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O interrogatório ao final da instrução no direito administrativo disciplinar

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21/12/2023 às 09:23

Resumo:


  • O direito de defesa é um princípio constitucionalmente garantido no Brasil, com evolução histórica que reforça a amplitude e garantias no âmbito administrativo e penal.

  • Recentes decisões judiciais têm estendido a realização do interrogatório para o final da instrução em processos penais, ampliando a concepção de ampla defesa e sua aplicabilidade em leis especiais.

  • A aplicação do princípio da ampla defesa e o deslocamento do interrogatório para o final da instrução no direito administrativo disciplinar podem fortalecer as garantias dos acusados, alinhando-se com os avanços no direito penal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Examina-se a aplicação, na seara disciplinar, do entendimento adotado pelos Tribunais Superiores em relação ao momento do interrogatório, notadamente quando incidentes leis especiais.

Uma nova concepção constitucional de Ampla Defesa e seus reflexos sobre as legislações infraconstitucionais é um tema ainda inexplorado no Direito Administrativo Disciplinar.

Na seara penal, em contrapartida, recentes decisões adotadas por Tribunais Superiores estenderam a regra contida no art. 400, do Código de Processo Penal para todas as legislações especiais.

A eventual extensão dessa regra para os processos administrativos disciplinares é o objeto de reflexão no presente artigo.

I - DA EVOLUÇÃO DO DIREITO DE DEFESA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Não chega a ser exagero afirmar que, entre as Constituições brasileiras, quando da abordagem do delicado tema acerca da expulsão de um servidor dos quadros do serviço público, há uma espécie de tradição, na qual se verifica a exigência de observância ao Direito de Defesa. Tome-se como primeiro e mais distante exemplo, a Constituição de 1.937, cujo direito de defesa já era expressamente previsto; in verbis:

art. 156 -

c) os funcionários públicos, depois de dois anos, quando nomeados em virtude de concurso de provas, e, em todos os casos, depois de dez anos de exercício, só poderão ser exonerados em virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, em que sejam ouvidos e possam defender-se...” (g.n.)

É fato que o conceito de defesa, nas constituições seguintes, sofreu sensíveis evoluções, máxime em relação à sua amplitude. Nesse sentido, a Constituição de 1.946, em seu art. 189, inciso II, passou a adotar a consagrada expressão ampla defesa; a saber:

Art 189 - Os funcionários públicos perderão o cargo:

II - quando estáveis, no caso do número anterior, no de se extinguir o cargo ou no de serem demitidos mediante processo administrativo em que se lhes tenha assegurado ampla defesa.” (g.n.)

Esse conceito mais elástico e seguramente mais garantista foi repetido pela redação original da Constituição de 1.967 (e igualmente pela Emenda I/69), cujo art. 103, inciso II, condicionava a demissão de funcionários públicos a prévio processo administrativo, no qual deveria ser assegurada a ampla defesa.1 (g.n.)

A evolução do conceito de Ampla Defesa à luz do Direito Constitucional, no entanto, não parou por aí.

De fato, alteração de “altíssima relevância no que concerne à Ampla Defesa, foi trazida pela atual Constituição Federal,2 com a inserção de um verdadeiro texto de reforço, elencado na parte final do inciso LV, do art. 5º., no qual, após condicionar tanto processos judiciais quanto processos administrativos à observância do Contraditório e da Ampla Defesa, em relação a esta restou taxativamente consignado:

““art. 5º. Inciso LV - ... e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes...”3 (destaques não originais)

A essa singular inovação, Odete Medauar teceu o seguinte comentário:4

o preceito da ampla defesa reflete a evolução que reforça o princípio e denota elaboração acurada para melhor assegurar sua observância. Significa, então, que a possibilidade de rebater acusações, alegações, argumentos interpretações de fatos, interpretações jurídicas, para evitar sanções ou prejuízos e preservar interesses, não pode ser restrita, no contexto em que se realiza. (g.n.)

I.a. A Evolução do Conceito de Ampla Defesa

Ao examinar a evolução do princípio da Ampla Defesa, Odete Medauar observa que sua acolhida pelo Direito Administrativo Disciplinar foi mais fácil do que sua aceitação pelo Direito Processual Civil; in verbis:

Mais fácil que a acolhida da ampla defesa no processo civil parece ter sido sua aceitação nos processos administrativos disciplinares, pois nele se apreendia, de modo claro, a situação de alguém acusado de uma determinada conduta e passível de sofrer uma sanção.

