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Do crime militar de perseguição

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17/09/2023 às 11:27

Resumo:


  • O artigo analisa a possibilidade de o crime de perseguição, incluído no Código Penal pela Lei n. 14.132/2021, ser considerado um crime militar conforme o art. 9º do Código Penal Militar.

  • Apresenta-se uma discussão sobre os critérios para a configuração de crimes militares extravagantes ou por extensão, com foco na aplicação do regime jurídico militar ao crime de perseguição.

  • Conclui-se que o crime de perseguição pode ser considerado militar se praticado por um militar em serviço, acarretando repercussões processuais específicas na Justiça Militar.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O militar em serviço tem acesso a informações sensíveis e a material bélico que podem fazer com que o crime de perseguição seja especialmente perigoso e ainda mais reprovável.

Resumo: O presente artigo pretende averiguar a possibilidade de o crime de perseguição, tipificado pelo art. 147-A, incluído no Código Penal pela Lei n. 14.132/2021, configurar crime militar nos termos do art. 9º, inciso II, do Código Penal Militar. Inicialmente, serão apresentadas as considerações doutrinárias sobre o novo crime e suas formas de execução. Em seguida, analisaremos os requisitos para a configuração do crime militar extravagante ou crime militar por extensão. Finalmente, traremos as conclusões sobre a possibilidade de ser configurado o crime militar pela subsunção das formas de execução do aludido crime às hipóteses do elencadas pelo art. 9º, inciso II, “c”, do Código Penal Militar, comentando, ainda que brevemente, as repercussões processuais.

Palavras-chave: Crime de Perseguição. Crime Militar Extravagante. Justiça Militar. Competência.


1. INTRODUÇÃO

Até o advento da Lei nº 13.491/20174, caracterizar um crime como militar era uma tarefa muito simples. Isso porque a Constituição da República5, ao prever que “À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”, adotou o critério legal para a definição do crime militar e o Código Penal Militar6 previa em seu art. 9º, que os crimes militares eram aqueles nele previstos, com ou sem igual definição na lei penal comum2.

Contudo, a Lei nº 13.491/2017 modificou o conceito de crime militar, de forma que os crimes previstos em outras leis que não o Código Penal Militar, ainda que sem correspondência no respectivo diploma, passaram a poder caracterizar um crime militar caso sejam praticados em alguma das situações descritas no art. 9º, II e III, do Código Penal Militar. Referida modificação causou uma ampliação da competência das Justiças Militares, tanto em âmbito Federal como em âmbito estadual. Referida ampliação foi alvo de duras críticas por aqueles que enxergam a Justiça Militar com o receio sobre sua imparcialidade, com fundamento na suposição de haver um corporativismo de “colegas de farda” que compõem o Conselho de Justiça para o julgamento dos crimes militares

Contudo, essa visão é um tanto quanto distorcida e demonstra o quanto a Justiça Militar precisa ser mais profundamente conhecida. Isso, porque o julgamento dos crimes militares é sempre presidido por um juiz civil, que alcançou aquele cargo por meio de concurso público de provas e títulos e não depende de ter composto qualquer instituição militar. O maior rigor da Justiça Castrense pode ser averiguado, por exemplo, pela maior rigidez na verificação dos requisitos para a aplicação do princípio da insignificância, o que demonstra que a visão baseada no corporativismo deriva de um parco conhecimento da jurisprudência dos tribunais militares. Além disso, a formação dos Conselhos de Justiça, compostos por Militares, ao menos na Justiça Militar Estadual, somente ocorre quando o crime não tem como vítima um civil.

Noutro vértice, referida ampliação fez com que fosse possível ao Ministério Público Militar e à Justiça Militar o controle mais amplo da qualidade do serviço prestados pelos militares. Isso, porque, se o militar pratica um crime contra outro militar em atividade, em local sujeito à administração militar ou estando em serviço, a reprovabilidade da sua conduta deverá ser analisada considerando tal situação. Além disso, é necessário um especial cuidado para que o militar utilize de sua posição para a prática dos crimes, o que enseja, muitas vezes, medidas cautelares específicas.

