Em uma sociedade que possui um poder de mando originário de uma Assembléia Constituinte 1 instala em 1987, que laborou, sob o espírito democrático e contraposto ao recente regime militar instalado à época, vislumbrando uma força maior, uma Constituição do Brasil garantidora dos direitos fundamentais do homem e, mais que isso, para não ser cínica, construiu e reforçou as instituições e os modos de acesso ao Poder Judiciário como forma de justiça (habeas corpus, ação popular, mandado de segurança, mandado de injunção, habeas data, Defensoria Pública, Ministério Público, colocação da Advocacia como essencial à administração da Justiça, independência e inamovibiliade da magistratura...), a busca do aperfeiçoamento do Direito deve ser constante.
Passados quase dez anos da novel ordem constitucional brasileira, notamos, sensivelmente, um evolução social, pouca ainda, mais que evolui a cada dia, de maré-montante.
E uma evolução, sem embargos das evoluções sociais propriamente ditas 2 , que ao nosso estudo interessa, é aquela fundada no aperfeiçoamento do Direito e, mais especificamente ainda, o aperfeiçoamento do processo penal.
Esse aperfeiçoamento, sabemos, não foi e nem está sendo construído somente depois da CF/88, pois desde antanhos a legislação, a jurisprudência e a doutrina mudam, caminhando para o aperfeiçoamento, levando com suas idéias e imposições a modificação do pensar do ordenamento jurídico.
Importante lembrar, por oportuno que, com a promulgação de uma nova Constituição, o Estado passa a se adeqüar à mesma, sendo que as leis já editadas são recepcionadas ou revogadas, e as posteriores a ela, válidas-consitucionais ou inválidas-inconstitucionais, vinculando todo o ordenamento jurídico, como se tudo, em uma abstração, tivesse ficado no passado, isto é, apagado da memória jurídica, criando-se um novo ordenamento jurídico. Por isso que Celso Basto diz que a Constituição é a particular maneira de ser do Estado.
Essas preliminares acerta do Direito Constitucional são relevantes, uma vez que a CRFB de 1988 instalou definitivamente o processo penal acusatório, dentre inúmeras disposições influenciadoras no pensar do Direito Criminal, e mais especificamente do Direito Processual Penal.
Evidentemente que, de antemão, deixamos claro a desvinculação ao conceito usual e do vernáculo puro que a palavra lide expressa, pois, aceita a conceituação referida, teríamos uma imaginação que com o desenrolar do processo penal, haveria, sem dúvida, uma "briga", um "combate", uma "contenda", entre o Promotor e o réu, coisa que, absolutamente - o que tentaremos demonstrar a seguir -, não acontece.
Realmente, lide, que vem do latim lis, litis 3, quer mesmo significar contenda, questão, luta, mas deve, juridicamente, cair no entendimento vulgar - permita-nos - de "briga, mas por meio da Justiça". 4
A lide, ou litígio, é visto e desenvolvido depois do pensamento brilhante de Carnelutti, ao conceituar litígio como um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, mas que, no entanto, só ganha força definitiva conceitual quando relacionado com a área cível, pois aqui, nesta área, vige, a priori, direitos disponíveis, e, por isso mesmo, pode haver acordo incentivado pelo juiz da causa, dentro dos autos - conciliação - , e também o acordo, sem participação do juiz (somente homologa), fora dos autos - transação -, podendo, inclusive, negociarem fora dos limites da ação. 5
Tanto é assim, que Roberto Barcellos de Magalhães considerou a lide como objetivo principal do processo civil. 6
No processo penal, o grande desiderato não é a composição do litígio... é sim desvendar, demonstrar, aclarear, encontrar a verdade dos fatos. A finalidade do processo penal é encontrar a verdade real. Encontrada, fica fácil a aplicação do Direito, seja prevalecendo o jus puniendi do Estado, seja prevalecendo o jus libertatis 7 do réu. Tanto o jus puniendi do Estado quando o jus libertatis do réu dependem, para serem efetivados, da descoberta de verdade real. 8
O grande interesse do Estado é, sem dúvida, ver a Constituição Federal ser efetivada... é ver os objetivos estabelecidos no art. 3º, incs. I, II, III e IV se realizarem. Evidente que, se o Estado quer alcançar os objetivos, principalmente - o que nos interessa no momento -, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, com promoção de todos sem preconceitos e qualquer forma de discriminalização, claro que a conseqüência lógica é o estabelecimento do estado de inocência da pessoa humana, como mui sensivelmente adotado pelo próprio povo, via legislador constitucional, cf. art. 5º, inc. 57.
