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O ônus da prova e sua inversão no CDC

23/11/2007 às 00:00
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I. Prova e ônus da prova

1.Prova, define Dinamarco, é "um conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as quais se procura chegar à verdade quanto aos fatos relevantes para o julgamento" [01], e se destina a formar a convicção do julgador [02].

Como o julgamento a ser proferido no processo – a afirmação do direito – depende ocorrência de determinados fatos sobre os quais incidirá a norma aplicável ao caso concreto – ex facto oritur jus –, e como a lei afirma que o juiz nada sabe sobre os fatos – "a institucionalizada ignorância do juiz quanto aos fatos relevantes para o julgamento" [03] –, salvo os notórios (CPC 334, I), é preciso que as partes tragam os fatos aos autos do processo.

O meio que a legislação oferece às partes de demonstrar ao juiz que os fatos por si alegados ocorreram no mundo fático (externo ao processo) é a produção de provas.

2.No processo judicial a prova recairá ordinariamente sobre matéria de fato (CPC 332), e somente excepcionalmente sobre matéria de direito (CPC 337) – na verdade, será objeto de prova a existência e validade do direito, e não o direito em si [04]. "O resultado a ser obtido mediante a instrução probatória é o conhecimento dos fatos e conseqüente firmeza para proferir a decisão." [05]

"Como para o juiz fato não provado é fato inexistente, ao ônus de alegar segue-se como corolário quase constante o de provar as afirmações contidas na narrativa de fatos. Esse encargo é estreitamente ligado à controvérsia instaurada no processo entre afirmações antagônicas das partes – uma afirmando a ocorrência do fato e outra negando-a ou afirmando outros fatos que excluem a ocorrência daquele. Onde não houver questão de fato, que se define como dúvida em torno de um ponto de fato, não há o ônus de provar a alegação feita (art. 334, inc. I). Havendo-a, cada uma das partes tem o encargo e o interesse de provar as afirmações que a favorecem." [06]

Assim, via de regra, a prova recairá sobre aqueles fatos controversos quanto à sua ocorrência ou inocorrência – não pendendo controvérsia sobre determinado fato, a lei permite ao juiz aceitá-lo como existente (CPC 302; 319; 334, II-III)

3.O próprio CPC (art. 333) regula a distribuição do ônus da prova – a quem cabe provar o objeto da prova, "a ocorrência dos fatos de seu próprio interesse para as decisões a serem proferidas no processo" [07], arcando com as conseqüências de sua omissão. Como regra geral, cabe ao autor provar o fato constitutivo de seu direito; ao réu o fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor; e à parte que o alegar, a prova do direito local, estrangeiro ou consuetudinário.

"O princípio do interesse é que leva a lei a distribuir o ônus da prova pelo modo que está no art. 333 do Código de Processo Civil, porque o reconhecimento dos fatos constitutivos aproveitará ao autor e o dos demais ao réu; sem a prova daqueles, a demanda inicial é julgada improcedente e, sem a prova dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos, provavelmente a defesa do réu não obterá sucesso." [08]

Outrossim, segundo a regra da aquisição da prova, pouco importa quem tenha produzido a prova – pela parte que tinha o ônus de realizá-la, pelo adversário, ou mesmo por terceiro –; uma vez nos autos, será levada em consideração no momento do julgamento. [09]

4.Fatos constitutivos do direito do consumidor, nas hipóteses de responsabilidade do fornecedor por vício ou fato do produto ou serviço, são o ato ilícito realizado pelo fornecedor, a ocorrência do dano, e o nexo de causa e conseqüência. Haverá ainda algumas situações em que será necessária a prova da culpa do agente na realização do ato ilícito (CDC 14, §4º).

No âmbito do CDC, o art. 6º, VIII, prevê como direito básico do consumidor "a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência". Busca-se, assim, assegurar a igualdade material entre fornecedor e consumidor no processo em razão da reconhecida posição de vulnerabilidade ocupada pelo consumidor (CDC 4º, I) [10].

