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O acúmulo de mais de dois períodos de férias adquiridas, mas não gozadas, por necessidade do serviço ou não, implica perda do direito?

A exegese do art. 77, da Lei nº 8.112/1990

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A errônea exegese de perda do direito de férias agrediria o caráter essencial do repouso legal remunerado.

1. Introdução

Ainda são freqüentes as consultas dos órgãos da Administração Pública acerca da exegese do art. 77, da Lei federal 8.112/1990, que reza:

Art. 77. O servidor fará jus a trinta dias de férias, que podem ser acumuladas, até o máximo de dois períodos, no caso de necessidade do serviço, ressalvadas as hipóteses em que haja legislação específica. (Redação dada pela Lei nº 9.525, de 10.12.97) – negrito não original

O funcionário público perderá seu direito de usufruto se fator diverso da necessidade do serviço, como o afastamento a título de cuidados com a própria saúde, ou mesmo a simples omissão do servidor em marcar as suas férias, produzir o efeito de cumulação de mais de dois períodos de descanso legal não usufruídos?


2. Interpretação teleológica do art. 77, da Lei 8.112/1990

A despeito da discussão em torno do problema de o acúmulo ficar vinculado, ou não, à necessidade de serviço, para fins de autorizar a acumulação lícita de mais de dois períodos, impende enfatizar que a regra legal que dispõe sobre a proibição, como regra geral, do referido acúmulo de mais de dois períodos de férias (art. 77, Lei 8112/1990, c. c. com o art. 22, da Lei distrital n° 3.319/2004) se fundamenta na premência de descanso físico do servidor público, após o desforço contínuo de um ano ou mais de trabalho anterior, com vistas à preservação da saúde do agente público.

O preceptivo legal, portanto, em vez de se inspirar num cuidado imediato com os interesses da Administração Pública, destina-se, na verdade, a tutelar diretamente a higidez física e mental do servidor público, o qual, como ser humano, depende de descanso geralmente anual, em princípio, para restabelecer suas energias e manter o equilíbrio psicológico e corporal, escopo que é alcançado com a fruição efetiva das férias.

O desiderato legal é tão zeloso em assegurar o efetivo usufruto das férias pelo agente público (o que termina indiretamente por representar benefício para a Administração, a qual poderá contar com a disposição física e mental e o pleno vigor do agente descansado e apto novamente, depois de desfrutar de férias, para exercer com saúde e devotamento suas atribuições funcionais) que assegura, como direito do agente público, que as férias somente poderão ser acumuladas, isto é, não gozadas por mais de dois períodos, em caso de premente necessidade do serviço.

Enfatize-se. Não se trata, pois, de direta tutela dos interesses da pessoa jurídica federativa e sua Administração Pública pela regra legal proibitiva, em princípio, do acúmulo de férias, mas, sim, do imediato resguardo da saúde do agente público, cujo corpo reclama descanso e restauração mediante férias dos labores funcionais, objetivo que favorece, em última instância, por via indireta, o interesse administrativo de boa condição de higidez do funcionário, pressuposto para o bom exercício das atribuições funcionais em proveito do Estado.


3. A questão da necessidade do serviço e o acúmulo de férias não fruídas: princípios da razoabilidade e eficiência

É evidente que, em havendo necessidade do serviço, não há caráter absoluto do direito às férias em relação à data de sua fruição, que poderá, portanto, admitir eventual acúmulo de mais de dois períodos. A disposição legal tem feição relativa, não sendo absoluta a determinação do usufruto do descanso, se o interesse administrativo demanda a permanência em atividade do funcionário. Deve ser respeitado, porém, o limite físico e mental que o agente público pode suportar sem o repouso legalmente estatuído ao longo de períodos geralmente anuais. Seria incompatível com o princípio da razoabilidade e mesmo da eficiência administrativa, reitores da Administração Pública, a submissão da pessoa natural do servidor, por anos a fio, sem desfrutar de férias. Tal situação poderia gerar colapso no agente, o qual partiria, em conseqüência, inevitavelmente, para tratamento de saúde prolongado, rendendo, ao final, em vez de lucro, prejuízo para as atividades administrativas e para o erário – ante o forçoso custeio, provavelmente, do alongado afastamento médico do funcionário, como contrapartida da supressão do descanso ordinário de tempos em tempos (férias), sendo que outro servidor, sobretudo no caso de titulares de postos comissionados, deverá ser designado e remunerado para substituir o agente afastado por motivos médicos.