Assim, o Estado respeita, e deve ser o primeiro a respeitar, a presunção de que todos são inocentes. Se o Estado respeita o princípio 9 da presunção de inocência, ele, logicamente, não terá interesse em condenar ninguém, já que será vantajoso para ele perceber que as normas de eficácia limitada de princípio programático da CF estão sendo realizadas e que, por isso, ninguém terá o desejo de cometer crimes, ou agir em desacordo com os mandamentos inseridos nos preceitos normativos - as leis.
Por essa razão, não há que se considerar correto a afirmação que em processo penal exisitiria lide, já que estaríamos diante de um conflito de interesses entre o Estado e o réu, como quer Iêdo Batista Neves. 10 O Estado, como foi dito, tem o interesse de ver efetivado, como conseqüência da efetivação das normas programáticas constitucionais, que o réu, ao final do processo, é inocente, ratificando a presunção. 11
Durante a história, desenvolveram-se vários sistemas processuais penais, desde o primitivo sistema acusatório, passando pelo inquisitivo e misto, e chegando aos sistemas acusatórios puros.
No Brasil, é correto dizer que o processo penal é acusatório puro, mas o sistema é misto, pois há uma fase inquisitiva 12 - Inquérito Policial -, e outra fase acusatória pura, que é o processo penal propriamente dito. Não se podendo mais realizar a autotutela como regra 13, ficou claro o reconhecimento de três funções processuais distintas, realizados por órgãos distintos - a acusação, a defesa e o julgamento. Se realizada todas essas funções por um só órgão, caracteriza o sistema inquisitivo e se realizado por órgãos distintos e independentes, estaremos diante do sistema acusatório 14, e é exatamente o que ocorre no processo penal - não no sistema, pois no sistema 15 brasileiro existe uma fase inquisitiva, que é o Inquérito Policial, como foi dito.
E é assim em função do mando constitucional do art. 129, inciso I, da nossa Constituição Federal, que diz que é função institucional do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, cabendo a esta instituição fazer o papel de acusar e, para tanto, podendo requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, cf. art. 129, inciso II, CF, e art. 5º, II, CPP e, logo a seguir, cuida da defesa, demonstrando que o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações da profissão, assim como a Defensoria Pública, não esquecendo, a Constituição, de cuidar do Poder Judiciário, nos arts. 93. e ss., estabelecendo, nitidamente, as funções de cada órgão: da acusação, da defesa, e do julgamento, distintos e independentes.
Por isso que, todo e qualquer ordenamento que prevê a possibilidade de um órgão exercer funções diversas que as suas próprias, será resquício de inquisitoriedade. 16
Pois bem, com inserção ao tema proposto, e diante dos órgãos distintos e independentes, não há como dizer que dentro do processo penal existe lide, que existe conflito de interesses.
O Ministério Público, tão grandiosamente inserido na Constituição que chega a levar doutrinadores a considerá-lo um verdadeiro Poder 17, não pode intentar uma ação penal visando, única e exclusivamente, a condenação do réu, pois a ele cabe, acima de tudo, a defesa da ordem jurídica (art. 127, CF), e defende-se a ordem jurídica aplicando-se o Direito ao caso concreto, depois que descoberta a verdade real. E mais: o processo penal para a aplicação do direito de punir do Estado, é um serviço de relevância pública, e o direito de liberdade, dignidade, o princípio da presunção de inocência, são direitos assegurados na Constituição e, defendendo o serviço de relevância pública e os direitos assegurados na Magna Carta de 1988, o Ministério Público poderá promover as medidas necessárias para a sua garantia (cf. art. 129, inciso II, in fine, CF/88), não sendo vedado ao Ministério Público recorrer em favor do réu, e muito menos impetrar a ação popular constitucional de Habeas Corpus em seu benefício.
