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O sigilo de dados no direito constitucional brasileiro

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09/12/2007 às 00:00
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4- Quais dados estão ou não cobertos pelo direito ao sigilo ? E para fins de investigação criminal ?

Até aqui procurou-se demonstrar porque se considera como mais correta a interpretação dada à Constituição no sentido de que os objetos tutelados no artigo 5º, X e XII, são a intimidade e a vida privada – inclusive os dados bancários e fiscais – por um lado e as comunicações (de dados) por outro, e não os dados (genéricos) como categoria autônoma.

Cabe agora discorrer brevemente sobre quais "dados" estão, então, tutelados em nível constitucional.

Em primeiro lugar, faz-se necessária uma correção, de resto já mencionada no final do item anterior: quando comumente, mesmo na prática jurídica, é feita alusão ao "sigilo de dados", o que na verdade está-se querendo referir, compreendida a lógica deste estudo, é o sigilo que recai sobre certa informações relacionadas aos indivíduos e que encontram guarida no artigo 5º, inciso X, da CF, na parte em que prevê a inviolabilidade à intimidade e à vida privada. Tais informações podem ou não estar na forma de dados, conforme estejam armazenadas em computadores, mídias digitais, livros, diários, álbuns fotográficos, cartas, anotações diversas, mensagens de texto de aparelhos telefônicos móveis, etc.

Posta desta forma a questão, fica fácil de saber, ao menos in abstracto, quais informações estão abrangidas pelo sigilo constitucional, ou a contrariu sensu, quando há ofensa ao "direito fundamental ao sigilo (de informações)": somente quando se tem acesso indevido a elementos, fatos, atos ou notícias que efetivamente violam a intimidade e/ou a vida privada das pessoas. É bem verdade que, na prática, a solução de casos que em tese impliquem a violação de tal direito não se dá de forma tão simples, não sendo afirmável prima facie, p. ex., se determinado procedimento de busca e apreensão, feito pela autoridade policial, violou o artigo 5º, X, da CF por introduzir no processo/inquérito, como prova, um diário íntimo. Todavia, para situações como estas, as quais em regra resolvem-se apenas caso-a-caso, é sempre indispensável que se utilizem as máximas da proporcionalidade, do princípio da concordância prática e do juízo de ponderação de que magistralmente nos falam Robert Alexy, Konrad Hesse, J. J. Gomes Canotilho e Paulo Bonavides, entre outros, em suas magistrais obras.

Sem nenhuma pretensão de esgotar o tema, o que se julga importante deixar consignado aqui é que nem todas as informações (dos clientes) que ficam em poder dos bancos, instituições financeiras, operadoras de telefonia e de internet, e outros estabelecimentos, comerciais ou não, estão – ou deveriam estar - cobertas pelo direito ao sigilo, principalmente quando se trata de investigação criminal. Com efeito, analisando-se a realidade atual, vê-se que existem inúmeros dados objetivos relacionados às pessoas que são disponibilizados pelas empresas entre si, inclusive para fins estritamente comerciais [19], mas que, quando requisitados para fins de investigação criminal ou instrução processual penal não são fornecidos, sob a alegação de preservação do "direito ao sigilo dos clientes".

Ora, uma coisa é solicitar-se a um banco documentos ou dados relativos à movimentação financeira de determinado cliente, assim como a uma operadora de telefonia extratos de chamadas discadas, recebidas e não atendidas de determinado período; ou então a uma empresa de cartões de crédito os locais onde certa pessoa fez compras nos últimos meses – informações que de certa forma podem revelar a vida privada. Outra, bem diferente, é requerer a estes mesmos estabelecimentos que forneçam o nome, o número da identidade e os endereços e telefones informados pelo cliente, todos dados estritamente objetivos e cuja informação, a nosso ver, de forma alguma viola o dispositivo constitucional que tutela a privacidade.