É fato, sim, que não há, realmente, direito absoluto do servidor de gozar férias quando acumula mais de dois períodos, podendo ocorrer sustação ou adiamento, se houver justificada e robusta necessidade do serviço.


4. Crítica à tese de possibilidade de perda do direito de períodos acumulados de férias não gozadas, na presença ou não da necessidade do serviço

Não se pode, em absoluto, incorrer em exegese equivocada e improcedente, data venia, de que a acumulação de mais de dois períodos de férias não gozadas acarretaria, ipso facto, a decorrente perda do direito ao descanso pelo servidor, interpretação que colidiria diretamente com a teleologia do dispositivo legal, que se dirige mais imediatamente para a proteção da saúde do agente público do que para a direta consideração dos interesses do Estado.

Na verdade, o fato de o agente acumular mais de dois períodos de férias, em vez de lhe acarretar prejuízo, com a suposta perda do direito ao descanso, o que não se pode admitir em absoluto, deve resultar em louvor e reconhecimento do espírito público do funcionário em, apesar de poder desfrutar de repouso mensal, permanecer fornecendo sua força de trabalho em proveito da Administração Pública.

Seria um disparate, com efeito, entender que quem se empenhou, renunciando ao seu conforto pessoal para melhor servir o Estado, deva suportar gravame com sua conduta meritória e devotada à causa da Administração Pública.


5. Do proveito financeiro estatal com a permanência em atividade ininterrupta do servidor com direito a férias acumuladas e a regra da vedação ao enriquecimento sem causa

Some-se que, ainda que o agente administrativo não tenha tido ânimo heróico ou inspiração de "amor à camisa" pelo serviço público no ato de voluntariamente ensejar a acumulação de períodos de férias não gozados, de forma tácita por não marcar seu pretendido período de usufruto, ainda assim não se poderia julgar senão que a Administração Pública termina, sim, de todo modo, sendo favorecida com a manutenção em serviço de quem poderia estar descansando remuneradamente, haja vista que os estatutos do funcionalismo, de regra, como ocorre no caso do Distrito Federal (art. 35, I, Lei Orgânica do DF [01]), rezam que outro servidor deva assumir os encargos do funcionário em gozo de férias, inclusive com o pagamento pelo Estado de gratificação do titular em favor do substituto designado. Deste modo, visivelmente, há vantagem mesmo de ordem financeira para o erário quando o funcionário não desfruta de seu descanso legal anual ou periódico do direito capitulado nos arts. 7º, XVII, e 39, § 3º, da Constituição Federal vigente, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998.

Daí que o próprio enunciado legal da vedação ao enriquecimento sem causa (art. 884, Código Civil de 2002) confere o direito à respectiva conversão em pecúnia ao servidor que, em virtude de aposentadoria (voluntária, por invalidez ou compulsória, sem discriminação entre as hipóteses) ou morte, deixou de usufruir férias acumuladas.

