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Os contratos sociais firmados antes da edição do Código Civil de 2002 e o ato jurídico perfeito

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23/12/2007 às 00:00
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O novo Código Civil fixou prazo para que todas as sociedades já constituídas adaptassem os seus contratos sociais. Segundo a maioria dos estudiosos, os pactos sociais seriam ato jurídico perfeito, não sujeitos a leis posteriores. Este trabalho tenta elucidar a questão, estudando o ato jurídico perfeito, o princípio da irretroatividade e a natureza jurídica dos contratos sociais.

Sumário: 1. Introdução - 2. O novo Código Civil e os contratos sociais firmados antes de sua vigência - 3. O ato jurídico perfeito - 4. Os contratos de sociedade - 5. Conclusão - Notas - Referências Bibliográficas.


Resumo: O novo Código Civil trouxe importantes modificações na disciplina das relações entre os particulares, notavelmente no âmbito das atividades econômicas exercidas de forma profissional e organizada. Nesse cenário, foi estipulado um prazo para que todas as sociedades constituídas sob a égide do regime anterior adaptassem os seus contratos sociais ao moderno Direito Empresarial que passou a viger. Entretanto, parcela respeitável dos doutrinadores insurge-se contra essa determinação, argumentando que os pactos sociais revestem-se da qualidade de ato jurídico perfeito, e, como tal, não estariam sujeitos aos comandos emanados em leis posteriores. Para afastar a insegurança provocada por esse tema no meio empresarial, dada sua relação com o regular exercício das sociedades, o presente trabalho objetiva elucidar a correta interpretação do novo preceito, enfocando as principais questões a ele relacionadas, quais sejam, o ato jurídico perfeito, o princípio da irretroatividade e a natureza jurídica dos contratos sociais.

Palavras-chaves: affectio societatis; ato jurídico perfeito; Código Civil; contrato de sociedade; princípio da irretroatividade; sociedades maritais.

Abstract: The new Civil Rights came out with several important changes modifying the rules for privates entities, especially among those whose economic activities were professionally organized and exercised. Within this context, a delay was granted so that all partnerships, organized under the former rules, could review and adapt their social contracts in accordance with the modern Business Law already in force. A considerable part of the doctrinaires, however, disagree with this determination, affirming that the social agreements are protected by a perfect judicial act, and for this reason, shall be respected and unmodified by any posterior regulations. Due to the insecurity provoked by this matter within the business community, considering its importance in the normal regulation of the economy, the aim of this article is to elucidate the interpretations of this new precept, solving controversies, such as the perfect judicial act, the principle of non-retroactivity and the judicial nature of the social contract.

Key words: affectio societatis; perfect judicial act; Civil Code; social contract; principle of non-retroactivity; matrimonial partnerships.


1. Introdução

Ao consagrar o princípio da livre iniciativa como um dos fundamentos da República, a Carta Magna atribuiu às sociedades empresárias um dos mais relevantes papéis no desenvolvimento econômico e social do país. Em observância a esta linha axiológica, impõe-se ao legislador infraconstitucional, respeitado o princípio da função social da propriedade, estabelecer normas claras e objetivas, consentâneas com realidade então vigente, que afastem qualquer entrave ao incremento da atividade desempenhada pela iniciativa privada.

Nesse sentido, até recentemente o regramento dispensado às sociedades empresárias, com exceção às sociedades anônimas, mostrava-se divorciado da realidade. Os preceitos pertinentes eram os dispostos no arcaico Código Comercial do Império e no Decreto-Lei Federal n°. 3.708/1919. O primeiro disciplinava alguns tipos societários já em desuso e o último a Sociedade Limitada, mas de uma forma que não mais atendia aos interesses dos sócios e daqueles que com ela se relacionavam. Com o objetivo de adequar esse obsoleto regime jurídico à situação atual, o Código Civil de 2002, em um título denominado Da sociedade, inserido no Livro II, Do Direito de Empresa, revogou1 todas as disposições anteriores ao instituir tanto as normas gerais quanto as específicas aplicáveis à matéria.

Várias e não menos intensas foram as modificações trazidas por esse conjunto de regras. As limitadas, que são modalidade societária mais utilizada e, por isso, requerem especial atenção, sofreram as mais profundas alterações.

