IV – PRINCÍPIOS VETORES DA PROFISSÃO DO ADVOGADO DEVEM SER CONSIDERADOS PARA A CONTRATAÇÃO DOS SERVIÇOS SEM A OBRIGATORIEDADE DO PROCESSO LICITATÓRIO
Em destacado posicionamento, Alice Gonzales Borges [12] tece considerações relevantes sobre a desnecessidade da licitação para a contratação de serviços profissionais de advocacia, sobre vários e argutos fundamentos, inclusive o da "antinomia entre normas e a conflitualidade de princípios, de que fala Canotilho".
A conflitualidade de princípio de que trata a citada publicista resultaria da conjugação da Lei 8.666/93 confrontada com a Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB) e o Código de Ética dos Advogados.
Isto porque, descarta a efetivação de "uma pré-qualificação, seguida de seleção, ou um registro cadastral também seguido de seleção e sorteio, para que incorra na proibição do art. 22, §8º, da Lei 8.666/93", [13] pelo fato de ocorrer a inexigibilidade da licitação de serviços advocatícios por duas causas bem definidas na legislação: "ou porque se trate de serviços de notória especialização, ou porque, em muitos outros casos, se configure mesmo, por causas diversas e potencialmente inimagináveis por qualquer legislador, verdadeira inviabilidade de competição." [14]
Nesse sentido, o próprio Código de Ética da Advocacia, em seus artigos 28 e 29, desestimula a competição entre seus profissionais, inviabilizando o certame licitatório, por ser recomendado ao causídico a moderação, discrição e sobriedade.
Por sua vez, o artigo 34 do Estatuto da OAB, elenca como infração disciplinar "organizar ou captar causas, com ou sem a intervenção de terceiros" (Art. 34, IV). Na mesma esteira, o artigo 5º do Código de Ética veda qualquer procedimento de mercantilização do advogado no exercício da profissão: "O exercício da advocacia, é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização."
E para impedir que haja captação direta ou indiretamente de clientes assim dispõe o art. 7º da lei em debate: "Art. 7º - É vedado o oferecimento de serviços que impliquem, direta ou indiretamente, vinculação ou captação de clientela."
Ainda louvando-se nas lições da ilustre Alice Gonzales Borges, se extrai: "Enquanto o art. 30, inc. II, da Lei 8.666/93, estatui, como um dos requisitos de habilitação técnica a indicação das instalações materiais da empresa licitante, o art. 31, §1º, do Código de Ética do Advogado veda, nos anúncios do advogado, menções ao tamanho, qualidade e estrutura da sede profissional, por constituírem captação de clientela. Constitui requisito de habilitação técnica dos mais importantes, na Lei 8.666/93, a comprovação, por meio de atestados idôneos de órgãos públicos e privados, do desempenho anterior do licitante em atividades semelhantes àquela objetivada na licitação (art. 30, §3º). O Código de Ética veda, nos arts. 29, §4º e 33, IV, a divulgação de listagem de clientes e patrocínio de demandas anteriores, considerados como captação de clientela". [15]
A seguir, a citada publicista indaga: "Se o Estatuto da OAB e o Código de Ética vedam a captação de clientela, os procedimentos de mercantilização da profissão e o aviltamento de valores dos honorários advocatícios (arts. 39 e 41 do Código de Ética), como conciliar tais princípios com a participação de advogados, concorrendo com outros advogados em uma licitação de menor preço, nos moldes do art. 45, I e §2º da Lei 8.666/93? Também resulta inviável, pelos mesmos princípios, a participação de escritórios de advocacia em licitação do tipo melhor técnica, a qual, nos termos do artigo 46, §1º, descamba, afinal, para o cotejamento de preços. Obviamente, também a licitação de técnica e preço do art. 46, §2º, que combina aqueles dois requisitos. Mesmas restrições sofre a aplicação das normas relativas à desclassificação das propostas, em razão dos preços oferecidos, prevista no art. 48, II, da Lei 8.666/93, quando, eventualmente, os advogados licitantes podem ser convidados para baixar o preço das suas propostas, dentro do prazo de oito dias. O próprio problema do preço dos serviços advocatícios é outra questão que oferece certas peculiaridades." [16]
Ratificando o brilho da citada doutrinadora, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, através do seu Tribunal de Ética, manifestou-se no sentido de não ferir a ética e nem tampouco a Lei 8.666/93, quando presente a condição de notória especialização decorrente de situação pessoal do profissional ou do escritório de advocacia: "Licitação – Inexigibilidade para contratação de advogado – Inexistência de infração – Lei n. 8.666, de 21.06.1993, que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da administração pública. Inexigibilidade de licitação para contratação de advogado, para prestação de serviços ou defesa de causas judiciais ou administrativas. Condição de comprovação hábil, em face da natureza singular dos serviços técnicos necessitados, de tratar-se de profissionais ou empresas de notória especialização. Critério aceitável pela evidente inviabilidade de competição licitatória. Pressuposto da existência de necessária moralidade do agente público no ato discricionário regular na aferição da justa notoriedade do concorrente. Inexistência, na lei mencionada, de criação de hierarquia qualitativa dentro da categoria dos advogados. Inexistência de infringência ética na fórmula legal licitatória de contratação de advogados pela administração pública." [17]
A doutrina comparada também acolhe a desnecessidade da competição quando se vislumbra a prestação de serviços resultante da criação intelectual do prestador do serviço público, sendo certo, que em posicionamento similar ao nosso, o Professor portenho Roberto Dromi [18] assim se posiciona: "Exceptúase también de la licitación pública la contratación en la que resulta determinante la capacidad ..."