Essa regra se desdobra ainda naquelas contidas no CDC 12, §3º e 14, §3º – onde se determina que cabe ao fornecedor provar que não colocou o produto no mercado, ou que o produto ou o serviço não é defeituoso, ou ainda que o dano ocorreu por culpa exclusiva do consumidor –, e no CDC 38 – prevendo que o patrocinador da informação ou comunicação publicitária tem o ônus de provar a sua veracidade e correção.

Nos art. 12, §3º; 14, §3º; e 38 está prevista a inversão legal do ônus da prova em desfavor do fornecedor nos casos de fato do produto/serviço e de publicidade enganosa. [11] Não se trata de mera limitação das matérias de defesa alegáveis pelo fornecedor – a lei criou verdadeiras hipóteses de presunção da existência do ato antijurídico e de seu nexo causal com o dano.

Assim, a inversão judicial somente se mostra necessária nos casos de vício do produto/serviço, responsabilidade do comerciante pelo fato do produto/serviço, propaganda abusiva, e na proteção das práticas comerciais, inclusive quanto à existência de cláusulas abusivas, bem como em relação à existência de culpa do profissional liberal na responsabilidade pelo fato do serviço/produto. Somente nessas hipóteses caberá ao consumidor provar os fatos constitutivos de seu direito, podendo ser beneficiado, no caso de não o fazer, pela aplicação da inversão judicial do ônus da prova nas hipóteses previstas na lei – no capítulo da proteção contratual não se vislumbra a necessidade de prova de fato, sendo inaplicável esse remédio legal.

Em qualquer hipótese o dano não é presumido, e deve ser sempre comprovado pelo consumidor, salvo, é claro, eventual aplicação da inversão judicial do ônus da prova.

5.Temos então que no processo que tenha objeto relação de consumo, a inversão do ônus da prova, com fundamento no art. 6º, VIII, não se dará de forma automática, mas a critério do juiz – é a chamada inversão judicial do ônus da prova.

Anote-se ainda a ressalva que se faz quanto à terminologia utilizada pelo legislador, pois na verdade não se trata de ‘inversão do ônus da prova’, "já que nada é invertido, em termos da prova. Não se determina nem se pode determinar que o autor faça a prova do réu, ou o réu faça a prova do autor. O que se dá é que, no momento de julgar, o magistrado está autorizado, como último recurso, a ‘inverter a regra comum de distribuição do ônus da prova’". [12]

A inversão judicial deve ser determinada com cautela; para Dinamarco ela será ineficaz "quando for além do razoável e chegar ao ponto de tornar excessivamente difícil ao fornecedor o exercício de sua defesa. Eventuais exageros dessa ordem transgrediriam a garantia constitucional da ampla defesa e conseqüentemente comprometeriam a superior promessa de dar tutela jurisdicional a quem tiver razão (acesso à justiça)." [13]

6.Esse tratamento diferenciado dispensado ao consumidor pela lei se justifica no reconhecimento da posição de vulnerabilidade ocupada pelo adquirente do produto ou serviço no mercado de consumo.


II. Momento da inversão – regra de julgamento

1.O ônus de provar considera-se cumprido quando a instrução processual chegar "à demonstração razoável da existência do fato, sem os extremos da exigência de uma certeza absoluta que muito dificilmente se atingirá. (...) Basta que, segundo o juízo comum do homo medius, a probabilidade seja tão grande que os riscos de erro se mostrem suportáveis" [14] – é o que Dinamarco chama de prova suficiente.

2.Dinamarco aponta como vital ao sistema a regra de julgamento segundo a qual "fato não provado é fato inexistente".

Quando a prova convence o juiz do acerto ou do erro de uma alegação, "ele simplesmente decidirá segundo sua convicção e não há por que pensar no ônus da prova ou saber sobre qual das partes ele recaía. Fato provado é fato existente e o juiz julga segundo ele." [15]

Na hipótese de pairar dúvida sobre os fatos, somente aí o juiz recorrerá, em sendo o caso, como que a uma regra de desempate, à inversão do ônus da prova em favor do consumidor.