Nessa linha de compreensão, merece destaque a abalizada construção doutrinária originalmente destinada ao processo penal que5 tem sensível aplicação no âmbito do Direito Administrativo Disciplinar. Trata-se das subdivisões do princípio da Ampla Defesa; a saber: defesa técnica e autodefesa.

Defesa Técnica

É importante relembrar que defesa técnica era obrigatória nos processos administrativos disciplinares, tanto que o Superior Tribunal de Justiça chegou a editar uma Súmula, na qual a presença do advogado em processos administrativos disciplinares se fazia imprescindível; a saber:

Súmula 343. Publicada no mês de setembro desse ano, a Súmula determina: “é obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar.”

Entretanto, o Pretório Excelso divergiu de tal entendimento e promulgou a Súmula Vinculante n. 5, na qual restou decidido:

Súmula Vinculante n. 5 - A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.”

Essa é até hoje uma emblemática exceção, que diferencia o devido processo penal do devido processo legal disciplinar.

Por certo não se pode ignorar a advertência de Hely Lopes Meirelles, no sentido de que, embora o Superior Tribunal de Justiça adote o entendimento de que em qualquer punição o devido processo legal deve ser assegurado, não se exige obediência exata às regras típicas do processo penal. 6

Diógenes Gasparini, por seu turno, ao examinar o processo de punição, admite a utilização subsidiária de regras do processo penal, salvo se conflitantes com as administrativas aplicáveis à espécie. 7

Autodefesa

No que tange à Autodefesa, prevalece o entendimento de que as noções cristalizadas no âmbito processual penal têm significativa aplicação na seara disciplinar,8 como se evidencia pelo magistério fornecido por Fábio Medina Osório:9

prepondera, hoje, a tese de que os princípios penais são aplicados ao direito administrativo sancionador, com matizes, a efeito de assegurar aos acusados as básicas garantias constitucionais comuns ao direito público punitivo” (g.n.)

Nesse terreno, ainda se mostra de capital relevância a transcrição do escólio de José Cretella Júnior, que considera erro elementar de método transplantar, pura e simplesmente, para o campo do direito disciplinar as noções cristalizadas no campo penal. Todavia, na sequência, ressalta o autor:10

De outro lado, os que defendem totalmente a autonomia do direito disciplinar ... acabam por cometer erro típico dos que tomam posições radicais, porque confundem autonomia com soberania, procurando inovar na reformulação dos institutos do novo ramo; jamais aceitando qualquer canalização de conceitos hauridos em outros setores da ciência jurídica, mesmo de campos afins, como é o caso do direito penal em relação ao direito disciplinar.

Isto posto, ressalta-se que nos termos do escólio de Ada Pelegrini Grinover, em lição originariamente destinada ao Direito Processual Penal que, como visto, tem plena aplicação no Direito Administrativo Disciplinar, a autodefesa se subdivide:11Direito de Presença; e Direito de Audiência.

O direito de audiência, por seu turno, em consonância com a lição de Odete Medauar, consiste no direito de falar oralmente;12 regra que, segundo o magistério de Ada Pelegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, consubstancia-se no INTERROGATÓRIO. 13

Ademais, no que tange especificamente ao interrogatório, singular importância assume tal ato nos processos administrativos, porquanto, como ressalta Odete Medauar ninguém pode ser condenado sem ser ouvido – inauditus nemo damnari potest.14

I.2.Da Natureza Jurídica do Interrogatório – Meio de Defesa

A alteração constitucional em relação ao princípio da ampla defesa, como restou consignado, provocou significativas alterações no ordenamento jurídico infraconstitucional, dentre elas, a própria concepção da natureza jurídica do interrogatório (seja ele penal, seja ele disciplinar), com o consequente deslocamento do ato para o final da instrução (Código de Processo Penal – art. 400).

Nessa direção, tanto a doutrina quanto a jurisprudência não tardaram a reconhecer a ampliação do conceito de defesa, inclusive, no que tange à própria natureza jurídica do interrogatório, reconhecendo-o como meio de defesa. A propósito, a doutrina abalizada concluiu: 15

consubstanciando-se a autodefesa, enquanto direito de audiência, no interrogatório, é evidente a configuração que o próprio interrogatório deve receber, transformando-se de meio de prova (como o considerava o código de processo penal de 1941, antes da lei 10792/2003) em meio de defesa; meio de contestação da acusação e instrumento para o acusado expor sua própria versão.” (g.n.)

Registre-se que na jurisprudência, esse entendimento foi plenamente ratificado pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, no Ag. Reg. 528/DF, Relator Ministro Ricardo Lewandowski – 2, 4/03/2011.

