INTRODUÇÃO
O estudo em debate aborda a embriaguez preordenada em seus aspectos psiquiátricos, sociológicos e jurídicos com fins de estabelecer paralelismo entre estes e a sua colocação no Código Penal.
O objetivo é demonstrar a inadequação da agravante genérica a ser aplicada ao agente que comete crime sob influência de substâncias psicoativas, tendo se colocado neste estado por espontânea vontade.
Nesses casos, entende-se que a ingestão desse tipo de substâncias caracteriza-se pela iniciação do iter criminis, sendo inserida na preparação.
A punibilidade para este agente é explicada pela teoria da actio libera in causa, considerando-se que o agente era livre ao tempo da ingestão de substâncias e por esse motivo quis e escolheu se colocar em tal situação para o cometimento da conduta delituosa.
A idéia a ser explanada é que o sujeito infrator de leis penais não possui grandes distinções se comparado às outras pessoas, mas pode haver em seu intelecto características que lhe direcionam mais facilmente ao crime. Significa dizer que o agente que se coloca em estado de embriaguez precisa libertar-se de algumas tormentas da consciência que lhe abordam quando sóbrio e que provavelmente lhe impediriam de agir de tal forma.
Assim, considerando-se ainda que o agente embriagado tem excluído de si, em maior ou menor grau, sua coordenação motora, reflexo, rapidez de raciocínio, precisão, agilidade física, entre outros, há que se constatar não ser essa pessoa mais reprovável em sua conduta do que aquele que percorreu todo o iter criminis em estado de sobriedade, possuindo em seu favor os detalhes expostos.
Não se pretende aqui apoiar a inimputabilidade do agente embriagado de forma preordenada, o que se defende é o descabimento da agravante a ele submetida. De nenhuma forma pode-se estabelecer que o agente embriagado é mais perigoso que o sóbrio, sendo que as circunstâncias que envolvem crimes são as mais diversas e a embriaguez geralmente atua em prejuízo do sujeito.
No segmento das explanações acima é o presente artigo que segue em desenvolvimento.
EMBRIAGUEZ PREORDENADA E A INAPLICABILIDADE DA AGRAVANTE GENÉRICA
Prima facie, deve-se analisar o que vem a significar de fato o agente embriagado. Sem maiores definições técnicas, tem-se por este a pessoa que possui a estrutura física e motora privada de sua capacidade normal de entendimento e posicionamento, de forma aguda, por espaço de tempo relativamente curto, causado por bebidas alcoólicas ou substâncias de efeitos análogos.
A embriaguez pode ser:
1.Não acidental:
a) voluntária: o agente deseja ingerir a substância que lhe causará a embriaguez, sem qualquer empecilho para isso;
b) culposa: o agente deseja ingerir a substância, mas não pretende embriagar-se. A embriaguez é derivada de culpa, muito embora o consumo da bebida haja sido espontâneo e consciente;
c) preordenada: o agente embriaga-se com fins de cometer uma conduta típica, a ingestão de bebidas se dá exatamente em razão da finalidade previamente planejada. Este é o objeto do nosso estudo.
2.Acidental:
a) Fortuita: derivada de caso fortuito, ocorre quando o agente embriaga-se sem o seu próprio consentimento, sendo que não a previu nem desejou. Aqui ocorre o erro e a ignorância, pois o sujeito desconhece os efeitos que tal produto pode causar-lhe ou mesmo a sua própria intolerância orgânica e
b) Forçosa: derivada de força maior, acontece quando o agente é impelido a ingerir a substância que lhe causará a embriaguez, sem que possa resistir. Nessa circunstância, é do seu conhecimento o efeito que lhe causará o consumo, entretanto, não é possível esquivar-se.
3.Patológica ou crônica: o agente embriaga-se ininterruptamente, não conseguindo voltar ao estado de sobriedade. Seu sistema nervoso é tomado por deformação, não mais sendo capaz de voltar ao estado normal. Na medicina, costuma ser equiparada a doença mental.
