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A atuação do Ministério Público na defesa do patrimônio arquivístico sob a guarda do Poder Judiciário.

O problema da eliminação e do acesso aos autos processuais findos

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01/11/2007 às 00:00

Resumo:


  • O Poder Judiciário deve conservar os processos judiciais findos de forma organizada para permitir o acesso público e a pesquisa histórica, em conformidade com a Constituição Federal.

  • A Lei 6.246/75 suspendeu a vigência do artigo 1.215 do CPC, que permitia a destruição de processos judiciais, sendo necessário uma lei federal específica sobre a matéria para revogá-la.

  • O Ministério Público tem o papel de promover a preservação do patrimônio cultural arquivístico, garantindo o cumprimento da legislação e a eficiente gestão dos documentos judiciais, podendo utilizar instrumentos como Recomendação, Termo de Ajustamento de Conduta e Ação Civil Pública.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Qual seria hoje nossa concepção acerca da inconfidência mineira e de seus protagonistas se os Autos de Devassa tivessem sido destruídos ou extraviados?

SUMÁRIO: 1. A RELEVÂNCIA CULTURAL DOS ARQUIVOS JUDICIAIS. 2. PROTEÇÃO LEGAL. 3. OS PROBLEMAS DOS ARQUIVOS JUDICIÁRIOS EM MINAS GERAIS. 4. A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. 5. CONCLUSÕES.

"No Brasil, a eliminação de documentos arquivísticos não causa espanto, já que, por infelicidade, as pessoas não consideram os documentos públicos como algo que lhes diga respeito. A perda desses documentos, portanto, não provoca nenhum sentimento de dor, como no caso do Palace. Do mesmo modo que a eliminação sumária dos registros pessoais esvaziou as experiências individuais dos sobreviventes do Rio de Janeiro, os cidadãos brasileiros têm suas existências minadas em todos os momentos em que os registros documentais de nossas instituições são (deliberadamente, ou por descaso) eliminados. Apenas um novo posicionamentos dos indivíduos para com sua história pessoal e para com suas relações com o poder público poderá modificar este estado de coisas, Do contrário, os inúmeros Palaces dos documentos públicos e privados continuarão a desabar desapercebidos, em silêncio, soterrando com eles o direito dos cidadãos de construírem sua própria história". (André Porto Ancona Lopez. As lições do Palace-II e os registros para a memória. Revista da Associação dos Docentes da Universidade Estadual de Maringá – ADUEM, 1998)


1. A RELEVÂNCIA DOS ARQUIVOS JUDICIAIS.

Até meados do século XIX, os hoje chamados e aclamados Inconfidentes Mineiros, que há mais de seis décadas haviam arquitetado um plano para libertar a Capitania de Minas Gerais do poderio do Governo Português, não passavam, aos olhos de grande parte da população brasileira, de um bando de criminosos oportunistas que haviam traído sua Rainha e, por tal razão, foram merecedores de penas exemplares, tais como o esquartejamento, o açoite em praça pública e o degredo para terras inóspitas. O próprio chefe da conjuração foi retratado por historiadores daquela época como uma pessoa inescrupulosa, ávida pelo poder, de conduta social pouco recomendável.

A verdade sobre a inteireza e a grandeza do movimento libertário ocorrido em Minas Gerais no século XVIII só começou a ser resgatada a partir da descoberta do processo criminal aberto contra os conjurados, processo este que ficou "metido em um saco verde", esquecido por quase um século na Secretaria do Império [01], no Rio de Janeiro, embora muitos pensassem que ele estivesse em Lisboa. Somente em 1894 é que o historiador Mello Moraes Filho obteve permissão para publicar o teor dos chamados "Autos de Devassa da Inconfidência Mineira", o que permitiu uma interpretação mais real e justa do movimento inconfidente.

Esta breve explanação serve para demonstrar – com um exemplo concreto e digno de nota - a importância dos processos judiciais findos como preciosas fontes de informação, cuja conservação deve ser assegurada em prol da mantença de nosso patrimônio cultural.

Qual seria hoje nossa concepção acerca da inconfidência mineira e de seus protagonistas se os Autos de Devassa tivessem sido destruídos ou extraviados? Teríamos o mesmo respeito e admiração por Tiradentes, que antes da descoberta dos documentos era ridicularizado e tratado como um verdadeiro pária ? Seria ele, hoje, considerado oficialmente o patrono cívico da nação brasileira?