Dessa forma, ao analisar a inovação legislativa trazida pela Lei n. 14.132/202137 ao nosso ordenamento, com a tipificação do crime de perseguição, entre outras novidades, para verificar a possibilidade de o referido crime ser praticado de forma a caracterizar crime militar, busca-se entender se o referido regime jurídico poderá ser a ele aplicado, e quais as medidas poderão ser tomadas pela justiça castrense para evitar que as prerrogativas dos militares sejam utilizadas para tornar a conduta ainda mais danosa à vítima e à instituição militar.

Evidentemente, não conseguiremos prever todas as formas de execução do referido crime em que a conduta poderia caracterizar um crime militar. Contudo, iremos dar maior enfoque na possibilidade de o referido crime ser praticado por militar em serviço, com fundamento no art. 9º, II, “c”, do Código Penal Militar8. Isso, porque o militar em serviço tem acesso a informações sensíveis e a material bélico que podem fazer com que o crime de perseguição seja especialmente perigoso e reprovável.

2. DO CRIME DE PERSEGUIÇÃO

A conduta de perseguição se caracteriza pela recorrente demonstração de vigília e controle, fazendo com que a vítima se sinta invadida ou ameaçada pelo agente, como se houvesse uma constante mensagem de “eu sei onde você está”. A conduta já inspirou diversas obras de suspense e terror tamanha é a angústia causada por aquele que é submetido à referida situação.

Conforme descreve o professor Guilherme Nucci, a perseguição, que também é conhecida pela expressão estrangeira, “stalking”, é caracterizada por um comportamento persistente de intromissão na vida da vítima e invasão da sua esfera íntima, sujeitando a vítima a uma situação de controle e ameaça que torna sua própria existência insuportável pelo contínuo estado de terror que compromete seu equilíbrio físico e psíquico.9.

A conduta já é criminalizada por legislações estrangeiras há muito tempo. Nesse sentido, o professor Guilherme Nucci leciona que a individualização do crime de stalking ocorreu pela primeira vez nos Estados-Unidos, após o assassinato da atriz Rebeca Schaeffer, em 1990, tendo sido a Califórnia o primeiro estado norte-americano a aprovar uma lei penal nesse sentido, em 1991. Atualmente, os 50 estados americanos tipificaram o crime de stalking. Em 1997, o Reino Unido editou a lei para a proteção do assédio ou perturbação da tranquilidade (harassment), de modo amplo e genérico.10

Na Espanha, a Exposição de Motivos da LO 01/2015, responsável pela introdução do delito no ordenamento jurídico espanhol, aponta para a necessidade de “oferecer resposta a condutas de indubitável gravidade que, em muitas ocasiões, não podiam ser qualificadas como coações ou ameaças. São todos aqueles casos em que, sem chegar a produzir necessariamente o anúncio explícito ou não da intenção de causar algum mal (ameaças) ou o emprego direto de violência para restringir a liberdade da vítima (coações), produzem-se condutas reiteradas por meio das quais a liberdade e a sensação de segurança da vítima são seriamente prejudicadas, mediante a sua submissão a perseguições ou vigilâncias constantes, chamadas reiteradas, ou outros atos contínuos de assédio”.11

Na Itália, o Código Penal tipifica a conduta da seguinte forma: “Salvo se o fato constitui crime mais grave, é punido com reclusão de um ano a seis anos e seis meses quem, reiteradamente, ameaça ou perturba alguém causando-lhe um permanente e grave estado de ansiedade ou medo, ou produzindo-lhe um fundado temor pela própria incolumidade, de um parente próximo ou de pessoa com quem mantém relação afetiva, ou constrangendo-lhe a alterar sua rotina”, segundo as lições trazidas por Rogério Sanches.12 No mesmo sentido, Nucci esclarece que a criminalização da conduta na legislação estrangeira envolve um exercício de poder pautado na insistência até que a vítima ceda aos caprichos do perseguidor, levando, muitas vezes ao ingresso num cenário muito pior de subjugação, podendo ser ferida, sexualmente abusada ou até mesmo assassinada.13

A Lei n. 14.132/2021 incluiu no Código Penal o art. 147-A, prevendo o crime de perseguição, com a seguinte previsão:

Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido

I – contra criança, adolescente ou idoso;

II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;

III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.

§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.

§ 3º Somente se procede mediante representação.