E para além de diversas inovações, estatuiu o novel Diploma Civilístico um prazo para que todas as sociedades constituídas sob a égide do antigo Código Comercial e Civil adaptassem-se ao novo ordenamento jurídico. Tal procedimento é condição de regularidade dos empresários, sem o qual se sujeitam às sanções difusas no Direito. Inicialmente o lapso temporal para o citado feito era de um ano, o qual posteriormente foi ampliado por sucessivas Leis, sendo que a última em vigor, a Lei n°. 11.127/2005, ao atribuir nova redação ao artigo 2.031, estipulou como termo final para o registro das mudanças a data de 11 de janeiro de 2007. Assim, de acordo com o Codex de 2002, houve um espaço de tempo para que se procedesse ao ajustamento das cláusulas dos contratos sociais firmados anteriormente a sua entrada em vigor aos novos preceitos, sob pena das entidades instituídas por meio desses pactos serem qualificadas como irregulares, o que afastaria prerrogativas somente conferidas às sociedades empresárias corretamente registradas, tais como, a autonomia patrimonial de seus sócios (no caso da limitada todos eles e nas demais modalidades apenas em situações específicas) face às obrigações contraídas pela sociedade, a habilitação jurídica para celebrar contratos com a Administração Pública, a teor do art. 27, I, combinado com o art. 28, II, da Lei n° 8.666/9322, e, ainda, a possibilidade de usufruírem dos benefícios da Lei de Recuperação de Empresas e de Falências3. Vê-se, com isso, que a omissão dos sócios em atualizar o contrato social pode gerar graves conseqüências às sociedades, podendo até levá-las à ruína.

Ocorre que uma considerável parcela dos juristas propugna pela incostitucionalidade4 do mencionado artigo 2.031, que obriga as sociedades a adaptarem seus estatutos ao novo Código. Nessa mesma esteira é o entendimento do Departamento Nacional de Registro do Comércio, importante órgão administrativo vinculado à União do qual emanam regulamentos aplicáveis no âmbito das Juntas Comerciais sediadas nas Unidades da Federação. De acordo com eles, os contratos sociais registrados antes da edição do Diploma de 2002 constituem em ato jurídico perfeito e, como tal, estariam sob o manto do princípio maior do Direito, o da irretroatividade das leis, insculpido na Carta Magna, no artigo 5°., inciso XXXVI5, e, na Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n°. 4.657/1942), em seu artigo 6°.6, o qual veda os efeitos de uma lei nova sobre atos consumados anteriormente à sua vigência. Esta foi a exegese consignada no sucinto parecer jurídico emitido pelo DNRC/COJUR n°. 125/03, de 04 de agosto de 2003:

INTERESSADO: JUCILEI CIRIACO DA SILVA – ESCRITÓRIO CONTEC

ASSUNTO: Sociedade empresária entre cônjuges constituída antes da vigência do Código Civil de 2002.

Senhor Diretor,

Jucilei Ciriaco da Silva, em razão da proibição constante do artigo 977 do novo Código Civil, consulta a este Departamento sobre qual o procedimento a ser adotado em relação àquelas sociedades entre cônjuges, casados sob os regimes da comunhão universal de bens e da separação obrigatória, constituídas anteriormente ao Código Civil de 2002, ou seja, "se haverá necessidade de alteração de sócio ou regime de casamento".

A norma do artigo 977 do CC proíbe a sociedade entre cônjuges tão somente quando o regime for o da comunhão universal de bens (art. 1.667) ou da separação obrigatória de bens (art. 1.641). Essa restrição abrange tanto a constituição de sociedade unicamente entre marido e mulher, como destes junto a terceiros, permanecendo os cônjuges como sócios entre si.

De outro lado, em respeito ao ato jurídico perfeito, essa proibição não atinge as sociedades entre cônjuges já constituídas quando da entrada em vigor do Código, alcançando tão somente, as que viessem a ser constituídas posteriormente. Desse modo, não há necessidade de se promover alteração do quadro societário ou mesmo da modificação do regime de casamento dos sócios cônjuges, em tal hipótese.

Como se percebe, pelos importantes reflexos que defluem da questão, o artigo 2.031 do Código de 2002, que estabelece prazo para a adaptação das sociedades empresárias constituídas antes de sua promulgação ao novo disciplinamento, tem sido uma das maiores fontes de controvérsia e incertezas emanadas do novo Diploma Civil. Com o intuito de afastar a insegurança gerada pelas conflitantes interpretações dadas a esse preceito, faz-se mister a realização de uma pesquisa acerca de sua validade. Destarte, à luz da doutrina esposada por insignes estudiosos do Direito em face do princípio da irretroatividade das leis, bem como do ato jurídico perfeito e da natureza do contrato social, pretende-se, com este estudo, desenvolver uma visão acurada sobre a real condição do aludido dispositivo frente ao ordenamento jurídico. É tarefa de vital importância, pois, acaso as sociedades que se encontrem na situação narrada não realizem a adaptação de seus contratos sociais, e os Tribunais não concluam pela inconstitucionalidade do comando que impõe tal procedimento, serão tidas como irregulares e, dentre as graves conseqüências a que estão sujeitas, haverá a perda da autonomia patrimonial dos sócios.