II. DA PROJEÇÃO DA CONCEPÇÃO MAIS GARANTISTA À LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL PENAL – MÁXIMA EFETIVIDADE

II.a - Posição do Supremo Tribunal Federal

Na mencionada decisão, o Plenário do Pretório Excelso analisava a questão envolvendo as mudanças operadas no Código de Processo Penal pela Lei 11.719/08, com o deslocamento do interrogatório para o final do procedimento, consoante a nova redação do art. 400; in verbis:

Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.” (g.n.)

Naquela oportunidade, o Supremo Tribunal Federal, em homenagem ao princípio da Ampla Defesa, estendeu essa alteração para os feitos de competência originária do Tribunal (art. 7º., da Lei Federal n. 8.038/90), deslocando o interrogatório para o final da instrução.

De capital importância o destaque dado pela Suprema Corte à alteração do momento do interrogatório no Código de Processo Penal; a saber:

“...não se pode negar que se trata de um tema de altíssima relevância, dado o reflexo que a referida alteração legal exercer sobre o direito constitucional da ampla defesa ...” (g.n.)

Tamanha a relevância desses reflexos que, na sequência, no julgamento do HC 127.900, o Plenário do Supremo Tribunal Federal voltou a estender essa alteração, desta feita ao processo penal militar e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial; in verbis:

“...Máxima efetividade dos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV). Incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aos processos penais militares cuja instrução não se tenha encerrado, o que não é o caso. Ordem denegada. Fixada orientação quanto a incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial, incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado.” (g.n.)

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Essa linha de entendimento, bem como seus reflexos sobre toda a legislação infraconstitucional tem singular relevância para a tese que ora se defende.

Na doutrina penal, essa alteração não passou despercebida, como se verifica no magistério de Guilherme de Souza Nucci:16

como regra, tem-se adotado o procedimento de ouvir o réu ao final da instrução, possibilitando-se, pois, melhor defesa, já que o quadro probatório está praticamente concluído. É a consagração da autodefesa, como corolário da ampla defesa.”

Na mesma direção, Renato Brasileiro de Lima acentua:17

para a Suprema corte a nova redação do artigo 400 do CPP deveria suplantar o estatuído no artigo 7º. da lei 8038/90, haja vista possibilitar ao réu o exercício de sua defesa de modo mais eficaz. Aduziu se que essa mudança concernente à designação do interrogatório conferiria ao acusado a oportunidade para esclarecer divergências e incongruências que eventualmente pudessem surgir durante a fase de consolidação do conjunto probatório

No tocante ao HC 127.900 (processo penal militar), o referido autor destaca:

“Na visão do Plenário, revela-se mais condizente com o contraditório e a ampla defesa aplicabilidade da nova redação do artigo 400 do CPP ao código penal militar...” (g.n.)

Por derradeiro, o autor projeta:

Diante dessa nova orientação firmada pela Suprema corte, é de se concluir, então, que o interrogatório nos crimes de licitação e nos procedimentos de tráfico de drogas também deve ser realizado ao final da instrução probatória, é dizer, o artigo 400 do CPP deve prevalecer em detrimento das regras do artigo 104 da lei 8666/90 e do artigo 57 da lei 11 343/06...” (g.n)

II.b. Posição do Superior Tribunal de Justiça

O “Tribunal da Cidadania”, por seu turno, já aplicou a nova regra a processos previstos na Lei de Tóxicos; a saber:

“O Supremo Tribunal Federal, por seu Plenário, no julgamento do HC n. 127.900/AM, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 3/3/2016, e publicado no Diário da Justiça Eletrônico em 3/8/2016, ressaltou que a realização do interrogatório ao final da instrução criminal, conforme o artigo 400 do CPP, é aplicável no âmbito dos procedimentos especiais, preponderando o princípio da ampla defesa sobre o princípio interpretativo da especialidade. Assim, em procedimentos ligados à Lei Antitóxicos, o interrogatório, igualmente, deve ser o último ato da instrução, observando-se que referido entendimento será aplicável a partir da publicação da ata de julgamento às instruções não encerradas.”

Superior Tribunal de Justiça, AgRg no RHC 109770 / SC, AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS, 2019/0076625-6, RELATOR Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, ÓRGÃO JULGADOR T5 - QUINTA TURMA, DATA DO JULGAMENTO, 14/05/2019.

Em suma: o deslocamento do interrogatório para o final da instrução,18 como método que melhor atende à concepção hodierna de Ampla Defesa, em face de uma interpretação à Luz da Constituição Federal, não mais se limita aos processos militares, tampouco às hipóteses da Lei n. 8.038/90, se estendendo a todos os procedimentos especiais penais.