A inclusão do novo tipo penal, conforme leciona Rogério Sanches14, é justificada pena necessidade de penalizar com maior rigor a conduta até então prevista como contravenção penal (art. 65 do Decreto-lei n. 3.688/41), pelo desvalor do seu resultado, posto que a conduta pode gerar graves danos à vítima, principalmente no âmbito psicológico. Assim, a conduta, que quando prevista como contravenção penal era punida com quinze dias a dois meses de prisão simples, passa a ser punida de forma mais grave, com seis meses a dois anos de reclusão e multa.

Na exposição de motivos do Projeto de Lei n. 1369/2019, que culminou na edição da referida Lei 14.132/2021, a Senadora Leila Barros alerta que “a presente iniciativa corresponde a um apelo da sociedade e a uma necessária evolução no Direito Penal brasileiro frente à alteração das relações sociais promovidas pelo aumento de casos, que antes poderiam ser enquadrados como constrangimento ilegal, mas que ganham contornos mais sérios com o advento das redes sociais e com os desdobramentos das ações de assédio/perseguições15

Embora a situação seja mais comumente vivida por mulheres, como vítimas de relacionamentos abusivos, o tipo penal não restringiu a sua incidência a essa situação, sendo criminalizada independentemente de qualquer qualificação da vítima. Contudo caso a vítima seja criança (aquele que tem até 12 anos incompletos) ou pessoa idosa (aquela que tem acima de 60 anos), ou se a perseguição for dirigida à mulher, por razões da condição de sexo feminino (inciso II), quando envolver o disposto pelo art. 121, § 2º-A, inciso I (violência doméstica ou familiar), será aplicável a causa de aumento de metade da pena, nos termos do § 1º do art. 147-B.

Como se nota da análise do dispositivo, a conduta é bem específica, exigindo que ocorra de forma reiterada e, ainda, que resulte na restrição da capacidade de locomoção da vítima ou na invasão ou perturbação da sua esfera de liberdade e privacidade.

A redação do tipo trazida pelo legislador brasileiro, contudo, foi objeto de críticas doutrinárias pelo fato de ter sido incluído o verbo “perseguir” e, também, o termo “reiteradamente”. Nesse sentido, Nucci esclarece que o verbo perseguir “possui um forte conteúdo negativo, já indicando uma reiteração (ninguém pode ser considerado perseguidor por conta de uma única vez andar atrás da vítima para obter alguma atenção, pois não teria sentido para efeito de lesão ao bem jurídico tutelado)16. Somado ao termo “reiteradamente”, afasta-se a incidência do tipo pela simples repetição, posto que “a união proposital de perseguir com reiteradamente tem o condão de indicar um crime habitual, cuja punição somente tem sentido se o agente demonstrar um comportamento reiterado inadequado, extraindo-se do conjunto a possibilidade de lesão ao bem jurídico tutelado.17

Noutro vértice, o professor Rogério Sanches entende que a reiteração compõe o próprio conceito de stalking, que “consiste em perseguição obstinada, incansável, capaz de desestabilizar a rotina da vítima18. Nesse sentido, o ref. professor e cita a lição de Silva Chakian:

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Nesse sentido, para fins criminais, haveria três requisitos para definir o stalking:

  1. Comportamento doloso e habitual, composto necessariamente de mais de um ato de perseguição ou assédio à mesma vítima;

  2. O motivo do autor para praticar a conduta é um interesse pessoal, como admiração, crença, interesse relacional ou vingança;

  3. A vítima, por conta da repetição, deve se sentir incomodada em sua privacidade e/ou temerosa pela sua segurança.19

Assim, Sanches esclarece que “apenas um ato inoportuno, ainda que restrinja a privacidade de alguém, não caracteriza este crime, embora seja possível que a conduta se adéque a outro tipo penal, como a da ameaça, por exemplo”.20

Sendo o referido crime um crime habitual, surge a polêmica sobre quantos atos serão necessários para que seja configurada a conduta. Nesse sentido, Nucci21 defende que sua consumação depende da prática de pelo menos três atos persecutórios e não há possibilidade de se configurar tentativa nem a prisão em flagrante. Rogério Sanches, por outro lado, defende ser necessário ao menos dois episódios e aponta existir corrente defendendo ser possível a tentativa quando o agente, depois de perseguir a vítima numa primeira oportunidade, é surpreendido na iminência de repetir o mesmo ato – o que configuraria uma exceção à regra de impossibilidade de configuração de tentativa em crimes habituais.22

A é conduta prevista por diversos núcleos verbais que esclarecem formas como pode ser executada a conduta típica de perseguição.