4.Habitual: neste estado o sujeito embriaga-se com habitualidade, mas a interrupção o faz voltar ao estado de sobriedade, isto é, os efeitos da intoxicação desaparecem com a eliminação do álcool do organismo.
Quanto aos efeitos, a embriaguez divide-se em:
1.Incompleta: a partir de 0,8g por mil de sangue;
2.Completa: até aproximadamente 3g por mil de sangue e
3.Comatosa: a partir de 4 ou 5g por mil de sangue.
II) A EMBRIAGUEZ PREORDENADA INSERIDA NO ORDENAMENTO PENAL
O art. 61 do Código Penal sistematiza a embriaguez preordenada como agravante genérica da pena, verbis:
"Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:
(...)
II - ter o agente cometido o crime:
(...)
l)em estado de embriaguez preordenada"
Diante da sistemática penal vigente, a embriaguez preordenada é caracterizada pela anterioridade em que o agente se coloca nesse estado para a prática do crime. Diz a melhor doutrina que insere-se dentre as agravantes genéricas exatamente devido ao espaço de tempo que o agente possui para preparar-se. O que faz a sua conduta ser mais agravada é o fato de ter a premeditação e, portanto, mais tempo para arrepender-se ou desistir de sua possível conduta.
A punição é explicada pela teoria da actio libera in causa, ou seja, ação livre na causa. Significa dizer que o agente possuía liberdade de ação antes de embriagar-se e se o faz é com conhecimento e vontade, caracterizando uma espécie de dolo adiantado. Aqui o sujeito possui plena saúde de suas faculdades mentais e potencialidade lesiva, sem qualquer alteração de seu estado fisiopsíquico, estando, portanto, em estado de imputabilidade. Nesse momento é que decide e planeja a conduta típica. Após, se coloca em estado de não-imputabilidade – embriagando-se – para enfim, executar o fato típico. Pode-se estabelecer um quadro temporal em que o agente em bom estado de consciência planeja o crime em todas as suas circunstâncias para após, embriagar-se e iniciar a execução do iter criminis já em estado de embriaguez. Para o Direito Penal, essa pessoa é culpável porque havia previsto ou lhe era possível prever a possibilidade do resultado. A responsabilidade do agente persiste uma vez que é transferida a condição pessoal de imputabilidade para momento anterior ao crime, já que no momento da execução e/ou consumação encontrava-se em estado de inimputabilidade por sua própria vontade.
O termo actio refere-se à conduta; libera indica o elemento subjetivo do sujeito antes da execução do crime e in causa expressa a conduta anterior responsável pela produção do resultado da conduta delituosa. Assim, tem-se um momento anterior à execução e à produção do resultado do crime de vontade livre e consciente, em face de um momento posterior, no qual esta não mais existe.
III) APLICAÇÃO DA TEORIA DA ACTIO LIBERA IN CAUSA
Considera-se a teoria da actio libera in causa uma exceção à noção geral de imputabilidade. A explicação se dá com base na teoria da autoria mediata, em que o sujeito é instrumento de si mesmo quando imputável, isto é, antes de embriagado.
Nesse conceito, teoria de alguns autores explica que a actio libera in causa abstrai-se do princípio geral em Direito Penal de considerar as categorias do delito relativamente ao tempo da prática do fato punível. Assim, há transferência da imputabilidade para o momento anterior ao início da conduta delitiva. Diz-se que o princípio debatido deflagra hipótese de responsabilidade penal objetiva, inadmissível no preceito Penal.
Corrente diversa entende que a hipótese de responsabilidade penal objetiva aplica-se licitamente em razão de política criminal, sendo que o legislador pretendeu tratar o ébrio voluntário ou culposo como se fosse imputável. Os defensores desse entendimento sugerem a punição a título de culpa.
A forma típica da actio libera in causa é da embriaguez peordenada, sendo aplicada apenas a esta no início. Atualmente, foi estendida a todos os casos de embriaguez.
