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Direito fundamental ao aborto

29/12/2007 às 00:00
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Aborto é crime? Diz o Código Penal que sim, mas a sociedade esta reclamando sua descriminalização.

Mas não se pode esquecer que o Código Penal data do ano de 1940, época em que a sociedade estava de tal modo condicionada a preceitos conservadores de origem religiosa, que outra não poderia ter sido a escolha do legislador. Não havia como deixar de prestigiar a paz familiar e admitir o aborto quando a gravidez resultasse da prática do crime de estupro. Tal exceção visa a permitir que não integre a família um ‘bastardo’, pois a lei civil presume que o marido de uma mulher casada é o pai de seu filho. Assim, a gravidez, mesmo decorrente de violência sexual, faz com que o filho do estuprador seja reconhecido como filho do marido da vítima e herdeiro do patrimônio familiar. Essa é a justificativa para a possibilidade do chamado aborto sentimental, apesar de não haver nenhuma preocupação com o sentimento da vítima.

A outra hipótese de interrupção da gravidez é em caso de estado de necessidade, ou seja, quando está em perigo a vida da mãe. Fora dessas duas exceções, quem realiza a interrupção voluntária da gravidez é considerado criminoso. Sequer quando modernas técnicas de ultra-sonografia possibilitam identificar que está sendo gestado um ser sem vida, por ausência de cérebro (má formação que recebe o nome de anencefalia), preocupa-se a lei em esclarecer que a antecipação terapêutica da gestão não configura aborto em face da inexistência de vida a ser preservada.

Porém, independente do conteúdo punitivo de natureza penal a criminalização do aborto não tem caráter repressivo, porque nem toda gravidez decorre de uma opção livre. Basta ver os surpreendentes índices da violência doméstica e da violência sexual. Para quem vive sob o domínio do medo, não há qualquer possibilidade de fazer a sua vontade prevalecer. Por isso as mulheres conciliam fé, moral e ética com a decisão de abortar.

Imposições outras limitam a liberdade feminina. A situação de submissão que o modelo patriarcal da família ainda impõe à mulher não lhe permite negar-se ao contato sexual. Persiste ainda a infundada crença de que o chamado débito conjugal faz parte dos deveres do casamento. A vedação de origem religiosa ao uso de métodos contraceptivos submete a mulher à prática sexual sem que possa exigir o uso da popular camisinha. Diante de todas essas restrições, imperativo é reconhecer que a gravidez não é uma escolha, havendo a necessidade de admitir-se sua interrupção.

Atentando a essa realidade é que a Constituição (art 226, § 7º), ao proclamar como bem maior a dignidade humana e garantir o direito à liberdade, subtraiu o aborto da esfera da antijuridicidade. No momento em que é admitido o planejamento familiar e proclamada a paternidade responsável, não é possível excluir qualquer método contraceptivo para manter a família dentro do limite pretendido. Assim, frente a norma constitucional, que autoriza o planejamento familiar, somente se pode concluir que a prática do aborto restou excluída do rol dos ilícitos penais. Mesmo que não se aceite a interrupção da gestação como meio de controlar a natalidade, inquestionável é que gestações involuntárias e indesejadas ocorrem e, somente se for respeitado o direito ao aborto, a decisão sobre o planejamento familiar se tornará efetivamente livre.

O preceito constitucional foi além. Atribuiu ao Estado o dever de assegurar os meios necessários para que a família possa decidir sobre sua extensão: compete ao Estado propiciar recursos educativos e científicos para o exercício desse direito. Isso significa fornecer informações sobre métodos preventivos e disponibilizar meios contraceptivos. Não só distribuir camisinha, pílula anticoncepcional, pulula do dia seguinte, colocar DIU e realizar laqueadura. Também deve proceder à interrupção da gestação por médico habilitado e pela rede pública de saúde. Ainda que não deva o aborto ser utilizado como método de controle da natalidade, não se pode afrontar a liberdade da mulher de optar pelo número de filhos que deseja ter. Portanto, além de não poder proibir a interrupção da gravidez, o Estado tem o dever de proporcionar recursos para sua prática, assegurando os meios para sua realização de forma segura.

Em face da falta de recepção pelo novo sistema jurídico, perdeu o aborto seu caráter ilícito não só nas hipóteses em que é possível sua prática. A questão deixou de ser penal. Tornou-se uma grande questão social pois a clandestinidade em que é realizado põe em risco a vida de milhões de mulheres.

Mesmo que a lei criminalize o aborto, a sociedade não o aceita como crime, conforme concluiu a Comissão Tripartite integrada por representantes dos Poderes Executivo e Legislativo e da sociedade civil. Entregue à Câmara dos Deputados, imperiosa sua tramitação em regime de urgência, para que se garanta à mulher o direito à sua própria fertilidade, como forma de assegurar respeito à sua dignidade.

É chegada a hora de cessar com a prática criminosa de ignorar que o aborto é um fato social existente.

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Sobre a autora
Maria Berenice Dias

Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões. Pós-Graduada e Mestre em Processo Civil. Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Maria Berenice. Direito fundamental ao aborto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1641, 29 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10810. Acesso em: 24 nov. 2024.

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