Indiscutível, pois, a importância da preservação dos processos judiciais findos que são patrimônio público tanto no sentido administrativo quanto do ponto de vista cultural. Como depositária desse relevante patrimônio, incumbe à Justiça o dever de zelar por ele e propiciar o acesso a seus documentos, de modo a assegurar o direito à informação (art. 5º, XIV –CF/88), bem como cumprir o dever de preservar o patrimônio cultural (arts. 215 e 216 – CF/88), já que os processos sob a guarda do Poder Judiciário constituem elementos para o exercício da cidadania, bem como base de preservação da memória da sociedade.

Como salienta com propriedade Maria Thétis Nunes, em seu artigo intitulado A importância dos arquivos judiciais para a preservação da memória nacional:

Sem incursão nos arquivos judiciários será impossível retratar a evolução social brasileira, seus conflitos, seus problemas. Testamentos, inventários, processos criminais "revelando degradações ou paixões humanas"; a página negra da escravidão africana com seus horrores e crimes, a luta do escravo, individualmente ou nos quilombos e mocambos, demonstram os documentos, bem como a espoliação do índio pelo colonizador e sua resistência; a afirmação do patriarcalismo despótico dos donos do poder, a situação da mulher na sociedade patriarcal e suas tentativas de afirmação, a atuação da Igreja na vida social, a importância das irmandades religiosas, que os documentos nos revelam, representando o desejo, por parte do povo, de formar comunidades, de não se deixar reduzir a uma simples massa anônima e manipulada segundo os ditames da cultura dominante. Os documentos dizem que essas comunidades surgiram para tentar salvar a dignidade humana diante do cataclisma que foi a introdução do sistema colonial para os pobres. Por vezes a última dignidade como o direito a um enterro decente: muitas sociedades surgiram no Brasil para garantir o caixão para os sócios. Os documentos arrolados através do tempo contribuem para se acompanhar a evolução política do Brasil, a luta pelo poder entre os potentados locais e suas conseqüências, eleições e a corrupção que as revestiam, a formação das facções políticas, as relações de trabalho, o surgimento do sindicalismo. Fixação de negócios, problemas comerciais, partilha de terra e as lutas originadas, organização de indústrias, a decadência dos engenhos e suas conseqüências podem ser conhecidos através de documentos nos arquivos judiciais. [02]

Desta forma, a preservação dos processos depois que os mesmos cumpriram o seu objetivo imediato de busca de uma decisão judicial é medida que se impõe, uma vez que eles passam de "arsenal da administração da justiça para celeiro da história".

Com efeito, os documentos do Poder Judiciário têm papel fundamental em um processo de mais longa duração: o direito à memória. Eles devem, portanto, ser conservados e organizados de forma que possibilitem a pesquisa histórica. O direito à memória significa não só criar condições para os pesquisadores realizarem suas pesquisas, mas, também, para a sociedade constituir e reforçar sua identidade cultural. [03]


2. PROTEÇÃO LEGAL

Apesar dessa imensa importância para a memória nacional, o Código de Processo Civil, editado no ano de 1973, dispunha, em seu art. 1215, que os autos processuais poderiam ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado, findo o prazo de 5 (cinco) anos, contado da data do arquivamento.

A matéria suscitou grande polêmica por ocasião da tramitação do projeto do CPC no Congresso Nacional, sendo que o Conselho Federal de Cultura, através de ofício subscrito pelo Professor Sylvio Meira, manifestou sua absoluta reprovação à previsão de destruição de processos, merecendo destaque o seguinte trecho:

O valor histórico do documento só a posteridade dirá. Não podemos sacar no futuro, em matéria de valorização de documentos. Acresce que não apenas a História, conforme já salientei, se liga aos processos arquivados. Numa ação judicial de nossos dias poderão os vindouros investigar aspectos financeiros, econômicos, artísticos e outros, que se espraiam por todos os domínios da curiosidade humana.

...

O que procura o projeto em debate é, no entanto, um incêndio voluntário, de todos os processos, decorridos cinco anos. Entendo que deve ser sugerida uma substituição do artigo, por outro, em que se diga: ‘É vedada a destruição, por qualquer forma, de autos arquivados. Parágrafo único: O Poder Público, através dos órgãos competentes, organizará museus e arquivos judiciais, para preservação de todos o papéis e documentos que serão recolhidos depois de decorridos dez anos de encerramento do processo.’ [04]

Mesmo assim, o dispositivo, com sua redação original, foi aprovado. Absolutamente despropositado, ele possibilitava a eliminação sem maiores cerimônias de preciosas fontes de informação em um lapso temporal extremamente exíguo [05], comprometendo não só interesses privados de ordem processual como, obviamente, o direito coletivo à memória. Logo, não poderia tal artigo permanecer em vigência e não tardaram as reações do próprio governo para reparar o grave equívoco cometido contra o patrimônio cultural brasileiro.