Ao prever a perseguição por forma de ameaça devemos considerar o conceito legal trazido pelo tipo descrito no art. 147 do Código Penal, ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave. Rogério Sanches, porém, faz relevante ressalva ao alertar que as condutas de perseguição podem causar o efeito de causar nas vítimas um estado de ansiedade ou temor sem que haja o uso de palavras.23 Assim, a ameaça à integridade psicológica pode ser caracterizada por condutas como ligações reiteradas nos telefones fixos de onde a pessoa se encontra sem que o perseguidor nada fale, entrega de presentes nos locais onde frequenta. Isso, porque elas demonstram que o perseguidor sabe onde a vítima está a cada momento, causando-lhe justo temor.

A Lei n. 11.340/2006 define violência psicológica como “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação24. Partindo desse conceito, o professor Rogério Sanches sustenta que a conduta de perseguição é uma forma de violência psicológica que degrada o estado emocional da vítima, inferiorizando-a por meio do controle de suas ações e da imposição do medo.25 Vale ressaltar, contudo, que para a consumação do crime de perseguição não há necessidade de prova de dano psicológico à vítima,26 diferente do que ocorre com o crime de violência psicológica contra a mulher, previsto pelo art. 147-B do Código Penal.

O delito deve, portanto, ser classificado como um delito de mera conduta e de perigo abstrato, de forma que a sua consumação não exige nenhum resultado naturalístico. A própria submissão da vítima à perseguição já configura a lesão à integridade moral da vítima, de forma que eventuais lesões corporais ou danos psicológicos à vítima implicariam em concurso material de crimes, conforme determina o § 2º do art. 147-A.27

A restrição da capacidade de locomoção da vítima não se confunde com a privação da sua liberdade, prevista no crime de sequestro (art. 148 do Código Penal). Aqui, a restrição se manifesta pelo estado de temor a que a vítima é submetida pelas reiteradas ações do perseguidor. Da mesma forma, a invasão ou perturbação da esfera de privacidade ou intimidade da vítima não exige que seja caracterizada, por exemplo, a invasão de domicílio, mas a presença do perseguidor em vigília nos espaços públicos em frente ao local onde a vítima se encontra pode ser suficiente para causar este efeito.

Todas as formas penalmente típicas são de livre execução, não havendo restrição sobre a forma como o agente ameaçará a integridade física ou psicológica da vítima ou lhe perturbara a liberdade ou privacidade, podendo tais atos serem praticados “de qualquer forma”, em expressa autorização para que seja utilizada a interpretação analógica.

Dessa forma, destacam os doutrinadores a crescente preocupação com o cyberstalking, entendido como aquele praticado por meio da rede mundial dos computadores. André Luís Callegari apresenta os dados de uma pesquisa realizada pelas pesquisadoras Jennifer L. Truman e Rachel E. Morgan (Bureau of Justice Statistics, do Office of Justice Programs, dos Estados Unidos) segundo a qual 3,8 milhões de pessoas com 16 anos ou mais foram vítimas de stalking nos Estados Unidos no ano de 2016, sendo que o uso de tecnologias foi empregado para a perseguição na maioria dos casos.28

Sobre o tema, o professor Guilherme Nucci alerta que a “Internet propicia fácil acesso a algumas pessoas perseguidoras em relação a outras, gerando a viabilidade de acompanhar todos os passos da vítima, que, nessas situações, termina colaborando, pois insere as suas realizações diárias, por meio de variados mecanismos (perfis em programas como Facebook, Instagram, Twitter, dentre outros, bem como enviando e-mails, mensagens por aplicativos, como WhatsApp, Telegram e similares). Além disso, muitos perseguidores assumem identidade falsa (ou o anonimato) para poder seguir sua vítima insistentemente, até que possa chegar próximo a ela, de maneira presencial. No entanto, as ameaças podem ser feitas pessoalmente ou por meio das redes sociais; a invasão à privacidade, igualmente, pode ser realizada diretamente (como uma invasão de domicílio) como, também, por meio da Internet.29