III. Fundamento do Deslocamento do Interrogatório para o final da Instrução

De singular relevância para a compreensão da posição adotada pelo Pretório Excelso é a identificação do fundamento desse deslocamento do interrogatório para o final do processo.

Nesse terreno, como restou explicitado pela Corte Suprema, o fundamento desse entendimento repousa na seguinte premissa:

Preponderância do princípio da ampla defesa sobre o princípio interpretativo da especialidade.

IV. DA PROJEÇÃO DA CONCEPÇÃO MAIS GARANTISTA À LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL DISCIPLINAR – MÁXIMA EFETIVIDADE

IV.a. Pluralidade de Legislações Disciplinares

Existe um certo consenso entre os doutrinadores, no sentido de que o Direito Administrativo, como ramo autônomo, é relativamente recente, porquanto teria nascido em fins do século XVIII e início do século XX, juntamente com o Direito Constitucional e sua concepção de Estado de Direito. 19

Nesse cenário, conforme enfatiza Maria Sylvia Zanella di Pietro, o conteúdo do Direito Administrativo varia no tempo e no espaço, conforme o tipo de Estado adotado.20 Por isso, é natural que essa área do Direito se encontre em constante evolução.

Essa evolução é percebida nitidamente quando se trata do tema processo administrativo, conceito que, quando da formação e sistematização do Direito Administrativo era absolutamente irrelevante para a doutrina e para a jurisprudência, inexistindo qualquer preocupação com os momentos que antecediam a edição do ato.21

Longo foi o caminho trilhado desde que na Alemanha se iniciaram os estudos de situações nas quais vários agentes atuariam para a realização de um certo resultado jurídico; fenômeno que, na doutrina italiana resultou na elaboração da teoria dos atos complexos, o que posteriormente desaguou no conceito de procedimento ou, em França na expressão operação administrativa.22

Dessa forma, somente numa sequência evolutiva na qual se chegou ao enfoque de procedimento como figura diversa o ato final, é que foi possível o direcionamento da atenção doutrinária para os momentos preliminares à edição do ato.23

Todavia, como enfatiza Fábio Medina Osório, em magistério originalmente destinado ao Direito Sancionador (gênero, do qual o processo administrativo disciplinar é espécie), a exigência de um processo judicial ou administrativo para a aplicação de normas é espécie de cláusula demasiadamente abstrata, e até inócua, dependendo do sentido que se lhe empreste.24

Daí a necessidade premente dos operadores do Direito Administrativo, em especial do Direito Administrativo Disciplinar, estarem atentos a novos conceitos, máxime em relação a princípios e garantias previstos no Texto Constitucional.

VI.b. Da Multiplicidade de Legislações Disciplinares

Fator de singular desafio para aqueles que se propõem a atuar na seara disciplinar éa pluralidade de legislações existentes, sobretudo porque cada ente da Federação pode legislar sobre o regime jurídico de seus servidores.

Tamanho é esse desafio que José Cretella Júnior, em sua obra Prática do Processo Administrativo, após ressaltar que no Brasil a competência para legislar é de qualquer esfera – municipal, distrital, estadual e federal -, arremata:25

No Brasil, instaurado um processo administrativo, o que interessa a todos, a Administração e ao administrado, é saber a que esfera se vincula o indiciado.”

De fato, há uma infinidade de legislações que dispõem sobre a questão disciplinar envolvendo os servidores públicos. No entanto, como bem ressalta José Afonso da Silva, existe um ponto em comum entre todas elas; in verbis:26

“Todas essas entidades têm autonomia para estabelecer a organização e o regime jurídico de seus servidores, mas todas elas estão adstritas à observância dos princípios a esse respeito estatuídos nos artigos 37 a 42 da Constituição.” (g.n.)

Idêntico raciocínio deve ser utilizado quando se trata de processos administrativos disciplinares, nos quais, por expressa determinação constitucional, devem ser observados os princípios do Devido Processo Legal, Contraditório e Ampla Defesa (com os meios e recursos a ela inerentes).27

Registre-se, por relevante, que sequer se fazia necessário a previsão de observância aos princípios do Contraditório e Ampla Defesa, porquanto, como é consabido, ambos estão contidos no rol de princípios e garantias que compõem a cláusula do Devido Processo Legal (inciso LIV). Todavia, o Constituinte incluiu os dois princípios no inciso seguinte (LV), como forma de reforçar sua aplicação - e com relação à Ampla Defesa acrescentou, ainda, a expressão: com os meios e recursos a ela inerentes.