Sayagués Laso [19] também entende, que "resulta imposible la comparación de obras científicas o de arte, para optar por la de precio más bajo, y aun mismo el determinarse en función del costo, que esta materia es elemento completamente secundario."
Portanto, ao se compulsar os comandos legais da Lei 8.666/93 deve ser feita a interpretação sistemática tanto com o Estatuto do Advogado, como também com o respectivo Código de Ética.
Conseqüentemente, entender determinado preceito legal não é somente aferroar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal, é indagar com profundeza o pensamento do legislador, descendo da superfície isolada de um dispositivo, para conjugá-lo com os demais e desenvolvê-los em todas as direções possíveis, com o objetivo de aplicar corretamente a norma legal reguladora da matéria.
Concordamos, portanto, com as eruditas colocações feitas pela ilustre Alice Gonzales Borges, ao demonstrar ser inexigível o certame para que ocorra a contratação da prestação de serviços jurídicos, quer pela impossibilidade de se aferir o conhecimento científico de cada profissional, o que levaria a um julgamento subjetivo, quer pela singularidade do causídico prestador do serviço e, por fim, quer pelo Estatuto e o Código de Ética do Advogado reprimirem a captação direta ou indireta de clientes, além dos outros princípios declinados no presente tópico, que invalidam qualquer processo de seleção para a contratação dos serviços advocatícios, visto não ser o menor preço o fator preponderante para a efetivação do melhor serviço.
Esta reflexão é imperiosa, porque a lei 8.666/93 não exige que haja licitação para contratação direta de parecer, atuação preventiva ou contenciosa do advogado, que pela natureza intelectual do serviço, fica excluído do certame.
Contratando diretamente o advogado não estará a autoridade administrativa cometendo infrações nem agindo de forma contrária ao estabelecido na Lei de Licitações.
V – CONCLUSÃO
A licitação pública é um procedimento administrativo que tem por objetivo selecionar a melhor proposta para a Administração Pública. Como o serviço prestado pelo advogado é singular, excetuando-se das regras que são voltadas para a competição do menor preço, a inexigibilidade do certame é uma conseqüência natural.
Por igual, como no trabalho intelectual do advogado não existe o "equivalente perfeito", salta aos olhos que a competição fica esvaziada.
Neste caso, a legislação federal permite a contratação direta do advogado, por ser singular a prestação do seu serviço: "Os bens singulares, consoante se disse, é que não são licitáveis. Um bem se qualifica desta maneira quando possui individualidade tal que o torna inassimilável a quaisquer outros. Esta individualidade pode provir de o bem ser singular: a) em sentido absoluto; b) em razão de evento externo a ele ou c) por força de sua natureza íntima. " [20]
Assim sendo, torna-se totalmente inviável o certame competitivo para a aferição da melhor prestação de serviço advocatício, em total sintonia com o posicionamento do STF e da própria Lei nº 8.666/93.
Ao agir dessa forma, o administrador público não cometerá nenhuma infração funcional, visto que o interesse público faz com que o Estado tenha a melhor e mais eficiente defesa em juízo ou fora dele. É óbvio que tal regra deve ser interpretada com razoabilidade, pois a contratação direta é a exceção e não a regra a ser utilizada no dia-a-dia dos órgãos públicos.
Somente nas circunstâncias, e nos casos especiais, é que o ente de direito público se utilizará do recurso permitido pela Lei de Licitações Públicas, contratando diretamente o advogado mais recomendado para uma importante prestação de serviços ao erário.
Notas
- BINENBOJM, Gustavo. "Um Novo Conceito Administrativo para o Século XXI", in Temas de Direito Administrativo e Constitucional. São Paulo: Renovar, 2007, p. 9.