Gisele Mendes de Carvalho e Hamilton Belloto Henriques citam como exemplos de stalking e cyberstalking as seguintes condutas: coleta de informações sobre o alvo, seja por meio da internet, de amigos, da escola, do emprego; repetidos contatos não ameaçadores, sejam cibernéticos, por telefone ou pessoais; persistentes tentativas de aproximação e/ou convites para encontros; notas, objetos ou flores deixados no veículo; vigilância para aparecimento “acidental” no local onde a vítima se encontra ou trabalha; espera em frente à casa, trabalho da vítima ou junto a seu carro em estacionamento; comunicação falsa de crime; dano à reputação, ameaças, sexting e crimes contra a honra.30

Nucci classifica o crime como tipo misto alternativo, de forma que a prática de uma ou mais condutas descritas no tipo no mesmo contexto configura um só delito.31 Contudo, o professor alerta que a quantidade elevada de condutas pode permitir a majoração da pena-base pelo julgador na primeira fase da dosimetria da pena. Como é comum que o perseguidor atue de forma insistente e sequencial, não seria razoável que cada conduta configurasse um crime, pelo fato de que as sanções somadas chegariam a montante totalmente desproporcional. Contudo, se a perseguição é interrompida pelos órgãos de segurança ou por qualquer outro motivo e, posteriormente volte a perseguir a pessoa ofendida, abre-se um novo contexto delituoso.

O crime é de ação pública condicionada à representação, conforme determina o § 3º do art. 147-A do Código Penal. Neste ponto, o professor Guilherme Nucci entende que esta exigência reforça a ideia de que é preciso que a parte ofendida tenha, de fato, levado a sério a perseguição feita pelo agente, em qualquer das situações descritas no tipo penal.32 Já Gisele Carvalho e Hamilton Henriques sustentam que referida condicionante é inapropriada, posto que possibilita que a vítima fique “à mercê do assediador, que, ao cercear a sua liberdade, pode também aproveitar-se de ameaças para obrigá-la a desistir do procedimento penal contra ele33. Os autores defendem, portanto, que a ação penal desse delito deveria ser pública incondicionada de modo a evitar manipulações da vítima, tendo em vista o caráter indisponível do bem jurídico tutelado, qual seja, a integridade moral.

3. DA DEFINIÇÃO DO CRIME MILITAR

A Constituição da República Federativa do Brasil adotou em seus arts. 124 e 125, § 4º, o critério legal para a definição de crimes militares, ao definir como competência da Justiça Militar o julgamento de “crimes militares definidos em lei”. A opção pelo critério legal, como leciona o professor Fernando Galvão, “rompeu com a orientação que seguia o critério subjetivo, ligado à condição do sujeito ativo da conduta (ser militar) para a definição do crime militar, que se mantinha desde a carta de 1934.”34 No tocante ao critério legal para a definição do crime militar, valiosa a lição de Ronaldo João Roth no sentido de que a caracterização do crime militar deriva apenas do preenchimento dos requisitos objetivos previstos em lei, não dependendo da motivação da conduta do agente.35

A definição dos crimes militares ficou, então, por conta do Código Penal Militar (Decreto-Lei n. 1.001/1969), que definiu os crimes militares em tempo de paz em seu art. 9º e os crimes militares em tempo de guerra em seu art. 10. Ocorre que com a edição da Lei n. 13.491/2017, a redação do art. 9º foi modificada, de forma a aplicar significativamente a abrangência do conceito de crime militar. A redação do art. 9º, inciso II, definia como crime militar em tempo de paz os crimes previstos no Código Penal Militar, embora também o fossem com igual definição na lei penal comum, quando praticados em alguma das circunstâncias definidas em suas alíneas. Com a nova redação, considera-se crime militar os crimes previstos no Código Penal Militar e os previstos na legislação penal, quando praticados em alguma das circunstâncias definidas em suas alíneas.