O Ministro Aliomar Baleeiro, em manifestação publicada na Folha de São Paulo de 25 de junho de 1976, escreveu sobre o dispositivo legal em referência:

Graças a Deus, por escandaloso que pareça, foi louvável uma bruta ilegalidade cometida pelo Sr. Geisel quando, em 16.06.75, por mero ato do Executivo suspendeu, sem cerimônia, um dispositivo de lei do congresso, o artigo 1215 do novo Código de Processo, que permitia a qualquer escrivão tocar fogo, destruir mecanicamente ou por outro meio adequado, os autos judiciais depois de cinco anos de arquivamento. O ato do Presidente, crime de responsabilidade, poderia metê-lo num processo de ‘impeachment’, mas salvou o Brasil de imensos prejuízos nascidos de uma tolice legislativa, oriunda de projeto do Executivo que a inadvertência do Congresso converteu em lei. O pecado formal e benemérito já está corrigido, porque a Lei 6.246, de 07.10.75, suspendeu a vigência daquele asnático artigo 1.215 do CPC, sanando a falta de competência do Chefe da Nação para a providência drástica mas oportuna e inteligente.

Sei bem que a construção de um edifício a prova de fogo para o arquivo custa infinitamente mais que a matança dos nefastos e tenazes cupins. Mas a Nação não está tão pobre que não possa empregar uns poucos milhões nesta obra de investimento nacional, tanto mais quando gasta centenas de milhões, cada ano, em arapucas para repartições de terceira ordem em Brasília e por aí afora.

O edifício para um arquivo nacional não precisa ser edificado em mármore com frontaria de vidro fumê, móveis anatômicos etc. etc. Seus visitantes são austeros investigadores que aceitam até o piso de cimento e não se fatigam de ir a locais em rua de terrenos menos valorizados...

Como foi salientado pelo Eminente Ministro, a Lei 6.246, de 07 de outubro de 1975, determinou: Fica suspensa a vigência do artigo 1.215 do Código de Processo Civil até que lei especial discipline a matéria nele contida. Esta Lei, apesar de sintética, é de fundamental importância para análise de toda a temática envolvendo a preservação dos processos judiciais findos, uma vez que somente uma norma federal, que trate especificamente sobre a matéria, poderá dizer, eventualmente, da destruição física de autos findos.

Contudo, mesmo sendo evidente que somente lei federal poderia disciplinar a matéria, que é de cunho processual e cuja competência legislativa é reservada à União (CF/88, art. 22, I), vários Tribunais se arvoraram em legisladores e disciplinaram através de atos administrativos internos a destruição de processos, dando azo, mais uma vez, a perdas enormes para a cultura de nosso país.

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Em Minas Gerais, por exemplo, a Resolução 267/1994 da Corte Superior do TJMG autorizava a destruição de autos judiciais findos, argumentando que o arquivamento de tais processos constitui um dos mais tormentosos problemas da justiça, diante da impossibilidade de destinar espaços cada vez maiores para guarda de documentos forenses, com arquivos gigantescos e ineficientes, e que a inexistência de lei autorizando a incineração desses documentos, impunha a busca de solução pronta e eficaz, qual seja, um ato administrativo do próprio Tribunal.

Triste solução dada por quem tem o dever de assegurar o cumprimento das leis.

Já no Estado de São Paulo, em 1997 o Conselho Superior da Magistratura baixou o Provimento 556/97, autorizando a destruição de processos nos mesmos termos do que permitia o malfadado art. 1215 do Código de Processo Civil.

Indignada com a aberração, a Associação dos Advogados de São Paulo, em feliz iniciativa, impetrou mandado de segurança coletivo contra o ato, alegando violação aos arts. 22 e 133 da Constituição Federal e às Leis 8.159/91 e 6.246/75, mas o TJSP indeferiu a segurança pleiteada ao argumento de que o ato impetrado encerrava norma administrativa de organização judiciária e não padecia de qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade.

Aviado recurso ordinário, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão datada de 16 de abril de 2002, deu provimento ao apelo e reconheceu a flagrante ilegalidade do ato impugnado, que infringia frontalmente a Lei 6.246/75.