- HUBER, Hans. "Niedergand des Rechts und Krise des Rechtstaats", in Demokratike und Rechtsaat, , Zürich, 1953, p. 59.
- MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. "A Constitucionalização do Direito Administrativo e o Controle de Mérito (Oportunidade e Conveniência) do Ato Administrativo pelo Poder Discricionário, in Revista Ibero Americana de Direito Público, Rio de Janeiro: América Jurídica, 2º trimestre de 2005, volume XVIII, p. 258.
- "... 6. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público. (STF, Rel. Min. Gilmar Mendes, MS nº 22.357, Pleno, DJ de 9.08.2006).
- Cf. BAPTISTA. Patrícia Ferreira. "A Tutela da Confiança Legítima como Limite ao Exercício do Poder Normativo da Administração Pública – A Proteção às Expectativas Legítimas dos Cidadãos como Limite à Retroatividade Normativa", in Revista de Direito do Estado (RDE) nº 3, São Paulo: Renovar, jul/set. 2006, p. 155/181.
- "Independentemente da sistematização legal, que é muito imperfeita, poder-se-ia dizer que em alguns deles a Administração tem a faculdade de dispensar a licitação; em outros está obrigada a fazê-lo; em dada hipótese está proibida de licitar (motivo de segurança nacional) e que, de par com todos estes, existem as situações de licitação inviável, ou seja, em que não comparecem os pressupostos lógicos , jurídicos ou fáticos em vista dos quais caberia efetuá-la. Note-se que o art. 17, I e II fala em licitação ‘dispensada’, ao passo que o art. 24 refere casos de licitação ‘dispensável’ – o que sugere, respectivamente nos primeiros, um assunto já resoluto pela lei e, nos segundos, uma faculdade do legislador – enquanto o art. 25 arrola hipótese de ‘inexigibilidade’ da licitação, aludindo a situação em que esta é inviável. Ademais, a hipótese apontada como de licitação ‘dispensável’, prevista no art. 24, IX, como dito, é, na verdade um caso de licitação proibida, embora a lei n. 8.666 (ao contrário do diploma anterior) não a tenha categorizado de tal modo." (Cf. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. "Licitação – Inexigibilidade – Serviço Singular", in RDA 202, out/dez/2005, ps. :365-366).
- Cf. MELLO, Celso Antonio Bandeira de "Licitação – Inexigibilidade – Serviço Singular", in RDA 202, cit. ant., p. 368.
- "A singularidade dessa prestação de serviços está fincada nos conhecimentos individuais de cada profissional da advocacia, impedindo, portanto, que a aferição da competição seja plena, pois ‘não se licitam coisas desiguais, só se licitam coisas homogêneas. (...) Vamos mais além por entender que a singularidade do advogado está obviamente interligada à sua capacitação profissional, o que de certa forma inviabiliza o certame licitatório pelo fato de não ser aferido o melhor serviço pelo preço ofertado. Ou, em outras palavras, os profissionais que se destacam nos vários ramos do direito geralmente não competem em processo licitatório por ser totalmente inviável a sua cotação de honorários em face de outras formalizadas por jovens advogados em início de carreira. Não vai nessa afirmação nenhum demérito aos jovens advogados, pois, como sabiamente afirmado por Calamandrei, ‘a juventude nunca é melancólica porque tem o futuro diante dela." (MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. "Contratação Direta de Serviços Advocatícios", in O Contrato Administrativo, 2. ed., Rio de Janeiro: América Jurídica, p. 512.
- BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, vol. 3, tomo III, São Paulo: Saraiva, 1992, p. 2.
- MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O Contrato Administrativo, cit. ant., p. 530.
- STF, RHC nº. 72830-RO, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª t., DJ de 16/2/96, p. 2.999.
- BORGES, Alice Gonzales. "Licitação para Contratação de Serviços Profissionais de Advocacia", in RDA 206, out/dezembro de 1996, ps. 135-141.
- BORGES, Alice Gonzales. op. cit. ant, p. 138.
- Idem, p. 138.
- BORGES, Alice Gonzales. op. cit. ant., p. 138.
- BORGES, Alice Gonzales. op. cit. ant. p. 139.
- In, TOLOSA FILHO, Benedicto de. Contratando Sem Licitação, Rio de Janeiro: Forense, 1998, ps. 94/95.
- LASO, Sayagués, Licitações Públicas, 2. ed., Buenos Aires: , 1995, p. 147.
- DROMI, Roberto. La Licitación Pública, Montevideo: Acali, 1978, p. 74.
- Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Licitação, 2. tir., São Paulo: RT, 1985, p. 15.