Houve, portanto, o acréscimo dos tipos penais constantes da legislação penal comum que não possuem idêntica previsão no Código Penal Militar, os quais hoje, se enquadrados em uma das alíneas do art. 9º do Código Castrense serão crimes militares estravagantes, conforme leciona o professor Cícero Coimbra Neves36 e Fernando Galvão37. Outra denominação para essa nova categoria de crimes militares foi cunhada por Ronaldo João Roth com o abono de Jorge Cesar de Assis, segundo os quais trata-se dos “crimes militares por extensão38. Vale lembrar estão incluídos nesse conceito os crimes previstos em leis penais extravagantes como a Lei das Organizações Criminosas (Lei n. 12.850/2013), a Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13.869/2019) e a Lei de Tortura (Lei n. 9.455/1997), mas também os crimes previstos no Código Penal comum (Decreto-Lei n. 2.848/1940), extravagante em relação ao Código Penal Militar.

Nesse sentido, Ronaldo João Roth cita a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “O foro especial da Justiça Militar da União não existe para os crimes dos militares, mas, sim, para os delitos militares, ‘tout court’. E o crime militar, comissível por agente militar ou, até mesmo, por civil, só existe quando o autor procede e atua nas circunstâncias taxativamente referidas pelo art. 9º do Código Penal Militar, que prevê a possibilidade jurídica de configuração de delito castrense eventualmente praticado por civil, mesmo em tempo de paz.”39Assim, o referido autor salienta a importância de os critérios legais para a definição do crime militar serem rigorosamente observados sob pena de abalar a segurança jurídica e violar o princípio da legalidade que vigora do Estado Democrático de Direito.

O crime militares extravagante, segundo a lição do professor Fenando Galvão40, é “crime impropriamente militar, que a doutrina também denomina acidentalmente militar ou crime militar impróprio41, que são os crimes em que “os militares poderiam praticar contra a ordem social comum, da mesma forma como poderiam os civis”. Assim, o professor esclarece que os crimes militares extravagantes são caracterizados por tipos incriminadores inicialmente concebidos para punir sujeitos ativos civis, mas que, quando praticados por militares nas condições estabelecidas no inciso art. 9º do CPM, identificam relevantes desvios na execução das atividades que prestam em favor da sociedade.

Nesse sentido, Ronaldo João Roth evidencia a dimensão da ampliação da competência das Justiças Militares, de forma que as instituições militares serão mais atuantes na prevenção e repressão dos crimes militares, por meio dos mecanismos já previstos como a investigação promovida pela polícia Judiciária Militar, o Inquérito Policial militar ou do Auto de Prisão em Flagrante Militar.42

4. DA CONFIGURAÇÃO DO CRIME MILITAR DE PERSEGUIÇÃO

Considerando os conceitos delineados, deve-se analisar a possibilidade de configuração do crime militar de perseguição. A configuração do crime militar, no caso em que o tipo penal está previsto exclusivamente na legislação penal, depende de se restar configurada uma das hipóteses do art. 9º, incisos II ou III, do Código Penal Militar.

Ronaldo João Roth cita lições de Cicero Robson Coimbra Neves e de Mirabete, que, ao tratar de crimes impropriamente militares, defende que estes se caracterizam diante da tipicidade direta (tipo penal) somado à tipicidade indireta (uma das hipóteses do art. 9º do Código Penal Militar). Defende o referido autor que os crimes que denomina militares por extensão também necessitam preencher a tipicidade complementar para a sua configuração.43

O professor Ronaldo João Roth defende que nos crimes em que o sujeito passivo não é pessoa natural a tipicidade indireta se daria pela alínea “e” do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, uma vez que

se o crime é praticado por militar da ativa, a nosso ver, o fato de o militar se desviar de sua função ou atividade proba para a prática de crimes, e assim violar os valores militares contemplados na legislação castrense, deixando de cumprir o seu dever de ofício no combate ao crime, sua conduta torna-se penalmente relevante, e esse desvio de comportamento naturalmente fere a ordem administrativa militar, tipicidade esta indireta e que acaba englobando muitos dos crimes militares por extensão, se outras alíneas do referido inciso II do art. 9º do CPM não subsumirem a conduta examinada do militar.44

Nesse sentido, a conduta típica de perseguição poderá configurar um crime militar caso autor e vítima sejam militares em situação de atividade, nos termos do art. 9º, inciso II, “a”, do Código Penal Militar. A aplicabilidade, ainda que restrita, é inquestionável. Assim, imaginemos um militar que em seus momentos de folga envia mensagens insistentes a um colega de farda, ou faz-se presente nos locais onde a vítima está, vigiando-a e perseguindo-a reiteradamente.