É como decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:

ADMINISTRATIVO - DIREITO ADQUIRIDO - FÉRIAS NÃO GOZADAS - ACUMULAÇÃO EM VIRTUDE DE GOZO DE LICENÇA PARA TRATAMENTO DE SAÚDE - INDENIZAÇÃO. I - SE, DE UM LADO, A FRUIÇÃO E A ACUMULAÇÃO DAS FÉRIAS A QUE FAZ JUS O SERVIDOR REPOUSAM EM RAZÕES DE ORDEM LEGAL (ART. 77 DA LEI N° 8112/90), DE OUTRO, ALÉM DESSAS RAZÕES, FUNDAMENTA-SE NÃO SÓ EM PRINCÍPIOS BÁSICOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, MAS, TAMBÉM, NA APLICABILIDADE PLENA DAS NORMAS DA LEI MAIOR, A INCUMBÊNCIA, QUE SE ATRIBUI À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, COMO UM DEVER, DE PROVIDENCIAR PARA QUE SEUS SERVIDORES NÃO DEIXEM DE USUFRUIR DAS FÉRIAS ANUAIS REMUNERADAS. II - A LICENÇA PARA TRATAMENTO DE SAÚDE HÁ DE SER TIDA COMO PERÍODO DE EFETIVO EXERCÍCIO, PELA INTELIGÊNCIA DO ART. 102 DA LEI N° 8.112/90. III - É DE SE RESSALTAR QUE, "(...) PRESENTE DIREITO ADQUIRIDO A UM PERÍODO COMPLETO DE FÉRIAS, NÃO GOZADAS EM PRESUMIDO INTERESSE DA ADMINISTRAÇÃO, TRANQÜILAMENTE DEVIDA A RESPECTIVA INDENIZAÇÃO. É QUE NÃO SE PODE LOCUPLETAR O PODER PÚBLICO ÀS CUSTAS DO TRABALHO DO SERVIDOR.(...)" (IN TJDF, APC N° 33.806/94, 14.11.94, VOTO DO REV. DES. MÁRIO MACHADO). [02]

Esse entendimento é corroborado pela interpretação sistemática do direito positivo brasileiro, haja vista a instituição da figura do abono de permanência (art. 2º, § 5º, da Emenda Constitucional n. 41/2003), de natureza jurídica recentemente reconhecida como indenizatória pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal, visto que se trata de incentivo para o servidor que, apesar de poder se aposentar voluntariamente, sem ainda estar incurso em hipótese de aposentadoria compulsória por implemento do limite de idade, prefere, não obstante, permanecer em atividade, gerando para tanto proveito financeiro e fornecimento de sua mão-de-obra em favor do Estado, quando seria provavelmente necessário preencher a vaga, mediante a nomeação de terceiro servidor e pagamento de remuneração, no lugar que seria deixado em aberto na lotação administrativa pelo funcionário que ingressa na inatividade remunerada.

Daí que o ordenamento jurídico defere o benefício ao servidor que permanece em atividade, quando já poderia desfrutar da aposentadoria voluntária, não mais ser compelido a sofrer desconto a título de contribuição previdenciária, como incentivo financeiro mais que justificado, como previsto na Constituição Federal de 1988:

Art. 40...............................................................................

..........................................................................................

§ 19. O servidor de que trata este artigo que tenha completado as exigências para aposentadoria voluntária estabelecidas no § 1º, III, a, e que opte por permanecer em atividade fará jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição previdenciária até completar as exigências para aposentadoria compulsória contidas no § 1º, II. (parágrafo incluído pela Emenda Constitucional nº 41, 19.12.2003)

Por essa mesma razão, não parece harmônica com o ordenamento jurídico a interpretação de que o servidor, já onerado pelo trabalho ininterrupto sem usufruto de férias ordinárias, ainda tenha que suportar, por absurdo, os iníquos e inaceitáveis efeitos da suposta perda do direito de descanso, apenas pelo paradoxal motivo de que o funcionário não exerceu o direito em comento, por força de seu espírito público e amor à Administração em muitos casos, ou mesmo por força de consentimento estatal tácito pela omissão administrativa em indicar período concessivo de férias para o agente com períodos acumulados de aquisição do direito em alusão.