Da mesma forma, a defesa, mesmo influenciada pelos interesses do réu, não pode tentar valer esses interesses, e sim os direitos. 18 A defesa técnica só poderá fazer valer os direitos do acusado, nunca seus interesses, que certamente não estarão tutelados pela lei e, por certo, como de regra, ultrapassarão e desviarão a intenção e a efetivação da lei, não querendo vê-la aplicada. O Ministério Público, sim, poderá fazer valer seus interesses, pois estes sempre estarão protegidos pela lei, uma vez que ele só existe para que a lei seja efetivada, que o ordenamento jurídico seja respeitado e que, precipuamente, os direitos e garantias estejam sempre presentes. Se, em determinado momento processual, houver um interesse, não protegido, ficando o Representante do Parquet em posição desfavorável, essencialmente, não estaremos diante da atuação ministerial, e sim de um Representante isolado querendo fazer valer seus interesses pessoais. 19
No entanto, caberia a indagação de que existiria lide porque a defesa do réu é obrigatória, havendo, assim, uma pretensão resistida... Essa argumentação não pode prosperar, porque a defesa não é obrigatória.
Para que o réu receba a punição do Estado, é-lhe devido um processo penal, e este processo penal só será válido se houver uma defesa, de um lado, e a acusação, de outro, com um juiz previamente competente para julgá-lo - juiz natural -, justamente para formalizar o "due process of law" garantido na Constituição Federal.
Assim, a defesa que é obrigatória é a defesa técnica, como injunção legal, para formalizar o processo. O réu, se assim quiser, pode deixar de se defender, pessoalmente. É que a autodefesa 20 é facultativa 21, tanto é assim que o processo penal poderá correr sem a sua presença, se citado pessoalmente 22 e não comparecer na audiência para seu interrogatório, cf. art. 367. do CPP.
Como diz Fernando da Costa Tourinho Filho, citando Carnelutti, pretensão é a exigência de subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio e, assim, na lide, há um interesse subordinante e um interesse subordinado (Processo Penal, Vol. 1, Saraiva, 15ª edição, p. 5). No processo penal, o Ministério Público não quer ver seu interesse subordinando o interesse do réu, como presunção antes mesmo de começar o processo, pois, na verdade, quer muito mais que isso, quer ver a verdade real descoberta, e a conseqüente aplicação da lei, tanto é assim que, como já foi dito, se verificar que houve um engano abominável que redundou na condenação do réu, poderá - leia-se, mais corretamente: deverá - recorrer em seu benefício e, se verificar que, na fase inquisitiva, está havendo prisão ilegal, poderá impetrar Habeas Corpus, fazendo uso indireto da sua competência para controlar externamente a Polícia (art. 129, VII, CF), como também para zelar direitos e garantias inseridos na Constituição Federal (art. 129, II, CF). Diríamos que o verdadeiro interesse do Ministério Público é, junto com o objetivo do próprio processo, transformar a verdade real em verdade formal... o interesse na condenação surge depois que a verdade for descoberta 23, chegando mesmo a ficar relegada a uma segundo plano o interesse na condenação.
No processo penal não se visa colocar um interesse acima do outro, pois o que vai prevalecer é o interesse que estiver protegido pelo Direito. Na verdade, o que se quer é mudar a verdade real, e o réu não pode querer subordinar o interesse da acusação ao seu interesse... ele quer é, quando muito, mudar a verdade real, ou então fazer com que a mesma não fique provada, estando a defesa técnica obrigada a não se coadunar com a acusação, porém com a manutenção da sua obrigação de não manter iniqüidades para desvirtuamente da verdade real 24. Ele, o réu, quer a absolvição, ou a melhor condenação 25. No decorrer dos atos com vista à aplicação da lei, se quer, mais que "compor o litígio", aplicar o Direito ao caso concreto desvendado após o correr do processo.
Outra indagação, no momento, poderia surgir: mas quando da denúncia, não deve ser presumida a culpa do réu, em favor da sociedade? Sim, mas a in dubio pro societatis no momento da denúncia, assim entendemos, serve para que outro princípio da Constituição Federal seja respeitado, que é o princípio do juiz natural.
