário, podendo contemplar de modo desigual os demais herdeiros ou excluí-los totalmente da herança, quando destinar a herança a terceiros. Por ser instrumento de atribuição desigual da herança e até de exclusão desta é que a lei impõe à sucessão testamentária requisitos e formalidades substanciais.
Nos sistemas jurídicos, como o brasileiro, que asseguram a intocabilidade da parte legítima ou indisponível, reservando ao testador apenas a parte disponível, a primazia é da sucessão legítima, conferindo-se papel secundário à sucessão testamentária.
A prevalência da sucessão legítima tem longa história, em nosso direito, com início no ano de 1769, pela lei de 9 setembro, que integrou a Reforma Josefina, impulsionada pelo Marquês de Pombal, que substituiu o direito romano pelas regras de boa razão das nações civilizadas. A sucessão testamentária era prioritária no direito romano imperial e nas Ordenações Filipinas (Liv. 4, Tit. 86), que o seguiu. Como registrou Coelho da Rocha, o sistema testamentário romano assentava sobre dois princípios fundamentais e conexos: primeiro, a instituição obrigatória no testamento de um ou mais herdeiros universais; segundo, ninguém podia morrer “parte testado e parte intestado”. Ou seja, à sucessão da mesma pessoa não podiam concorrer os herdeiros legítimos e os herdeiros testamentários. Com a Reforma Josefina, os herdeiros legítimos necessários passaram à frente, concorrendo com os testamentários, desde que estes fossem contemplados nos limites da parte disponível.
A sucessão legítima preferencial inverte a primazia que se atribuía ao testador. Ao invés do autor da herança, principalmente quando testador, e do respeito à sua vontade, que era tida como norte de interpretação, a primazia passou para o herdeiro. O direito do herdeiro é o assegurado pela lei e não pela vontade do testador, que não pode restringi-lo, salvo nos limites admitidos pela lei.
O autor da herança não é mais o senhor do destino do herdeiro. Assim, a afirmação corrente de ser a vontade do testador o critério fundamental de interpretação do testamento perdeu consistência. A vontade do testador é levada em conta até o ponto que não comprometa a garantia constitucional do direito dos herdeiros (legítimos ou testamentários) e deve estar em conformidade com esse e os demais princípios constitucionais, notadamente o da função social do testamento e o da dignidade da pessoa humana. Essa deve ser a orientação que se deva imprimir ao art. 1.899 do Código Civil de 2002, em harmonia com o sentido da alteração havida em outros dispositivos, como o art. 1.848, que restringiram o poder quase ilimitado antes conferido ao testador.
No que concerne ao patrimônio, o testador está restrito à parte disponível, se houver herdeiros necessários. Decorre do sistema jurídico brasileiro atual, ante a garantia constitucional do direito à herança (CF, art. 5º, XXX) e a nítida opção do Código Civil de proteção dos herdeiros necessários, que as únicas cláusulas restritivas da legítima são as de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade (art. 1.848). Ainda assim, dependentes de justa causa declarada. Não pode o testador estipular outras, sob pena de incidirem em nulidade. Essa mudança de orientação legal responde adequadamente à preocupação da doutrina, quanto ao risco de tais cláusulas fraudarem ou diminuírem a legítima dos herdeiros necessários. Melhor andaria o legislador se excluísse de vez a possibilidade, ainda que limitada, de qualquer restrição à legítima, retomando-se a tradição do direito brasileiro anterior a 1907, que não as admitia.
A doutrina de Clóvis Bevilaqua da preferência da sucessão legítima sobre a sucessão testamentária, em seus comentários ao Código Civil, terminou prevalecendo na Constituição de 1988, que estabelece o direito à herança e não, genericamente, à sucessão. Ainda que o testador possa designar herdeiros testamentários, a finalidade da norma constitucional é a proteção dos herdeiros legítimos, necessários ou não. No art. 1.906 do Código Civil de 2002, o que não é objeto de destinação do testador, em relação à parte disponível, permanece com os herdeiros legítimos, que o adquiriram por força da saisine. A porção da parte disponível, não destinada pelo testador, continua sob suas titularidades.
Apesar da forte crítica de Pontes de Miranda à vedação ao testador de estipular tempo para começar ou cessar o direito do herdeiro, que qualifica como exótica e supérflua, o Código Civil de 2002 manteve a mesma regra do art. 1.665 do Código anterior. Fê-lo justificadamente, ante sua opção de tratamento preferencial ao herdeiro - inclusive o testamentário, de que se cuida - e consequente limitação ao testador, adequada à garantia constitucional (art. 5º, XXX) do direito à herança. A vedação legal não se estende ao legatário, que pode suportar termo inicial ou final para aquisição ou exercício do direito transferido.
Quanto às cláusulas restritivas, não há mais a discricionariedade que o direito anterior assegurava ao testador, o que reduziu a importância social dessas cláusulas. A profunda limitação ao testador tem por fito a mais ampla garantia de inviolabilidade do direito à herança, assegurada na Constituição, ou da legítima dos herdeiros necessários. Portanto, apenas em caráter excepcional, pode cláusula desse jaez restringir a legítima, desde que a justificativa convença o juiz de que foi imposta no interesse do herdeiro necessário e nunca para satisfazer valores ou idiossincrasias do testador. Ainda assim, continua atual a repulsa de Orlando Gomes a tais cláusulas, por ele consideradas insustentáveis quando recaem nos bens da legítima, porque esta pertence de pleno direito aos herdeiros necessários, que devem ser transmitidos tais como se achavam no patrimônio do de cujus. Perfilhamos a conclusão do autor de serem atentatórias da legítima expectativa convertida em direito adquirido, quando da abertura da sucessão. A proteção visada pelo testador transforma-se, frequentemente, em estorvo, antes prejudicando que beneficiando o herdeiro. Essas advertências fortalecem a necessidade de interpretação exigente e restrita da justa causa, imposta pela lei atual. Sob a dimensão constitucional, essas cláusulas limitativas constituem restrição a direitos fundamentais garantidos na Constituição, como o direito de propriedade (art. 5º, XXII), informado pela função social (art. 5º, XXIII), o direito de herança (art. 5º, XXX) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).