6. A exegese do art. 77 da Lei 8.112/1990 não pode ser procedida em desproveito de quem a norma procurou favorecer

Ora, se o preceptivo legal tem em mira zelar pela recuperação da disposição e energia do servidor com o justo gozo de férias, após o exaurimento decorrente do prolongado período de desforços funcionais contínuos ao longo de um ano ou mais de serviços prestados à Administração, seria um intolerável atentado contra a própria finalidade da norma defender que o acúmulo de mais de dois períodos deveria resultar na perda do direito de descanso mensal remunerado, em prejuízo do servidor, promovendo-se exegese em desproveito de quem, na verdade, a regra legislativa procurou antes proteger, quando a hermenêutica do direito leciona que, na interpretação normativa, deve-se compreender as regras em favor daqueles que a lei procurou contemplar.

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Se o repouso é tão importante a ponto de o estatuto do funcionalismo proclamar a máxima genérica de que, em princípio, as férias não devem ser acumuladas por vários períodos, a fim de que o servidor público não seja submetido, salvo em caso de premente necessidade do serviço, ao penoso sacrifício pessoal da perda do descanso legal, necessário à recuperação de seu vigor físico e mental depois de ininterrupta atividade funcional, seria ainda mais gravosa e divorciada da voluntas legis, não bastasse a já omissão administrativa em designar o período concessivo das férias ao servidor omisso a esse respeito, a interpretação de que o agente público, então, perderia o próprio direto fundamental de descanso mensal, na medida em que a Administração estaria defendendo, inaceitavelmente, por via indireta, a própria negação do direito de assento constitucional.

Não bastasse, a inteiramente errônea exegese de pretensa perda do direito de férias agrediria, contrariando diretamente o texto legal, o caráter essencial do repouso legal remunerado, justificando-se, por absurdo, que o agente público não precisaria ou poderia dispor do revigoramento de sua saúde física e mental, preceito inalienável no ordenamento jurídico e que não colima tão-somente contemplar a pessoa biológica do funcionário público, mas também assegurar, inclusive em conformidade com o princípio constitucional da eficiência e o mediato interesse estatal aí contido, que o servidor atuará, no desempenho funcional, com capacidade orgânica em bom estado, revigorada após o salutar repouso legalmente previsto, e não se sujeitar o ser humano, de carne e osso, a extenuante exploração de sua força de trabalho sem descanso e com a perda do direito de férias, se acumuladas.


7. Os efeitos financeiros e administrativos adversos para o Estado no caso da exegese pela perda das férias acumuladas e não gozadas: a possibilidade de perseguição e abusos contra os servidores decorrente desse entendimento

A via da supressão do direito de férias acumuladas e não fruídas terminaria resultando, sublinhe-se, em prejuízo do Estado, o qual, depois de explorar a força de trabalho de seu servidor sem lhe permitir o repouso legal em testilha, teria que arcar com o pagamento da remuneração integral do funcionário exaurido e estressado, que provavelmente será forçado, pela doença ou enfermidade decorrente da privação do repouso estatutário, a afastar-se do serviço para cuidar da própria saúde, quiçá por meses a fio, até reivindicar possível aposentadoria por invalidez, com proventos integrais, despesas muito superiores para o erário do que o simples deferimento esporádico dos períodos de férias regulamentares, seguidos do retorno do servidor à atividade ordinária com vigor e saúde, o que aproveita, sem dúvida, a Administração Pública.

Mais ainda, entender que ocorreria a perda do direito de férias em caso de acúmulo poderia ensejar a situação de o superior hierárquico, por comodidade da repartição (sem todavia invocar, formalmente, necessidade do serviço, ocultando-dissimuladamente) ou mesmo para prejudicar subordinados antipatizados, negar, informalmente, não por escrito, o usufruto de férias (principalmente em relação a servidores ocupantes de cargos em comissão não titulares de cargo efetivo na Administração Pública, mais sujeitos a pressões e intimidações por serem exonernáveis ad nutum) como meio de protelar o exercício até a acumulação alegadamente desautorizada ocorrer e implicar a suposta extinção do direito dos agentes públicos, em proveito imoral estatal. Tal atitude fere os mais comezinhos princípios do direito público e a moralidade administrativa, sem falar na ofensa à própria garantia constitucional da dignidade da pessoa humana, num regresso inaceitável à quadra vivenciada nos primeiros anos da Revolução Industrial do século XIX, quando os trabalhadores eram explorados e submetidos até o exaurimento de suas energias para após serem lançados ao desamparo completo, sendo em seguida substituídos por nova mão-de-obra igualmente subjugada.