O Promotor de Justiça, no momento da denúncia, não pode presumir que o réu é inocente, e conseqüentemente deixar de oferecê-la, justamente porque estaria retirando o direito do próprio réu de ver-se julgado por seu juiz previamente competente, que é o juiz togado - competência singular -, o Tribunal - competência originária -, ou juiz popular - competência do Tribunal do Júri. Deve deixar que o seu verdadeiro julgador faça as vezes do julgamento, tendo incidência o in dubio pro reo quando da sentença final, ao analisar a prova 26.
O ordenamento jurídico-penal brasileiro demonstra isso, com a recente Lei 9.099/95, em que é possível a composição civil e a transação penal 27 (em conformidade com o mando constitucional do art. 98, I), fazendo-nos perceber que, na verdade, o processo contra o réu, seja via Juizados Especiais Criminais ou via processamento ordinário comum e tradicional, não demonstra a lide.
Outra indagação que não se pode colimar ao ostracismo é o fato que a palavra lide sempre foi e sempre deverá ser empregada no caso de Justiça Privada, em que uma parte, mediante esforço particular, debate com outra parte, criando a contenda perante o Poder Judiciário, o que não ocorre no processo penal, cujo dano decorrente do crime reveste-se de sociabilidade, de interesse público.
No Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Vicente Cernicchiaro faz questão de deixar claro a inexistência da lide no processo penal, alegando, entre outros motivos, a prioridade, já destacada, pela busca da verdade real, sem presença de conflito de interesses, assim como pela descaracterização do processo penal como Justiça Privada. 28
Não podemos olvidar que não se pode afirmar que no processo penal não há lide, sem exceções. Estamos nos referindo, até o momento, às ações penais em que cabe única e exclusivamente ao Ministério Público, mediante representação ou mesmo de forma incondicionada. A ação penal privada e a exclusivamente privada, é característica da existência da lide, pois, no caso, o Querelante não quer, na verdade, ver um interesse protegido pela lei - direito - sendo aplicado, e sim um interesse geral 29 de condenação, não importando ao Querelante se o Querelado tem ou não interesses ou direitos, pois o Querelante, diferentemente do Ministério Público, não tem o dever de defender o ordenamento jurídico, as garantias constitucionais ou a descoberta da verdade real.
Entre os elementos estabelecidos legalmente para o aperfeiçoamento da denúncia, estão a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas, cf. art. 41, CPP, e não aparece a necessidade do pedido de condenação. Na verdade, se houvesse a lide, o legislador teria inserido mais outro requisito, que seria o pedido de condenação 30 , sob pena de falta de interesse na causa. Não pode ser rejeitada ou não recebida 31 a denúncia se não for pedido a condenação, por tudo quanto dito.
O Direito, na sua divisão penal, está em constante ebulição doutrinária, jurisprudencial e, até, legislativa e, conforme havíamos dito no início deste trabalho, é necessário o aperfeiçoamento constante do processo penal, cada vez mais dando força, autonomia e independência aos órgãos competentes para a acusação, para a defesa e para o julgamento, chegando-se a uma época em que, com a consciência de que o crime sempre fará parte da sociedade, a punição para os desvios de conduta seja célere, justa, com um mínimo de caráter nemésico, e com o máximo de caráter ressocializador.
O nosso entendimento é que será proporcional a inexistência da lide no processo penal com a proximidade da realidade de que a pena terá, acima de tudo, um caráter ressocializador e, mesmo que o caráter vingativo não possa ser extirpado, que ao menos exista dentro do mínimo, pois, acima do interesse da vítima em sacrificar seu algoz, está o da sociedade em vê-lo ressocializado, não somente com tom romântico, mas também porque não se deseja o alto custo de mantê-lo em prisões eternamente.
É bom repetir: acreditamos que a falta de lide no processo penal só vem a ratificar e fazer, mediante corolário lógico, com que o Direito Criminal enfraqueça a falta de caráter nemésico da pena, e que fortifique o seu lado ressocializador.