A ementa da decisão foi assim lavrada:

RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. DESTRUIÇÃO FÍSICA DE PROCESSOS. PROVIMENTO CSM 556/97. NULIDADE. Recurso ordinário conhecido e provido para declarar a nulidade do Provimento nº 556/97 do Conselho Superior da Magistratura, por sua flagrante ilegalidade. [06]

Paralelamente, o Procurador-Geral da República, atendendo a representação do Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal, inclusive pleiteando medida cautelar, que foi deferida nos seguintes termos:

RELEVÂNCIA DA ARGÜIÇÃO DE INCOMPATIBILIDADE, COM O ART. 22, I (COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO PROCESSUAL) E O ART. 48, CAPUT, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DE PROVIMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, QUE DISPÕE SOBRE A DESTRUIÇÃO FÍSICA DE PROCESSOS ARQUIVADOS HÁ MAIS DE CINCO ANOS – Manifesto perigo da demora. Medida cautelar deferida. (STF – ADIMC 1919 – SP – TP – Rel. Min. Octavio Gallotti – DJU 09.11.2001 – p. 00042)

Por ocasião da apreciação do mérito da ADIN, apesar de saber de antemão que o Recurso em Mandado de Segurança n. 11.824 havia sido julgado pelo STJ e que a decisão transitara em julgado, impossibilitando o julgamento da ação proposta junto ao Supremo Tribunal [07], a Ministra Ellen Gracie proferiu seu voto, por considerar de grande importância a matéria sobre eliminação de autos.

A Ministra fez um profundo estudo das normas envolvendo a conservação de autos findos e rechaçou a tese de que a Lei 8.159/91, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados, tenha autorizado a destruição de processos. Entendeu estar plenamente vigente a Lei 6.246/75, que remeteu a lei especial a disciplina da matéria.

Ademais, invocando lições de Pontes de Miranda, a Relatora sustentou a inconstitucionalidade de norma que autorize a destruição de processos judiciais arquivados exatamente pelo alcance constitucional do dever de preservação dos documentos de valor histórico e cultural, já que o Estado deve garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes de cultura nacional, dentre as quais estão os documentos dotados de valor histórico (arts. 215, caput, e 216, IV, da Constituição Federal).

Esse posicionamento merece ser registrado, visto que se encontra em tramitação no Congresso Nacional, já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, projeto de lei [08] que pretende autorizar a eliminação de processos findos, restabelecendo a vigência do descabido art. 1215 do CPC.

As decisões do STJ e do STF sobre a matéria tiveram uma repercussão extremamente benéfica para a preservação do patrimônio cultural brasileiro, sendo que vários Tribunais que haviam trilhado o mesmo caminho do Conselho da Magistratura de São Paulo revogaram ou suspenderam os efeitos de seus atos administrativos.

Em Minas Gerais, por exemplo, a Resolução 267/1994 teve seus efeitos suspensos em 28 de dezembro de 1998, pela Resolução 344/98.


3. OS PROBLEMAS DOS ARQUIVOS JUDICIÁRIOS NO ESTADO DE MINAS GERAIS.

Em Minas Gerais, onde as primeiras comarcas foram criadas no início do século XVIII, o acervo documental de valor cultural sob a guarda do Poder Judiciário é enorme. Basta uma rápida visita às dependências dos fóruns, principalmente das velhas cidades do interior, para se deparar com processos envolvendo lavras de ouro, escravos (compra e venda, fugas, disputas pela propriedade etc), embates políticos travados pelos antigos "coronéis", além de vários outros fatos sociais, econômicos e culturais importantes para a preservação da história de nosso povo.

Porém, são quase sempre críticas as condições de acondicionamento e organização desse precioso acervo.

Como é notório, desarquivar processos em tempo hábil em nosso Estado constitui-se uma meta difícil de ser alcançada, em decorrência da precariedade das condições e métodos de guarda e conservação adotados pelo Poder Judiciário. Quanto mais antigo é o documento procurado, maior é a dificuldade para a sua localização. A gestão de documentos arquivísticos é geralmente feita de forma mecânica e burocrática e os arquivos judiciais são como depósitos de papéis velhos, sendo o acesso às informações difícil não só para os cidadãos, como para os próprios juízes e membros do Ministério Público, embora seja prerrogativa destes últimos "examinar, em qualquer Juízo ou Tribunal, autos de processos findos, podendo copiar peças e tomar apontamentos" (art. 41, VII, da Lei 8.625/93).

Ademais, os documentos de valor histórico não recebem tratamento especial e, muitas vezes, perdem-se definitivamente.

Enfim, os documentos sob a guarda do Poder Judiciário são tratados, quase sempre, como um fim em si mesmos e não como um meio de acesso a informações que permitam o exercício da cidadania e a consolidação da memória e da identidade cultural da sociedade. E se a guarda e a conservação dos documentos têm sido feitas de um modo que dificulta o acesso ao seu conteúdo, os cidadãos estão sendo privados de seu direito à informação e também de outros direitos decorrentes do uso desses documentos como prova documental, perdendo estes a sua utilidade.