A perseguição poderia configurar um crime militar, ainda, caso fosse cometida por militar em serviço ou atuando em razão da sua função, nos termos do art. 9º, inciso II, “c”, do Código Penal Militar. Nessa hipótese, a vítima poderá ser qualquer pessoa, militar ou civil, expandindo a sua aplicabilidade.

No tocante a essa hipótese, o Ronaldo João Roth assevera:

de todas as hipóteses previstas no inciso II do art. 9º do CPM, a de maior incidência é aquela praticada pelo militar em serviço ou em razão da função, porquanto são as situações em que o militar pratica um fato típico penalmente no exercício de sua atribuição constitucional e legal, cuja apuração dos fatos deve ser realizada pela Polícia Judiciária Militar que tem atribuição constitucional para tanto (art. 144, § 4º, in fine) e o processo e julgamento será realizado perante a JMU (art. 124, CF), ou perante a JME (art. 125, § 4º, CF)45.

Nesse sentido, chama a atenção o fato de que a atuação do policial militar tem, muitas vezes, uma abertura discricionária sobre como irá cumprir a sua obrigação de policiamento ostensivo e preservação da ordem pública. Além disso, é comum que tais agentes tenham acesso a sistemas de informações que contém uma série de informações pessoais dos cidadãos. Dessa forma, a conduta de perseguição por parte de um militar em serviço poderá ser facilitada pelos meios a que ele tem acesso, o que denota especial reprovabilidade. Noutro giro, sendo comum que tais agentes estejam armados, a capacidade de gerar temor à eventual vítima é ainda mais expressiva.

Imagine a situação de um militar em situação de atividade, Sargento João, que infeliz com o término do relacionamento com Joana (civil), passa a persegui-la:

Sargento João, inicialmente, liga reiteradamente para Joana, tentando reatar a relação. Cansada da insistência das ligações, Joana troca seu número de celular. Para a maioria das situações, essa medida seria suficientemente eficaz. Contudo, com o acesso às informações do sistema da polícia, o Sargento João rapidamente descobre seu novo número e continua a ligar e mandar mensagens para Joana, agora, não só no seu novo número pessoal, mas também nos telefones fixos da sua casa e do seu trabalho. João, em seguida, passa a patrulhar durante o seu serviço a região da casa de Joana durante a noite, fazendo questão de passar na rua da sua casa. Quando escalado para o serviço durante o dia, patrulha a região do trabalho de Joana, e, aos domingos, a região da igreja que Joana frequenta. A percepção de Joana é de que cada passo seu está sendo vigiado, passando a temer inclusive as forças estatais que deveriam protegê-la, por imaginar que os colegas de farda do seu ex não seriam capazes de afrontá-lo.

Essa situação hipotética demonstra o quão grave pode ser a conduta de perseguição por um militar. O Estado outorga ao agente das Instituições Militares o acesso a dados sensíveis e a material bélico que, se utilizado com fins ilícitos podem ser especialmente danosos.

Nesse caso fictício, seria aplicável o regime jurídico de proteção da mulher contra violência doméstica (Lei n. 11.340/2006). Contudo, a perseguição militar também poderá ter outros motivos, como a perseguição a desafeto, a devedor ou a torcedor de time adversário, não importa.

O que se busca demonstrar com esse caso hipotético é a possibilidade de os atos de perseguição ocorrerem enquanto o militar está em serviço e utilizando de meios que somente tem acesso por causa da sua função. Assim, poderá ser configurada a situação prevista no art. 9º, inciso II, “c”, do Código Penal Militar.

Vale mencionar que configurado o referido crime como crime militar, a natureza da ação penal será modificada, uma vez que, nas lições de Ronaldo João Roth46, o Código Penal Castrense prevê que todas as ações penais militares são públicas incondicionadas (art. 121), ressalvadas as exceções do art. 122 do COM, no mesmo sentido é o entendimento de Cícero Robson Coimbra Neves.

