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O processo disciplinar por abandono de cargo.

Situações que afastam a demissão

30/10/2007 às 00:00
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O art. 132, inciso II, da Lei nº 8.112/90 contempla o abandono de cargo como causa de demissão, falta essa que se configura pela ausência intencional do servidor ao serviço por mais de trinta dias consecutivos, conforme preceitua o art. 138 do mesmo diploma legal.

O art. 140 do referido Estatuto, por sua vez, dispõe que, na apuração de abandono de cargo ou inassiduidade habitual, será adotado o procedimento sumário, previsto no art. 133 (com redação alterada pela Lei nº 9.527, de 10/12/1997), o qual deve ser concluído no prazo de trinta dias, a contar da publicação do ato que constituiu a Comissão Processante, admitida sua prorrogação por até quinze dias, quando as circunstâncias o exigirem.

Vê-se, aqui, a justa preocupação da Administração em reprimir, com agilidade, a acefalia do cargo, a descontinuidade dos serviços, o desamparo administrativo, e o conseqüente risco de danos ao interesse público.

É dever inerente ao cargo público a freqüência assídua e pontual ao serviço. Tendo o servidor faltado ao serviço por mais de trinta dias consecutivos, sem justificar sua ausência aos seus superiores, é dever da Administração perscrutar, por intermédio de processo disciplinar, se há interesse ou não do mesmo na prestação do serviço público.

Cabe à Administração o ônus da prova (princípio da gratuidade). Portanto, à Comissão Processante, designada pela autoridade competente, impõe-se a tarefa de envidar todos os esforços, a fim de demonstrar não só a materialidade da falta ao serviço, bem como a vontade consciente do servidor em dele se ausentar, ou seja, o animus abandonandi.

O Superior Tribunal de Justiça, analisando o MS 8.291/DF, referente ao Processo nº 2002/0041936-0, assim se manifestou sobre a questão: "A 3ª Seção desta Corte Superior de Justiça firmou já entendimento no sentido de que, em se tratando de ato demissionário consistente no abandono de emprego ou inassiduidade ao trabalho, impõe-se averiguar o animus específico do servidor, a fim de avaliar o seu grau de desídia." (cf. MS nº 6.952/DF, Rel. Min. Gilson Dipp, in DJ 02/10/2002)

Segundo entendimento de Francisco Xavier da Silva Guimarães, em sua obra Regime Disciplinar do Servidor Público Civil da União (Ed. Forense, 1998, p. 66), não é qualquer motivo que serve para justificar a ausência do servidor, do local de trabalho, por mais de trinta dias, só sendo aceitos aqueles que remetem a motivo de força maior, entendido, como tal, o obstáculo intransponível, de origem estranha, liberatório da responsabilidade.

É necessário, segundo o autor, para ilidir o abandono de cargo, uma efetiva dirimente de responsabilidade, com ausência de culpa, diante da inevitabilidade do evento. A sujeição do servidor a constrangimento eficiente sobre ele exercido, com o fim de lhe tolher a resistência ou cercear a manifestação de vontade, caso de coação ilegal, também constitui excludente de responsabilidade, por provocar estado psíquico que anula, inteiramente, o livre arbítrio.

As cópias das folhas de freqüência, juntadas aos autos pelo setor de recursos humanos, limitam-se a demonstrar a materialidade do período faltoso, dado exigido à aferição completa da conduta, mas que nada esclarece a respeito dos motivos pelos quais o servidor faltou ou foi forçado a faltar ao serviço.

Vê-se a Comissão, assim, na busca da certeza jurídica, obrigada a perquirir sobre a vida funcional e pessoal do servidor, no esforço de fazer prevalecer, com respaldo na ampla defesa e contraditório, a verdade real dos fatos.

Não se trata, como pensam alguns, equivocadamente, de ato de condescendência para com o investigado, mas de aplicar a lei dentro da realidade da natureza humana. A Comissão de Processo Disciplinar não representa, tão-somente, a Administração Pública; representa, acima de tudo, o compromisso dessa instituição com o Direito, com a verdade e com a justiça.