Como tentativa de minimizar os problemas enfrentados com a guarda e conservação dos processos findos, a Corte Superior do TJMG baixou a Resolução 252/1993, que autoriza a transferência de autos judiciais definitivamente arquivados para Museus Públicos ou entidades oficiais assemelhadas. Segundo a Resolução, nas comarcas onde exista Museu Público ou entidade oficial assemelhada, poderá ser autorizada, pelo Juiz de Direito Diretor do Foro, após ouvido o Corregedor de Justiça, a transferência, para essas entidades, dos autos de processos judiciais com decisão definitiva proferida há mais de 20 (vinte) anos, desde que por eles não se interesse a Superintendência da Memória do Judiciário Mineiro.

Tal ato administrativo, conquanto seja louvável no sentido de procurar assegurar a integridade dos processos judiciais findos, ao invés de simplesmente eliminá-los, implica, pelo seu teor, em uma definitiva e verdadeira alienação de um patrimônio cuja conservação é de responsabilidade do próprio Poder Judiciário. E pior: existem notícias de que alguns autos estão sendo encaminhados para instituições distantes de seus locais de origem, implicando em indevido deslocamento das fontes de cultura que devem, a princípio, ficar vinculadas aos locais onde foram produzidas.

Por isso, entendemos que, apesar de ser viável a transferência de processos judiciais findos para museus públicos e entidades oficiais assemelhadas, enquanto não criado Arquivo do Poder Judiciário com capacidade para administrar o seu acervo documental, o ato respectivo não pode redundar em uma verdadeira "doação" dos processos a outro órgão, uma vez que, nos termos do art. 10 da Lei 8.159/91 (que não contrasta com a Lei 6.246/75, que diz respeito tão somente à destruição de feitos), os documentos de valor permanente são inalienáveis e imprescritíveis.

E mais: sempre que possível, deve-se assegurar a mantença dos processos judiciais findos na própria comarca de origem, uma vez que, como bens culturais, os mesmos devem permanecer vinculados aos locais onde foram produzidos, por serem instrumentos de informação sobre a respectiva unidade judiciária.

A propósito, a conclusão de n° 11 da Carta de Santos enfatiza que: Os bens culturais não devem ser retirados do meio onde foram produzidos ou do local onde se encontram vinculados por razões naturais, históricas, artísticas ou sentimentais, salvo para evitar o seu perecimento ou degradação, devendo ser reintegrado ao seu espaço original tão logo superadas as adversidades. [09]

Outra preocupação que deve sempre estar presente nas hipóteses de transferência (sem alienação) do acervo do Poder Judiciário para outras instituições oficiais é a de impor formalmente ao ente destinatário dos autos processuais findos a obrigação de cumprir integralmente a Lei 8.159/91 e seus atos regulamentares, de forma a assegurar o alcance dos objetivos colimados por aquele diploma, tal como o direito de acesso à informação.

Sensível à temática atinente à preservação de seu patrimônio arquivístico, em iniciativa digna de aplausos, o TJMG, através da Portaria 1.543/2003, constituiu uma comissão para elaborar estudos sobre a forma de implantar, disciplinar e normatizar a gestão dos documentos e das atividades arquivísticas do Poder Judiciário do Estado de Minas Gerais, reconhecendo expressamente a necessidade de uma política integrada de classificação, avaliação, descrição e preservação dos documentos arquivísticos do Poder Judiciário e afirmando que a organização da documentação pública é indispensável para que cidadão possa ter acesso aos instrumentos de garantia de seus direitos.

Espera-se que esta Comissão cumpra cabalmente o papel a que se destina e promova efetivamente a preservação do relevante patrimônio cultural que se encontra sob a guarda do Poder Judiciário.

De qualquer sorte, há necessidade de uma mudança de postura do Ministério Público em relação à preservação dos processos judiciais findos, de forma que a instituição possa estar sempre vigilante em relação a esta temática e possa alcançar a proteção aos direitos estabelecidos pela Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional pertinente.

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Sobre o autor
Marcos Paulo de Souza Miranda

Promotor de Justiça. Coordenador da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais. Especialista em Direito Ambiental. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais. Autor do livro "Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro" (Belo Horizonte: Del Rey, 2006).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Marcos Paulo Souza. A atuação do Ministério Público na defesa do patrimônio arquivístico sob a guarda do Poder Judiciário.: O problema da eliminação e do acesso aos autos processuais findos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1583, 1 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10597. Acesso em: 22 dez. 2024.

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