Além disso, se a vítima do crime for civil e o autor for membro das Instituições Militares Estaduais, o julgamento será por juízo singular, nos termos do art. 125, § 5º, da Constituição da República, acrescido pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Contudo, isso não ocorrera se o agente for militar federal, posto que não há previsão semelhante no âmbito da Justiça Militar da União. Assim, todos os tipos penais previstos na legislação comum considerados crimes militares por extensão serão conhecidos, na primeira instância, pelo órgão colegiado, o Conselho de Justiça. 47

Além disso, a apuração do crime será de atribuição exclusiva da Polícia Judiciária Militar, nos termos do art. 144, § 4º, da Constituição da República. Referida atribuição é detalhada no Código de Processo Penal Militar, no qual são definidas as autoridades originárias (art. 7º), as autoridades delegadas (art. 10, § 2º), as atividades que lhes competem (art. 8º), sendo o inquérito policial militar (art. 9º), o auto de prisão em flagrante delito (art. 245), a instrução provisória de deserção (art. 451) e a instrução provisória de insubmissão (art. 463) os instrumentos legais para tal mister.48

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi demonstrado, a conduta tipificada pelo novo art. 147-A do Código Penal pode ser praticada pelo militar em serviço, configurando crime militar com fundamento no art. 9º, II, “c” do Código Penal Militar. Nesse caso, o referido crime será de competência da Justiça Militar, que deverá tomar todas as medidas para impedir que as prerrogativas outorgadas ao militar sejam ou continuem sendo utilizadas pelo agente como instrumento para agravar a situação de terror vivido pela vítima.

Medidas como a cassação imediata do porte de arma de fogo, proibição de contato com a vítima, proibição de aproximação a um raio mínimo de distância da vítima e, caso necessário ou descumpridas as medidas anteriores, a decretação de prisão provisória, deverão ser impostas com urgência, para garantir a segurança da vítima e impedir que a prática continue. Caberá ao julgador especial sensibilidade e cuidado com a vítima, dado seu estado psíquico possivelmente já muito afetado.

Só o fato de o agente pertencer à instituição militar pode impedir muitas vítimas de noticiar o crime, por medo de que outros agentes da instituição estejam envolvidos na conduta ou ligados ao colega de forma a impedir sua punição. Por esse motivo, essencial que se aplique o entendimento no sentido de que a ação penal do crime militar é sempre pública incondicionada, afastando a necessidade de representação prevista no art. 147-A, § 3º, do Código Penal.

Além disso, caso seja possível averiguar que o agente se utilizou das prerrogativas que lhe são conferidas para impor ainda maior angústia e aflição à vítima, a culpabilidade da conduta deverá ser valorada com base na maior reprovabilidade por ela gerada, visto que demonstra uma quebra da confiança depositada pela Instituição Militar àquele agente. O Militar que se utiliza do fato de estar armado, de ter acesso a informações sigilosas ou ao poder ínsito à sua patente ou posto para aterrorizar a vítima age com evidente desvio de poder. Tal desvio causa, não só maiores danos à vítima, mas também maior dano à imagem da instituição militar.

Zelar para que crimes como este não fiquem impunes é essencial para garantir que a imagem da Instituição Militar não seja manchada pela dúvida da população quanto à conivência dos militares em relação ao terror e angústia gerados nas vítimas. Não se está defendendo aqui que haja punições exemplares, com o intuito de mostrar a sociedade e aos demais colegas de farda do agente que não se coaduna com aquela prática. Até porque os direitos fundamentais do agente impedem que a pena imposta exceda a culpabilidade da conduta específica do agente. Contudo, tendo notícia, ainda que por parte de terceiros, de indícios da prática da referida conduta por um militar, deve a autoridade policial militar responsável averiguar e instaurar o referido inquérito com a seriedade que a referida conduta merece.

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Sobre a autora
Ione Lewicki Cunha Mello

Advogada, Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Brasileira de Direito – EBRADI.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELLO, Ione Lewicki Cunha. Do crime militar de perseguição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7382, 17 set. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106232. Acesso em: 22 dez. 2024.

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