IV) EQUIVOCADA AGRAVAÇÃO DA PENA DO DELITO COMETIDO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ PREORDENADA
Como já explanado, a embriaguez preordenada caracteriza-se pela total consciência que possui o agente infrator no momento da premeditação e início do iter criminis, sendo que a consumação se dá em estado de embriaguez. A punição para esse agente explica-se plenamente pela teoria supra, considerando-se que condutas deveras gravosas podem decorrer desse estado e a não culpabilidade pelo Estado caracterizaria um apoio a ebriedade.
Contudo, o que se pretende estudar é o equívoco da legislação em considerar que o agente que comete o crime em estado de embriaguez preordenada possui maior culpabilidade do que aquele que possuía o dolo da conduta em sobriedade e o cometeu em seu pleno e saudável estado de consciência.
Assim, deve-se ter em vista que o sujeito que se embriaga o faz objetivando se despojar dos seus "freios inibitórios", nas palavras de Nelson Hungria. O desejo mais profundo é de retirar de si a presença das leis morais; diminuir a angústia, a dor e a culpa em cometer aquele delito; criar coragem e até mesmo se contagiar de satisfação pela prática da conduta. De qualquer forma, o desejo do agente ao embriagar-se é excluir determinadas circunstâncias que lhe atingem quando sóbrio.
Nesse diapasão, tem-se que a ingestão de bebidas alcoólicas e de outras substâncias psicoativas em geral provoca diversos efeitos, divididos em duas fases: uma estimulante e outra depressora. A primeira aparece nos primeiros momentos após o consumo e causa euforia, perturbações psicomotoras (agitação ou estupor), desinibição e loquacidade (maior facilidade para falar). Os efeitos depressores causam falta de coordenação motora, falta de reflexo, descontrole, sono, chegando a quadros de alucinações, distorções das percepções, idéias delirantes e perturbações de efeitos anormais, podendo ir do medo a um intenso êxtase. Além desses, o consumo em excesso pode causar síndrome amnésica com a perturbação típica da memória remota, preservando-se a memória imediata. Por fim, pode-se dizer que o uso de substâncias psicoativas causa modificação da cognição, do afeto, da personalidade e do comportamento.
Diante do quadro em que se coloca o agente embriagado, não se pode inferir objetivamente que seu crime é mais grave ou mais perigoso do que aquele cometido por um agente sóbrio.
A psiquiatria ainda não conseguiu obter resposta precisa sobre a origem da personalidade do agente criminoso. Não se sabe se a característica diz respeito a traços de personalidade ou se a personalidade já é criminosa e determinante de comportamentos delinqüentes.
Apesar disso, dúvida constante diz respeito à existência ou não de um real componente psicopatológico atrelado a sociopatia. Existem dois grandes argumentos causais: o livre arbítrio da pessoa e, por outro lado, a Constituição Biológica, como uma fatalidade orgânica que empurra a pessoa agir dessa ou daquela forma.
Pinatel defende que não haveria nos criminosos em geral, tipos psicopatológicos classificáveis dentro das categorias psiquiátricas tradicionais mas, no máximo, conjugações de traços de personalidade, agrupados de uma forma específica. Esses traços definiriam a Personalidade Criminosa e esta determinaria o comportamento delinqüente. As características são:
a) o criminoso é um homem comum, diferenciado pela maior tendência e aptidão que possui para ato criminoso;
b) a personalidade criminosa seria descrita através de traços psicológicos agrupados numa determinada característica;
c) essa característica englobaria os traços de agressividade, egocentrismo, labilidade e indiferença afetiva, sendo estes os elementos responsáveis pelo ato delituoso, enquanto as variáveis tais como o temperamento, as aptidões físicas, intelectuais e profissionais, as razões aparentes, e as necessidades seriam responsáveis pelas diferentes modalidades desse ato e
d) a personalidade criminosa, considerada na sua globalidade, seria dinâmica em relação aos seus diferentes traços constitutivos e adaptabilidade social.
Como visto, o que vige na psicologia e psiquiatria moderna é a ausência de diferença entre o homem infrator de normas positivas e o não infrator. Na verdade, são pessoas psicologicamente similares, com escolhas distintas causadas pelas suas experiências pessoais.