É a tanto que conduz a tese da perda do direito de férias em dois ou mais períodos aquisitivos não fruídos.

Essa exegese se conforma com os valores sociais do trabalho, a dignidade da pessoa humana, a moralidade administrativa e demais preceitos introduzidos pela Constituição Federal de 1988? É dispensável responder que, evidentemente, não.

Por isso que inviável a tese da pretensa perda do direito de férias acumuladas e não gozadas.


8. Quid iuris em caso de inércia do servidor público em marcar suas férias?

Como consabido, o usufruto do direito de férias adquiridas depende da conveniência do serviço público e deverá ter seu período concessivo determinado pela Administração, ou referendado por ela, no caso de a solicitação do funcionário estar compatível com os reclamos do interesse administrativo.

Por conseguinte, na hipótese de inércia do servidor em indicar as datas de usufruto do direito, dando ensejo à acumulação de períodos de férias, compete à Administração Pública estabelecer as datas para gozo respectivo e, em caso de omissão administrativa a esse respeito, não há que se falar em perda do direito em alusão, apesar de ocorrido, eventualmente, no plano fático, o acúmulo de períodos adquiridos do descanso legal, ainda não desfrutados.

Nesse sentido é o entendimento jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios [03], consoante trecho do voto condutor do eminente relator de julgado sobre a matéria ora discutida:

"Feitas essas considerações, passo ao exame do mérito propriamente dito. De início, penso ser de mister deixar claro que a licença para tratamento de saúde, como muito bem posto pelo MM. Juiz monocrático, na sentença hostilizada, há de ser tida como período de efetivo exercício, pela inteligência do art. 102 da Lei n° 8.112/90, e não, como "motivo de força maior", termos colocados de modo indevido pelo Apelante. Inegavelmente, representando o direito a férias anuais garantia inscrita na Constituição Federal no art. 7º, inciso XVII, do Capítulo dos Direitos Sociais inserto no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, possui essência de proteção aos trabalhadores em geral e, por extensão, aos servidores públicos civis e aos militares, respectivamente, conforme os artigos 39, § 2º, e 42, § 1º, daquela Magna Carta.

Não tem, portanto, a norma infraconstitucional, o condão de limitar ou abolir tal direito. Assim, ao estabelecer o limite máximo de dois períodos aquisitivos vencidos, para fins de acumulação, visa a regra contida na Lei n° 8.112/90 impedir que a Administração, sob a égide da necessidade de serviço, impeça que o servidor permaneça por mais de dois (2) anos sem usufruir do direito do gozo de férias, e, não, puni-lo com a retirada desse direito. Aliás, nem o poderia, haja vista, que, uma vez adquirido, esse direito recebe, ainda, a tutela do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal.

Nesse sentido, extrai-se da obra de Ivan Barbosa Rigolin, "Comentários ao Regime Jurídico Único dos Servidores Civis", a lição seguinte a respeito da limitação de até dois períodos de férias imposta pelo art. 77 da Lei n° 8.112/90: "É salutar que assim seja, uma vez que se conhece, no âmbito do serviço público de outras esferas de governo, casos de servidores com direito a oito períodos de férias, ou a quatro períodos; tal incúria e desmazelo na administração pessoal, que por displicência ou mesmo má-fé permite que o servidor renuncie a um direito quase irrenunciável de natureza eugênica e indispensável à sua saúde e à boa continuidade dos próprios serviços públicos, está expressamente proibido no âmbito do serviço público federal. Se a Administração consentir em que o servidor acumule mais de dois períodos de férias, merecerá responsabilização a autoridade que o faça."