Assim, é no momento do julgamento, ao verificar a ocorrência dos fatos alegados que terá relevância a aplicação da regra de julgamento. [16]

Não obstante, tiramos do CPC 331, e em especial de seu §2º, que é obrigação do julgador informar às partes do ônus que cada uma tem e adverti-las das conseqüências de eventual omissão – "a transparência das condutas judiciais é uma inafastável inerência do due process of law e da exigência do diálogo que integra a garantia constitucional do contraditório" [17].

Rizzatto [18] e Theodoro Jr. [19], porém, entendem que a própria inversão do ônus da prova, e não apenas a sua comunicação deverá ocorrer em momento anterior ao julgamento – entre o recebimento da inicial e decisão saneadora, para Rizzatto, e na decisão saneadora para Theodoro Jr.. Não obstante, com base nos argumentos acima traçados, entendemos que tal posição é insustentável.

Mirella Caldeira [20] adota posição intermediária, defendendo que somente será regra de julgamento nos casos de responsabilidade extracontratual, o que rejeitamos pelos mesmos argumentos.


III. Hipóteses de aplicação

1.Se, após valorar a prova produzida o julgador ficar em estado de incerteza, não sendo permitido o non liquet (CPC 126), ele poderá inverter ônus de produção da prova uma vez verificadas as hipóteses de cabimento – quando houver verossimilhança das alegações do consumidor, ou quando ele for hipossuficiente.

A existência das hipóteses de cabimento no caso concreto – hipossuficiência ou verossimilhança – será aferida pelas regras de experiência, que são "o conjunto de juízos fundados sobre a observação do que pode acontecer, podendo formular-se em abstrato por todo aquele de nível mental médio. Servem de critério e guia para a solução relativa à questão da prova, não sendo necessário que o juiz sobre elas se pronuncie expressamente na sentença ou decisão" [21].

Para Rizzatto [22], trata-se na verdade de um dever do magistrado inverter o ônus da prova sempre que presente uma das hipóteses de sua aplicação.

Temos de forma clara que são duas hipóteses distintas e independentes, uma vez que o legislador se utilizou da conjunção disjuntiva "ou", e não da aditiva "e". Vejamos abaixo cada uma delas.

2.Verossimilhança é "juízo de probabilidade extraída de material probatório de feitio indiciário, do qual se consegue formar a opinião de ser provavelmente verdadeira a versão do consumidor" [23].

Segundo Malatesta, a probabilidade "é a convergência de elementos que conduzem razoavelmente a crer numa afirmação, superando a força de convicção dos elementos divergentes desta." [24]

A verossimilhança não é verificada simplesmente pelo bom uso da técnica de argumentação; é preciso que da narrativa decorra a verossimilhança dos fatos alegados na peça inicial em contraste com aquelas apresentados pela defesa, e com base nas regras ordinárias de experiências (CPC 335). [25]

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3.A hipossuficiência é, para Theodoro Jr., a impotência do consumidor "para apurar e demonstrar a causa do dano cuja responsabilidade é imputada ao fornecedor. Pressupõe uma situação em que concretamente se estabeleça uma dificuldade muito grande para o consumidor de desincumbir-se de seu natural onus probandi, estando o fornecedor em melhores condições para dilucidar o evento danoso" [26] – ressalvamos apenas que o citado autor entende que a hipossuficiência pode ser de qualquer natureza, enquanto nos filiamos à corrente de que a que releva ao CDC é apenas a técnica.

Sendo o consumidor hipossuficiente, do ponto de vista técnico – pouco importa se também o seja do ponto de vista econômico [27], pois para esses há a Lei 1.060/50 –, no sentido de desconhecimento da questão em si, ou dificuldade de obtenção de dados periciais [28].