Trata-se de uma técnica legislativa que visa robustecer determinado instituto, como ocorre, por exemplo, o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado do Amazonas, ao afirmar que no inquérito administrativo é assegurado o amplo e irrestrito exercício do direito de defesa.28

V - INTERROGATÓRIO NO INÍCIO DO PROCEDIMENTO – LEGISLAÇÕES DISCIPLINARES

Dada a variedade de comandos disciplinares existentes, muitos deles anteriores à Constituição Federal, não é incomum constatar que em vários deles o Interrogatório ainda é realizado antes da oitiva de testemunhas e demais provas.29

Uma questão de acentuada complexidade situa-se na aplicação ou não, na seara disciplinar, do entendimento adotado pelos Tribunais Superiores em relação ao momento do interrogatório; notadamente sobre leis especiais (v.g.: Lei de Tóxicos).

Nesse terreno, um primeiro aspecto a ser abordado é a tendência de, a despeito de certas diferenças, se estender ao Direito Administrativo Disciplinar garantias semelhantes àquelas incidentes no Direito Penal.

Uma vez ultrapassada essa etapa, outro questionamento a ser enfrentado diz respeito à leis especiais que preveem o interrogatório no início da instrução. Essa barreira, como é consabido, repousa no método interpretativo, que privilegia as normas de caráter especial em detrimento de normas de caráter geral.

A solução para esse aparente entrave, no entanto, já foi definida pelos Tribunais Superiores, na medida em que se decidiu pela preponderância do princípio da ampla defesa sobre o princípio interpretativo da especialidade (STF).

Por consequência, nada impede que tais premissas observadas nos referidos julgamentos realizados pelo Pretório Excelso e Superior Tribunal de Justiça, sejam estendidas ao Direito Administrativo Disciplinar; cuja maioria das leis atuais, aliás, tendem a prever o interrogatório ao final da instrução, como se pode verificar:

  • Da legislação Disciplinar de Belo Horizonte - Lei n. 11.300/2021, estatuto dos Servidores Públicos do Quadro Geral de Pessoal: “Art. 205-A - Na fase de instrução, a comissão disciplinar e o processado poderão produzir todas as provas admitidas pelo ordenamento jurídico....§ 3º - Concluída a inquirição das testemunhas, a comissão promoverá o interrogatório do acusado.” (g.n)

  • Da legislação disciplinar de Goiás - Lei Estadual n. 20.756/2020: “Art. 228, § 1. O rito ordinário atenderá ao seguinte: V - concluída a fase de produção de provas, serão designados dia, hora e local para o interrogatório do acusado, procedendo-se à sua intimação pessoalmente ou por meio de seu defensor, com antecedência mínima de 5 (cinco) dias; (g.n.)

  • Da Legislação da União – Lei Federal n. 8.112/90, ao dispor sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. “Art. 159. Concluída a inquirição das testemunhas, a comissão promoverá o interrogatório do acusado, observados os procedimentos previstos nos arts. 157 e 158.”

VI - CONCLUSÃO

Na redação da parte final do inciso LV, do art. 5º., da Constituição Federal evidencia-se que o constituinte não se limitou a impor a observância da Ampla Defesa, reforçando tal princípio com a expressão ““com meios e recurso a ela inerentes”.

E mais. No mesmo inciso, de forma taxativa, determinou que tanto o Contraditório quanto a Ampla Defesa teriam necessariamente que ser observados não só nos processos judiciais, como também nos processos administrativos.

Nos processos criminais, essa concepção mais dilatada de Ampla Defesa, a nível legal, levou ao deslocamento do interrogatório para o final da instrução (art. 400, do CPP).

Os Tribunais Superiores, como demonstrado, estenderam essa regra a leis especiais, sob a premissa de que o interrogatório ao final conferia ao réu o exercício de sua defesa de modo mais eficaz.

Ademais, os Tribunais Superiores reconheceram a supremacia da Ampla Defesa em face do princípio interpretativo da Especialidade.

Essa interpretação, quando a norma disciplinar estabelecer o interrogatório no início deve se estender aos processos administrativos disciplinares, como forma de propiciar aos acusados um irrestrito exercício da Ampla Defesa.

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Sobre o autor
Messias José Lourenço

Procurador do Estado de São Paulo - Aposentado; Mestre em Processo Penal - USP ex Professor da Academia de Polícia Militar do Barro Branco - SP. Sócio do Escritório: Lourenco & Batista Advocacia e Consultoria Especializadas. E-mail: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOURENÇO, Messias José. O interrogatório ao final da instrução no direito administrativo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7477, 21 dez. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107723. Acesso em: 22 dez. 2024.

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