2. O novo Código Civil e os contratos sociais firmados antes de sua vigência

Pode-se dizer, com devido respaldo em alguns dos maiores estudiosos do Direto, que a promulgação do Código Civil de 2002 significou um marco na história legislativa do Brasil7. Com ele, os princípios da eticidade, da socialidade, da dignidade da pessoa humana, dentre outros consagrados na Constituição de 1988 foram erigidos como base de todo um novo ordenamento juscivilístico, o qual assumiu como sua ratio essendi o ser humano. Coincidindo com os alvores do Século XXI, a promulgação do novo Codex representou o fim do antigo regime imposto pelo Código de 1916, marcadamente patrimonialista e individualista. Outrossim, é possível identificar inúmeras outras inovações trazidas por esse Diploma. E, dentre essas, talvez a que mereça o maior destaque seja a resultante do disposto no artigo 2.045, que ao revogar a parte geral e especial do Código Comercial de 1850, ressalvada aquela referente aos contratos de comércio marítimo, culminou com a unificação parcial do Direito Privado. Com inspiração no Código Civil Italiano de 1942, que acolheu a teoria elaborada pelo professor Vivante8, aboliu-se a diferenciação que havia anteriormente entre obrigações civis e comerciais, e ambas passam a ser reguladas por um único conjunto normativo. Mesmo que tardiamente, abandonou-se a antiga Teoria dos Atos de Comércio, extraída do Código Comercial francês de 1807, que garantia apenas os privilégios da legislação comercial àqueles que promoviam a circulação de mercadorias de forma profissionalizada, para, respaldada na moderna "Teoria da Empresa" (artigo 9669, Código Civil), adotar uma nova perspectiva sobre as atividades empresariais, em que, não se ocupando em verificar se comercial ou civil, investiga-se o modo como a atividade é exercida, isto é, se constitui elemento de empresa, para saber se sujeitará, ou não, ao tratamento diferenciado concedido pelo direito empresarial.

Portanto, a partir da unificação parcial do direito privado, as sociedades, que nas palavras do artigo 981 do Código Civil constituem da "união de pessoas que se obrigam reciprocamente, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados (...)" passam, todas elas, desde que presente o elemento de empresa, a ter o mesmo tratamento jurídico, independente da natureza da atividade desempenhada. A disciplina que anteriormente ficava a cargo de Diplomas distintos, ou seja, o Código Comercial e Decreto-Lei n°. 3708/1919 para sociedades mercantis, e o Código Civil de 1916 para as prestadoras de serviços10, foi disposta no novo Diploma Civil em um único Título, o "Da Sociedade". Os tipos societários foram todos mantidos, com exceção da sociedade de Capital e Indústria, cuja disciplina sofreu revogação expressa. É bem verdade que o regramento dispensado à sociedade simples, por outro lado, criou a possibilidade dessa entidade se organizar nos moldes da Sociedade de Capital e Indústria (art. 100611, CC), todavia, por não ser objeto do presente trabalho, limitar-se-á neste momento a esse breve comentário sobre a questão. Assim, as antigas formas de constituição societárias dispostas no Código Comercial, qual sejam, as sociedades em nome coletivo, em comandita simples e as em conta de participação foram mantidas, passando por poucas modificações. Tal fato recebeu severas críticas de estudiosos do Direito, pois, ao não acompanhar as exigências impostas pelo dinamismo empresarial, caíram em total desuso. A referência a elas, segundo eles, constitui apenas em um texto histórico inserido no corpo do moderno regime societário. Mas, no que concerne ao mais importante tipo de sociedade, ao lado das Sociedades por Ações, o Código, ao contrário, dispensou um tratamento que alterou profundamente sua estrutura. As limitadas, que segundo dados estatísticos representam mais de 95% das sociedades em operação registradas nas Juntas Comerciais do País12, anteriormente reguladas pelo Decreto-lei 3.708 de 1919, por demais simplista e lacunoso, o que conferia quase sua completa disciplina ao estatuído no contrato social, passam com o novo Código a receber tratamento tão detalhado que as faz, para alguns doutrinadores, aproximarem-se, nesse aspecto, à complexa S/A.