José Armando da Costa, em sua obra Teoria e Prática do Processo Administrativo Disciplinar (Ed. Brasília Jurídica, 3ª ed., 1999, p. 107), afirma que, "em qualquer quadra ou momento da vida, o ato de defesa não é apenas um direito natural ou constitucional, é bem mais que isso, revelando-se, insofismavelmente, como o esforço humano que enobrece o indivíduo e o reconhece como digno de integrar o processo que a humanidade lhe conferiu, além de configurar o traço mais proeminente e característico de toda uma civilização."

É forçoso reconhecer que, atualmente, um número cada vez maior de pessoas tem apresentado problemas físicos e psíquicos frente ao seu contexto social. Mesmo leigos, passamos a conviver com expressões como depressão, transtorno bipolar, dependência química, alcoolismo, anorexia, bulimia, esquizofrenia, assédio moral, assédio sexual, entre outros.

O fato é que o moderno conceito de saúde contempla não só o estado fisiológico do homem, mas também o seu estado interior, a higidez de seu estado anímico. Em sua obra Sindicância Investigatória: a técnica de apuração de irregularidades em torno do serviço público (Ed. Brasília Jurídica, 2005, p. 96), o professor Léo da Silva Alves menciona o incontestável pensamento de Frederico Nietzsche, citado por j. Alves Garcia, em seu livro Psicopatologia Forense: "Uma das descobertas mais importantes da ciência do século XIX é a de que o homem não tem um espírito, mas um sistema nervoso."

Frente à Comissão Permanente de Processo Disciplinar da Corregedoria da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, tivemos oportunidade de enfrentar diversos casos envolvendo o abandono de cargo.

Podemos afirmar que, em apenas cerca de 20% dos casos, restou demonstrada a falta de interesse do servidor em manter seu cargo público: alguns se dedicaram a outras profissões, outros a uma formação acadêmica mais especializada em outros Estados ou no exterior, e outros, por fim, ao comércio.

Tivemos, ainda, casos em que, por falha de comunicação entre os servidores e a Administração, houve dúvida, por parte daqueles, quanto à data de término da licença para trato de assuntos particulares, não ficando configurada a ausência intencional dos mesmos ao serviço, entendimento esse corroborado pelo próprio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, em acórdão publicado no Diário da Justiça de 28/05/1997, p. 11.003, referente à APC nº 4330096.

Todavia, em aproximadamente 80% dos casos, enfrentamos problemas mais complexos, envolvendo a saúde física e, principalmente, mental dos servidores. Daí a importância dos membros processantes terem ao menos uma noção básica das psicopatologias, porque esse conhecimento é fundamental para avaliação teleológica do comportamento da pessoa submetida à investigação disciplinar.

O conhecimento afasta vetustos preconceitos e viabiliza o justo entendimento da questão objeto de investigação, propiciando, ao final do procedimento, um julgamento firme e eficiente. Somente uma visão sistêmica, alicerçada não só no conjunto de normas, mas também sensível, numa interação orgânica e dialética, poderá detectar doença em uma conduta ao invés de desídia, dilucidando, com muito mais proficiência, o caso concreto sob apuração.

Quando um servidor faltoso, residente a uma quadra do órgão onde trabalha, alega não ter condições de se dirigir ao serviço por sentir que "dele está afastado por 1.000 quilômetros de distância", é preciso cuidadoso trabalho de apuração antes de qualquer pré-julgamento. Valem, no caso, consultas aos familiares, chefia imediata, amigos, médicos e psicólogos do órgão, médico particular (se houver), e à literatura médica, para melhor compreensão do problema que aflige o servidor.

Deparamo-nos com muitos julgados impondo ao servidor acometido de tais patologias a responsabilidade por seu estado de saúde e pelo seu tratamento. Na prática, verificamos a inviabilidade desse entendimento. Muitas vezes, o problema é negado pelo investigado e também por seus familiares. Daí, muitas vezes, não encontrarmos, nos registros médicos do órgão, qualquer alusão à doença psicológica/psiquiátrica por ele enfrentada anteriormente à irregularidade sob apuração.