Nesse diapasão, pode-se extrair que a maior punição ao réu que ingeriu substâncias entorpecentes para melhor executar um crime ou até mesmo para conseguir fazê-lo, em comparação ao agente sóbrio, constitui ausência de isonomia. Se a ciência psiquiátrica não consegue distinguir a personalidade do agente criminoso, como pode o Direito entender que há maior reprovabilidade na conduta daquele que precisou se usar de subterfúgios para alcançar o crime?
Notório é que as experiências sociais vividas em comungação com a personalidade da pessoa galgam o maior ou menor grau de criminalidade. No entanto, aquele que por si só, em seu estado normal, não consegue atingir seu objetivo delinqüente, ainda possui em sua consciência resquícios, senão falar em parte, de razão não criminosa. Esse fator o faz uma pessoa quase totalmente inserida nos padrões sociais.
Ora, considerando-se que o agente embriagado tem retiradas de si muitas características de ordem motora, como pode ser considerado mais reprovável e perigoso? Inegável que dele podem advir condutas e resultados da maior gravidade. Contudo, a embriaguez atingida de forma inicial como produto de um dolo anterior não o faz mais gravoso. Estatisticamente os crimes praticados por agentes sóbrios não são menos graves.
Se a política criminal determinadora da agravante genérica do art. 61, I, l) objetivava a evitação do consumo de substâncias psicoativas, falhou em não abranger aquele que se embriagou de forma não acidental e devido sua personalidade, em determinadas circunstâncias, acabou por cometer um delito de ímpeto. De outra forma, tem-se que a abordagem pelo agente embriagado traduz maior possibilidade de resistência da vítima, que observando seu estado tende a repeli-lo, ainda que não possua previsibilidade imediata da ocorrência da conduta delitiva.
Por fim, se a justificativa é o maior tempo de premeditação, não se pode dizer que o agente sóbrio não teve o mesmo tempo de preparar-se e convencer-se. Ao contrário, este último tem maior periculosidade no sentido primeiro de não despertar qualquer suspeita ou reação imediata de repulsão na vítima. Em segundo plano, tem maior capacidade de requintar sua conduta e atribuir a esta a condição de perfeição exigida para o alcance do resultado.
Assim, explanada está a necessidade de ser o agente acometido de embriaguez preordenada condenado segundo sua conduta especificamente, sem que o ato de embriaguez caracterize agravação de pena.
CONCLUSÃO
Diante dos argumentos em exposição, tem-se pela completa inadequação da aplicação da agravante genérica da embriaguez preordenada no ordenamento penal vigente.
Tal é concluído ao observar-se que não há elementos substanciais na ciência que diferencie as personalidades do agente infrator de leis penais e o não infrator. Assim, considerando-se que estamos diante de pessoas similares, apenas caracterizadas pela maior ou menor aptidão ao crime, não se pode inferir que aquela que precisou usar-se de substâncias psicoativas é mais reprovável em nossa sociedade.
Ora, se o agente que atua criminosamente sem uso de qualquer substância tem a pena definida de acordo com a sua conduta objetivamente considerada, como poderia ser o agente embriagado preordenadamente culpado primeiramente por estar sob efeito de substâncias que prejudicam a sua própria ação delinqüente?
Há de se considerar no mínimo dissonante esta aplicação da legislação brasileira. Ainda que se compreenda o motivo de criação da agravante em debate com base em questões de política criminal, deve ser considerado o atual panorama social brasileiro. Nos dias de hoje a ingestão de substâncias psicoativas é comum, senão dizer habitual no nosso país. Se nem o caráter preventivo da pena pode ser considerado eficaz, que dirá a norma em debate.
De nenhuma forma pode ser considerada isonômica e coerente com a ciência jurídica a aplicação da agravante genérica da embriaguez preordenada nos dias atuais. A pena do acusado deve ser baseada em sua conduta objetivamente considerada, agravada ou atenuada pelos fatores que o façam mais ou menos gravoso. O elemento que não atua de forma a piorar as qualificações do crime, bem como direciona à diminuição de precisão de atos não pode ser considerada em desfavor do réu.
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