Neste sentido, cite-se a lição extraída de excelente artigo publicado sob o título "Em Defesa da LC 105", no conhecido sítio de internet "CONJUR" [20], de autoria não informada, o qual, opinando pela constitucionalidade da Lei Complementar nº 105/2001, segue e mesma linha de raciocínio aqui defendida [21]:

"O âmago da polêmica estabelecida, no entanto, gira em torno dos direitos à incolumidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, inciso X da Constituição). Curiosamente, as manifestações contrárias à dita "quebra" do sigilo bancário não se detêm na análise e demonstração de como o conhecimento de operações bancárias ou financeiras efetivamente afronta os direitos ou garantias antes referidas.

Entendemos que em algumas operações ou situações de natureza financeira seria possível identificar traços ou elementos reveladores da forma de vida, costumes, preferências ou planos das pessoas (esfera de sua conduta e modo de ser não realizada perante a comunidade). Os destinatários de pagamentos, por exemplo, podem indicar o estilo de vida de determinado cidadão. Entretanto, na maior parte das operações bancárias ou financeiras não existe nenhuma, por menor que seja, possibilidade de conhecimento da esfera da vida privada e intimidade de alguém. Vejamos alguns exemplos: depósito à vista realizado pelo próprio titular da conta, resgate em conta de depósito realizado pelo próprio titular da conta, aplicação em fundo de investimento e aquisições de moeda estrangeira. Temos, nestes casos, eventos isolados, objetivos, padrões comerciais impessoais onde emerge, só e somente só, um dado contábil ou quantitativo.

Verificamos, portanto, a inafastável necessidade de confrontar cada tipo de operação bancária ou financeira com os direitos à intimidade e vida privadas. Somente o aspecto qualitativo de cada uma delas, até porque o dado numérico ou contábil em si não revela costumes ou preferências pessoais, poderá ter relação com os direitos inscritos na Constituição.

[...]

Neste ponto é preciso tratar da chamada reserva constitucional de jurisdição. Este seria um postulado no sentido da submissão de determinadas decisões ao âmbito exclusivo de ação dos magistrados. Vários juristas inserem o conhecimento de informações bancárias ou financeiras na referida reserva constitucional. Tal inserção, no entanto, não se sustenta, sequer resistindo ao crivo da análise a partir do próprio texto constitucional e do sistema jurídico por ele inaugurado.

Com efeito, a ordem jurídica pátria estabelece que o Poder Judiciário será competente para apreciar ameaças e lesões a direitos. Assim, em regra, o juiz será chamado para apreciar atos já praticados (mesmo no caso de ameaça, atos indicadores de uma provável lesão de direitos). Não subsiste como atividade normal do magistrado autorizar a prática de atos. Entretanto, para algumas matérias o constituinte entendeu necessária a autorização judicial, dada a relevância dos bens jurídicos envolvidos. Assim, identificamos a necessidade de prévia manifestação judicial para: busca domiciliar (art. 5o, inciso XI), interceptação de comunicações telefônicas (art. 5o, inciso XII) e prisão, fora do flagrante (art. 5o, inciso LXI). Nestes casos, a Constituição expressamente exige a intervenção judicial preliminar. Este aspecto devemos sublinhar, é fundamental. A reserva constitucional de jurisdição reclama explícita menção, na medida em que foge aos parâmetros normais da atuação judicial. Em assim sendo, não definiu o constituinte a necessidade de autorização judicial, e somente judicial, para acesso às informações bancárias e financeiras do contribuinte. Ao contrário, a Constituição foi explícita em viabilizar o acesso do Fisco ao patrimônio, aos rendimentos e às atividades econômicas do contribuinte (art. 145, parágrafo 1o).

A cláusula final do art. 145, parágrafo 1o da Constituição não reforça a inacessibilidade aos dados bancários ou financeiros, como querem alguns. As expressões "... respeitados os direitos individuais e nos termos da lei,... " procuram resguardar o contribuinte em dois sentidos: (a) para as informações relacionadas com sua vida privada, em relação à não divulgação ou conhecimento amplo das mesmas e (b) na fixação de regras de organização e procedimento das ações fiscais quando voltadas para identificação de manifestações econômicas tributáveis.