A Lei Complementar nº 10.098, de 03/02/1994, que versa sobre o estatuto e regime jurídico dos servidores públicos civis do Estado do Rio Grande do Sul, dispõe, em seu art. 247, que é dever do chefe imediato conhecer os motivos que levam o servidor a faltar consecutiva e freqüentemente ao serviço, devendo, após constatar as primeiras faltas, comunicar o fato ao órgão de apoio administrativo da repartição, que promoverá as diligências necessárias à apuração da ocorrência, sob pena de tornar-se co-responsável.

Bastante louvável a iniciativa do Estado do Rio Grande do Sul, como forma de agilizar a solução da questão de forma eficaz, vez que, na maioria dos casos, os superiores hierárquicos e os colegas de trabalho, envolvidos com suas próprias e inúmeras responsabilidades, deixam passar ao largo eventuais problemas de origem psíquica que afetam um elemento de sua equipe.

Não é incomum, ao contrário, verificarmos, no ambiente de trabalho do servidor investigado, certa hostilidade em relação a sua conduta defectiva, sentimento esse que, de acordo com nossa experiência, só agrava o problema por ele enfrentado.

Investigações acuradas em relação à vida funcional e pessoal do servidor podem trazer à baila circunstâncias que justifiquem suas faltas ao serviço, por não lhe facultarem, naquele momento, conduta diversa: as chamadas excludentes de ilicitude.

A título de exemplo, mencionamos o caso de servidor que, contrário aos seus hábitos, passou a faltar ao serviço. Num primeiro momento, apurou-se que havia obtido outro emprego, em local próximo a sua residência, denotando possível descaso com o serviço público. Mais adiante, aprofundadas as investigações, detectou-se que o servidor não dispunha sequer de recursos financeiros para o custeio de sua locomoção até o seu local de trabalho, e que havia obtido outro emprego de forma a poder prover sua esposa, em estado de saúde terminal, com os remédios necessários à sua sobrevivência.

Nesse caso, temos configurado um estado de necessidade, que exclui o caráter ilícito, a antijuridicidade, do comportamento do agente (art. 23, do CP). No expressar de Goethe, "a lei é poderosa; mais poderosa, porém, a necessidade".

No caso de dúvida quanto à saúde mental do servidor, o Estatuto Federal prevê, em seu art. 160, o procedimento a ser adotado pela Comissão Processante, que deverá propor à autoridade competente que o servidor investigado seja submetido a exame por uma junta médica oficial composta por pelo menos um médico psiquiatra.

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O incidente de sanidade mental reporta a Comissão Processante a extremo estado de alerta. Infelizmente, não são raros os casos de servidores que se valem de atestados médicos duvidosos para eximir-se de sua responsabilidade e de eventual aplicação de penalidade.

Os médicos da junta oficial, se não declarados suspeitos pela defesa, deverão ser minuciosamente informados sobre todas as circunstâncias envolvendo o fato, e devem basear-se, no ato do exame, em quesitos formulados pela Comissão, após o crivo da defesa, e também nos quesitos formulados por esta, para melhor fundamentar sua conclusão. Ressalte-se, por derradeiro, que a Comissão, motivadamente, pode valorar a qualidade desta prova, solicitando ao perito os esclarecimentos que julgar necessários ou até mesmo determinar a realização de nova perícia (arts. 436 a 439 do CPC e art. 182 do CPP).

Observamos as Comissões Processantes jungidas, normalmente, às provas previstas no nosso sistema processual, mas, dado o dinamismo do universo jurídico, não tardará que o direito disciplinar adote, em seu procedimento, outras opções, tal qual o instituto jurídico oriundo do direito norte-americano, conhecido como amicus curiae (amigo da corte ou do tribunal).