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Com efeito, o novo Código estabeleceu como regra geral para deliberações a assembléia dos quotistas da sociedade limitada, observando-se, para tal ato, um conjunto de solenidades semelhantes ao aplicável às S/As (artigos 1.071 a 1.080). Além disso, diferentemente da Lei anterior, foram prescritas rigorosas restrições para a exclusão de sócios minoritários. Criou-se, ainda, a possibilidade de instituir um conselho fiscal (artigos 1.066 a 1.070) e de ser a sociedade administrada por um terceiro estranho a ela, bem como se estipulou, no artigo 1.053, a regência supletiva das limitadas por meio das normas da sociedade simples, exceto se o contrato social elegesse a Lei da Sociedade por Ações em substituição. A título ilustrativo, essas são algumas das alterações de maior reflexo na existência da sociedade limitada.

Igualmente, trouxe o Código de 2002 a vedação transcrita no artigo 977, essa aplicável a toda modalidade social, de serem sócios o marido e mulher casados sob o regime da total comunhão ou da total separação de bens. Motivo de grande celeuma, tal dispositivo revigorou uma antiga proibição superada há décadas pela doutrina e jurisprudência pátrias13, porque as prováveis fraudes pretensamente por ele cerceadas podem ser impedidas por meio de outros mecanismos, sem ferir o princípio da preservação da empresa.

Mas tão importante quanto às alterações sofridas pelas sociedades é análise que deve ser feita sobre a obrigatoriedade das aludidas modificações serem incorporadas aos contratos sociais constituídos antes do advento do novo Código. Principalmente devido ao termo final estabelecido no artigo 2.031 desse Diploma (com a redação dada pela Lei no. 11.127/2005) para a realização de tal procedimento ter ocorrido em 11 de janeiro de 2007, e as maiores inovações refletirem nas limitadas, o tipo societário mais utilizado e relevante no universo empresarial brasileiro, pelo menos no que concerne às microempresas e empresas de pequeno porte.

Nesse aspecto, especial relevo adquire a tese segundo a qual os contratos orgânicos das sociedades revestem-se da qualidade de ato jurídico perfeito, fato que os tornaria insuscetíveis da incidência do atual Código. De acordo com essa exegese, o artigo 2.031 que estabelece a sujeição das sociedades constituídas sob a égide do Diploma de 1916 ao regime superveniente fere o princípio da irretroatividade das leis, consagrado na Carta da República, art. 5°., inciso XXXVI, e na Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6°., porquanto pretende regular fatos jurídicos completos e acabados ocorridos em momento pretérito a sua vigência. Logo, as sociedades que se enquadrassem nessa situação não estariam obrigadas a modificar seus estatutos face aos novos preceitos e nem por isso poderiam ser enquadradas como irregulares (art. 98614 CC). Nesse caso, não se sujeitariam às restrições aplicáveis a esses empresários, tais como ensina Fábio Ulhoa Coelho15 (2005), a perda da autonomia patrimonial dos sócios, a impossibilidade de pedir a falência dos seus devedores e a própria recuperação judicial, a ineficácia probatória dos seus livros comerciais, bem assim a vedação de se inscrever em cadastros de contribuintes, participar de licitações e contratar com o poder público, dentre outras. Portanto, se prevalecer esse entendimento, defendido por autores do escol de Rubens Requião16, sociedades empresárias constituídas anteriormente ao Código de 2002, como aquelas formadas entre marido e mulher casados sob o regime de comunhão universal de bens ou no regime de separação, teriam direito adquirido ao seu status, gozando de plena regularidade, não obstante a incompatibilidade com as novas regras pertinentes.

Surge então, diante da importância desses argumentos que contestam a validade do estatuído no art. 2.031 do novo Código, a necessidade de investigar, com a devida perspicácia, se verdadeiramente os contratos sociais revestem-se da qualidade de ato jurídico perfeito. Só assim será afastada a insegurança existente no atual cenário empresarial, em face da incerteza sobre a obrigatoriedade, ou não, dos pactos sociais anteriores a novo Código serem adaptados a ele.


3. O Ato Jurídico Perfeito

Os valores sociais modificam-se de forma constante, fato que reflete a própria evolução dos agrupamentos humanos. Já os preceitos contidos nas normas de conduta devem estar em perfeita sintonia com os anseios da sociedade, sob pena de perder sua imprescindível eficácia, o que frustraria o alcance de seus objetivos. Nesse sentido, é dever do legislador, em atenção aos ditames do progresso social, atualizar as regras jurídicas sob sua competência para conferir efetividade ao Direito. No entanto, o exercício dessa tarefa está submetido ao princípio da irretroatividade das leis, essencial para garantir a segurança do homem na Terra.