Além disso, necessário referir que o próprio STF já teve oportunidade de manifestar-se diretamente sobre o assunto, durante o julgamento da Adin nº 1790-DF, cujo resultado foi publicado no DOU de 08/09/2000. Referida ação visava combater a edição da Medida Provisória nº 1638/98, que (re)permitia a criação das então conhecidas "listas negras", cadastros de cidadãos que já tiveram títulos protestados. Um de seus fundamentos era justamente a violação ao art. 5º, X, da CF, no que concerne à intimidade e à vida privada. Com relação a este, assim manifestou-se o relator, Min. Sepúlveda Pertence, em seu voto condutor:

"A convivência entre a proteção da privacidade e os chamados arquivos de consumo, mantidos pelo próprio fornecedor de crédito ou integrados em bancos de dados, tornou-se um imperativo da economia da sociedade de massas: de viabilizá-la cuidou o CDC, segundo o molde das legislações mais avançadas: ao sistema instituído pelo Código de Defesa do Consumidor para prevenir ou reprimir abusos dos arquivos de consumo, hão de submeter-se às informações sobre os protestos lavrados, uma vez obtidas na forma prevista no edito impugnado e integradas aos bancos de dados das entidades credenciadas à certidão diária de que se cuida: é o bastante a tornar duvidosa a densidade jurídica do apelo da argüição à garantia da privacidade, que há de harmonizar-se à existência de bancos de dados pessoais, cuja realidade a própria Constituição reconhece (art. 5o, LXXII, in fine) e entre os quais os arquivos de consumo são um dado inextirpável da economia fundada nas relações massificadas de crédito".

Ora, como se vê, o próprio STF admite a existência de bancos de dados contendo inúmeras informações relativas aos clientes, tais como endereços, telefones, contas bancárias, saldos médios, patrimônio mobiliário e imobiliário, níveis de crédito na praça, os últimos contratos de compra e venda realizados no mercado, cartões de créditos, etc. A estes, sabido é, atualmente qualquer caixa ou atendente de loja tem acesso on-line. Mais do que isso, tais arquivos são sistematicamente comercializados entre as empresas! [22] Assim, fica a pergunta: como pretender opor a autoridades públicas, durante a persecutio criminis, o acesso a tais dados, sob a - mais do frágil – argumentação de ofensa ao "sigilo de dados" – que na verdade se trata de sigilo das informações privadas - ?

Em decorrência dela, também faz-se o seguinte questionamento: será que até mesmo em função da proximidade do fim de um regime ditatorial, não estamos imersos em uma cultura jurídica demasiado defensora de uma – propositalmente construída - suposta privacidade, que acaba muitas vezes por produzir impunidade? [23]

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. 386 p.

______. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 158 p.

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BERNARDI, Renato. "Quebra de sigilo - Justiça deve privilegiar interesse público sobre o privado". Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 20 de junho de 2004. Acessível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/25286,1. Acesso em 10/02/2007.

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Extraídos do artigo publicado sob o título "A telemática no parágrafo único da Lei 9.296/96". Acessível em http://www.ijuris.org/producaotc/direito_digital/sigilo/telem1.htm. Acesso em 10/02/2007.

Rogério Lauria TUCCI, na obra "Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, e José CRETELLA Júnior, conforme esclarece Hugo Cesar Hoeschl no artigo "A telemática no parágrafo único da Lei 9.296/96". Acessível em http://www.ijuris.org/producaotc/direito_digital/sigilo/telem1.htm. Acesso em 23/02/2007.

TEXTO: "Dado, informação, conhecimento e competência", de Valdemar W. SETZER, in Revista de Ciência da Informação, p. 1-13, dez/99. Disponível em http://www.dgzero.org/dez99/F_I_art.htm. Acesso em 10/12/2007.

"Dicionário Eletrônico Aurélio", elaborado pela empresa Positivo Informática. Corresponde à 3ª. edição, 1ª impressão da Editora Positivo, revista e atualizada do "Aurélio Século XXI, O Dicionário da Língua Portuguesa", ©2004 by Regis Ltda.

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Sobre o autor
Fábio Alceu Mertens

delegado de Polícia Federal, mestrando em Ciência Jurídica do Programa de Mestrado da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) na linha de pesquisa "Produção e Aplicação do Direito"

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MERTENS, Fábio Alceu. O sigilo de dados no direito constitucional brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1621, 9 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10748. Acesso em: 29 mar. 2024.

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