A hipossuficiência deve sempre ser constatada para o caso concreto. "São as circunstâncias do problema aventado e em torno do qual o objeto da ação gira que determinarão se há ou não hipossuficiência" [29]; aquele que é hipossuficiente numa determinada relação, pode não o ser noutra.


BIBLIOGRAFIA

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, vols. II e III. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003.

FILOMENO, José Geraldo Brito; et alii. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

CALDEIRA, Mirella D’Angelo. Inversão do ônus da prova. In: www.saraivajur.com.br. Acessado em 21/05/2006.

MONNERAT, Carlos Fonseca. Momento da ciência aos sujeitos da relação processual de que a inversão do ônus da prova pode ocorrer. In: Revista de processo, n. 113. São Paulo: RT, jan-fev/2004. p. 77-87

NERY JR., Nelson; et al. Código de processo civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 3ª ed., São Paulo: RT, 1997.

NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005.

THEODORO JR., Humberto. Direitos do consumidor. 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004.


Notas

01 Dinamarco, Instituições v. III, n. 780, p. 43.

02 Cf. Cecília Matos, ‘O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor’, in: Revista de direito do consumidor, n. 11 apud Filomeno, Código comentado, p. 143.

03 Dinamarco, Instituições v. III, n. 780, p. 43.

04 Cf. Dinamarco, Instituições v. III, n. 791, p. 69-70.

05 Dinamarco, Instituições v. III, n. 780, p. 43.

06 Dinamarco, Instituições v. II, n. 525, p. 257-258.

07 Dinamarco, Instituições v. III, n. 792, p. 71.

08 Dinamarco, Instituições v. III, n. 794, p. 73.

09 Cf. Dinamarco, Instituições v. III, n. 802, p. 85.

10 Trata-se de assunção legal, e não mera presunção, que, como ficção que é, admite prova em contrário.

11 Theodoro Jr. entende que somente as hipóteses do CDC 12, §3º, II; 14, §3º, I; e 38 são de presunção de vício do produto/serviço e de inveracidade da publicidade (in: Direitos do consumidor, p. 147).

12 Monnerat, ‘Momento da ciência’, p. 85.

13 Dinamarco, Instituições v. III, n. 799, p. 80-81. No mesmo sentido: Theodoro Jr., Direitos do consumidor, p. 144-147.

14 Dinamarco, Instituições v. III, n. 800, p. 81.

15 Dinamarco, Instituições v. III, n. 801, p. 82.

16 Cf. Watanabe Código comentado, p. 796; Nery Jr., CPC comentado, notas 15 e 18 ao art. 6º, VIII, do CDC, p. 1354-1355; Monnerat, ‘Momento da ciência’, p. 84-86.

17 Dinamarco, Instituições v. III, n. 801, p. 84. No mesmo sentido: Watanabe, Código comentado, p. 797.

18 Rizzatto, Comentários, p. 134-137.

19 Theodoro Jr., Direitos do consumidor, p. 147-149.

20 Mirella Caldeira, ‘Inversão do ônus da prova’.

21 Nery Jr., CPC comentado e legislação extravagante, nota 17 ao art. 6º, VIII, do CDC, p. 1354.

22 Rizzatto, Comentários, p. 132.

23 Theodoro Jr., Direitos do consumidor, p. 143.

24 Malatesta apud Dinamarco, Instituições v. III, n. 799, p. 80-81.

25 Cf. Rizzatto, Comentários, p. 132-133.

26 Theodoro Jr., Direitos do consumidor, p. 143.

27 Cf. Rizzatto, Comentários, p. 133; Watanabe, Código comentado, p. 794-795.

28 Filomeno, Código comentado, p. 148.

29 Mirella Caldeira, ‘Inversão do ônus da prova’.

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Sobre o autor
Marcelo Azevedo Chamone

Advogado, Especialista e Mestre em Direito, professor em cursos de pós-graduação

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAMONE, Marcelo Azevedo. O ônus da prova e sua inversão no CDC. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1605, 23 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10681. Acesso em: 25 abr. 2024.

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