Assim, quando uma lei entra em vigor, a sua incidência é para o presente e para o futuro. Significa que as relações jurídicas ocorridas sob a égide do diploma revogado permanecem plenamente válidas e imunes à nova ordem. Consagra-se, desse modo, o respeito à segurança e à estabilidade social, pois afastam a surpresa da modificação legislativa, verdadeiro atentado ao planejamento dos atos civis. Outrossim, ao vedar a aplicação da disciplina de uma lei sobre fatos anteriores a sua edição reafirma-se a autoridade do Estado, pois é mantida a eficácia dos comandos por ele emanados, e, ainda, evitam-se eventuais arbitrariedades perpetradas por legisladores tiranos.

Na ordem jurídica brasileira a regra geral da irretroatividade das leis, como lembra Carlos Maximiliano (1946), foi erigida a idéia de dogma constitucional. Na salvaguarda desse princípio foi estatuído no artigo 5º., XXXVI da Magna Carta o respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. Em matéria de direito intertemporal, a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 6º., repete o mesmo paradigma, desdobrando os aludidos institutos jurídicos de garantia contra a eficiência retrooperante da lei nos seus dispositivos seguintes. Portanto, de acordo com a norma vigente, a lei tem efeito imediato e geral, respeitando sempre o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Por intermédio desse preceito, impede-se, em todos os seus aspectos, a eficácia de comandos que tenham por finalidade regular fatos pretéritos a sua vigência.

Tendo em vista os objetivos colimados por este trabalho, enfoque específico deve ser dispensado à definição de ato jurídico perfeito consignado pelo diploma em análise. Pois bem, o § 1º., do art. 6º., da Lei de Introdução ao Código Civil, reputa ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Trata-se, portanto, daquelas relações jurídicas geradoras, modificativas, ou extintivas de direitos, em que configurados estão todos os seus elementos característicos. As partes cumpriram todos os deveres necessários para tornar o ato apto a produzir efeitos. O professor Caio Mário assim sintetiza o conceito17: "É o ato plenamente constituído, cujos requisitos se cumpriram na pendência da lei sob cujo império se realizou, e que fica a cavaleiro da lei nova."(PEREIRA, 2000, p. 105). Subsídios não menos esclarecedores acerca do tema são os extraídos das lições do constitucionalista José Afonso da Silva, para quem:

Esse direito consumado (ato jurídico perfeito) é também intangível pela lei nova, não por ser ato perfeito, mas por ser direito mais do que adquirido, direito esgotado. Se o simples direito adquirido (isto é, direito que já integrou o patrimônio, mas não foi ainda exercido) é protegido contra a interferência da lei nova, mais ainda o é o direito adquirido já consumado.(...) É perfeito ainda que possa estar sujeito à condição.

(SILVA, 1997, 414)

Verifica-se por meio dos ensinamentos trazidos a lume que o postulado constitucional sob o qual o ato jurídico perfeito fica imune às alterações posteriores da legislação somente tem aplicação se a referida relação estiver consumada, acabada e formalizada. Deve, por isso, ter concluído todo o trâmite necessário para a sua formação e preenchido todas as exigências legais antes da entrada em vigor da nova disciplina com ele incompatível para que os seus efeitos sejam garantidos. O doutrinador César Fiúza é enfático ao destacar este significado do instituto jurídico em exame: "(...) Ato jurídico perfeito, por já estar consumado. Por já ter sido concluído. A palavra perfeito é na verdade o particípio passado do verbo perfazer. Perfazer/perfeito, como ver/visto. É assim que a palavra deve ser entendida, e não como sinônimo de absolutamente sem defeitos."(FIUZA, 2003, p. 79).

Nesse aspecto, nota-se que o contrato de sociedade jamais poderá ser enquadrado como um ato jurídico perfeito. Dotado de certas particularidades, fato que o difere de outros tipos de pacto de execução continuada, não reúne os indispensáveis atributos que o caracterizariam como um ajuste plenamente consumado, vulnerando-o diante de normas supervenientes. Demonstrar sua natureza sui generis é, portanto, imperativo neste momento.

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Sobre o autor
Sidnei de Carvalho Isidório

advogado em Belo Horizonte (MG), assessor jurídico concursado da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, pós-graduado em Direito Empresarial pelo Centro Universitário Newton Paiva

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ISIDÓRIO, Sidnei Carvalho. Os contratos sociais firmados antes da edição do Código Civil de 2002 e o ato jurídico perfeito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1635, 23 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10789. Acesso em: 23 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho apresentado ao Curso de Pós-Graduação em Direito Empresarial do Centro Universitário Newton Paiva, ministrado no período de abril de 2005 a maio de 2006.

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