Segundo o contido nos autos, o Apelado tomou posse no cargo de Agente de Polícia da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, em 11.8.92, sem que tivesse gozado as férias a que fazia jus relativas ao período aquisitivo de 1990. Ora, na data apontada como a da mencionada posse, ainda não se havia caracterizado o acúmulo de mais de dois períodos de férias repelido pela lei, o que só veio a ocorrer a partir de 31.12.92.

Incontestavelmente, cabe à própria Administração, visto ser ela quem estabelece, em última análise, a conveniência da data de fruição pelo servidor do direito adquirido, determinar o período em que tal direito deverá ser exercido, se tiver sido ele anteriormente indeferido ou não solicitado. Deixando de assim proceder o Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal, deveria ter adotado tal providência o Órgão de pessoal da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Ao alegar o Apelante a vedação imposta pela Lei n° 8.112/90, no seu art. 77, pretende, na verdade, inverter ônus que, no caso concreto, compete à Administração Pública. Demais disso, não pode o Estado locupletar-se dos direitos dos seus servidores. Em face desse mesmo motivo, encontra-se hoje pacificado o entendimento análogo de que se deve garantir, ao servidor que se aposenta, indenização quando houver direito adquirido a período aquisitivo de férias concluído.

Com muita propriedade, sobre o assunto, pronunciou-se o ilustre Desembargador Mário Machado, quando do julgamento da APC n° 33.806/94, em 14.11.94, cujo entendimento peço licença para transcrever: "(...) presente direito adquirido a um período completo de férias, não gozadas em presumido interesse da Administração, tranqüilamente devida a respectiva indenização. É que não se pode locupletar o Poder Público às custas do trabalho do servidor. Se este, tendo direito às férias, não mais pode gozá-las, em face da aposentadoria, deve a Administração indenizá-las, pena de se enriquecer injustificadamente.(...)" (grifei).

A matéria, também, já foi objeto de apreciação pela 1ª Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, conforme se extrai do Resp. n° 24232/92 – SP, que teve por relator o Ministro Garcia Vieira, verbis:

"ADMINISTRATIVO – INDENIZAÇÃO – FÉRIAS NÃO GOZADAS – APOSENTADORIA – CORREÇÃO MONETÁRIA – PROTELAÇÃO – MULTA. A Administração tem o dever de propiciar o gozo de férias anuais a seus servidores. Não cumprindo este dever, por necessidade de serviço, é inegável a obrigação de indenizar, respondendo por perdas e danos.(...)" (grifei).

Assim, se, de um lado, a fruição e a acumulação das férias a que faz jus o Apelado repousam em razões de ordem legal (art. 77 da Lei n° 8112/90), de outro, além dessas razões, fundamenta-se não só em princípios básicos do Direito Administrativo, mas, também, na aplicabilidade plena das normas da Lei Maior, a incumbência, que se atribui à Administração Pública como um dever, de providenciar para que seus servidores não deixem de usufruir das férias anuais remuneradas.

Pretender o Estado negar a concessão de um direito líquido e certo adquirido pelo servidor em decorrência de um preceito constitucional, valendo-se de limite fixado em lei, eis que possui este o fim claro de coibir qualquer afronta a tal direito por parte da própria Administração, é algo que não se coaduna com a finalidade da Justiça. Convém, aqui, lembrar que "o mais alto grau da injustiça é não ser justo e, todavia, parecê-lo".

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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. O acúmulo de mais de dois períodos de férias adquiridas, mas não gozadas, por necessidade do serviço ou não, implica perda do direito?: A exegese do art. 77, da Lei nº 8.112/1990. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1614, 2 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10704. Acesso em: 19 abr. 2024.

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