Esse instituto, de matriz democrática, consistiria, no caso, na intervenção de terceiro desinteressado na demanda, a título de assistente da Comissão, com o fim de dar suporte técnico a questões complexas e qualificar o contraditório, permitindo aprimorar a legitimidade de suas conclusões. Dessa forma, poderia a Comissão, por exemplo, em casos relevantes, chamar aos autos um profissional especializado na área psiquiátrica, para opinar e prestar esclarecimentos sobre pontos duvidosos referentes ao estado de saúde mental do servidor investigado.

A Lei nº 8.112/90 não previu os procedimentos posteriores à obtenção do laudo pericial, mas a doutrina e a jurisprudência de nossos pretórios já se manifestaram nesse sentido. O Professor Léo da Silva Alves, em seu livro Prática de Processo Disciplinar (Ed. Brasília Jurídica, 2001, p. 378), preleciona que, constatado que a insanidade sobreveio à infração, o processo será suspenso, nos termos do art. 152 do Código de Processo Penal. Verificado, por outro lado, que o servidor era, à época dos fatos, incapaz de compreender a ação será declarado inimputável, como prevê o art. 26 do Código Penal.

Outra questão importante, não recepcionada pelo Estatuto Federal, refere-se à extinção da punibilidade pela prescrição, permanente o estado do abandono do cargo. Nesse caso, indica-nos a doutrina, como o Parecer AGU nº MF-10/99, de 09/12/1999, referente ao Processo nº 46040.007057/94-45, que o servidor deve ser exonerado ex officio.

Ressaltamos, ainda, outro tema, não dirimido pelo diploma legal in tela, palco de discutíveis decisões, referentes ao pagamento dos dias faltados pelo servidor. Se injustificada a ausência, e comprovado o animus abandonandi, certo é que o servidor tenha os dias faltados descontados de sua remuneração quando do acerto de contas decorrente de sua demissão.

Mas, tendo sido justificadas as faltas do servidor, e não havendo sido comprovada sua intenção em abandonar o cargo, comungamos, a despeito de opiniões contrárias, da decisão exarada pela 4ª Turma Cível do egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, em grau de apelação no Processo nº 2002.01.1.074088-6, firmando nosso entendimento de que o afastamento da pena de demissão pela justificação das faltas surte todos os efeitos, considerando-se o período faltoso como de efetivo exercício.

O raciocínio é simples. A partir do momento em que a Administração reconhece as faltas como justificadas, para efeitos de disciplina, o período correspondente é considerado como de efetivo exercício do cargo, computável para todos os fins de direito. Nesse sentido, também a APC nº 1-34480-2, da 3ª Turma Cível, Rel. Desembargador Lécio Resende, Diário da Justiça de 12/02/2004, p. 48.

Por fim, reconhecemos que os longos períodos de ausência do servidor trazem enormes prejuízos à regularidade dos serviços públicos, e, em tese, ensejariam sua demissão, mas não podemos descurar do espírito de justiça que norteia as relações humanas.

O direito de punir presume a culpabilidade. Afastada a responsabilidade disciplinar em razão de doença física ou mental do servidor faltoso, não cabe à Administração puni-lo, e, sim, dispensar-lhe um tratamento digno por intermédio do serviço médico e de recursos humanos do órgão. Havendo possibilidade de tratamento da doença, o servidor deve ser afastado até o seu total restabelecimento e reintegração às suas funções. Em caso contrário, deverá ser aposentado.

Dessarte, cabe às Comissões Processantes, ao tratarem do abandono de cargo, jamais olvidarem da oportuna lição do professor Washington de Barros Monteiro: "Realmente, como lembra Carbonnier, existem acontecimentos que ultrapassam as forças humanas; diante deles, as instituições jurídicas, concebidas para a bitola regular da vida corrente, devem ceder."

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Sobre a autora
Glenda Liz de Paula Warmling

presidente da Comissão Permanente de Processo Disciplinar da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, bacharel em Letras e Direito, pós-graduada em Direito Administrativo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WARMLING, Glenda Liz Paula. O processo disciplinar por abandono de cargo.: Situações que afastam a demissão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1581, 30 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10593. Acesso em: 19 dez. 2024.

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