A Constituição Federal - artigos 1º, III, 3º, I e IV, 5º, caput e I, 7º, XXX, 183, § 1º e 189, § único, o Decreto 4.377/2002, que internaliza Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, estado inconstitucional de coisas decorre de muitos fatores históricos desde primórdios da civilização e, mormente, da nossa sociedade, que em parte significativa ainda patriarcal, permeada de um machismo estrutural e com uma tradição de contumazes condutas eivadas de covardia e falta de escrúpulos com o sexo feminino.
Imperativo cessar as atuações inconstitucionais em inquéritos e processos, por ação e omissão, que dão ensejo a contumaz discriminação das mulheres vítimas de bárbaro crime sexual, inibem a busca por justiça e favorecem o agressor, o que sedimenta a cultura do estupro e normaliza a violência sexual.
Levando em consideração o contexto fático, é nítido que há necessidade de uma rede de proteção que fortaleça a credibilidade da instituição judiciária em face à mulheres estupradas vítimas de violência de gênero, promovendo de forma inicial a capacitação de todos os agentes públicos envolvidos, da chegada da notícia crime até a sua resolução.
Nesta diapasão, pode-se indicar como um avanço o Resolução do CNJ 350/2020, traz ao entendimento geral que o judiciário deve unir forças a fim de salvaguardar direitos essenciais ao bom funcionamento da justiça e manter sua credibilidade. As técnicas utilizadas para a coletivização do processo – como os Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), entre outros – encontram meios de reunir ações individuais similares em um mesmo conjunto, de forma a facilitar a gestão de múltiplos casos e garantir a participação dos sujeitos do processo – autor, réu, Ministério Público, Defensoria Pública, amicus curiae. Desta forma, imperiosa a utilização da cooperação entre comarcas, a fim de erradicar tais situações vexatórias à dignidade da mulher.
Houve também a recente edição da Lei 14.245/21 (Lei Mariana Ferrer), que prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos. A nova lei aumenta a pena para o crime de coação no curso do processo, que já existe no Código Penal. Essa teve origem a partir do caso da influenciadora digital Mariana Ferrer, que denunciou ter sido dopada e estuprada durante uma festa em Santa Catarina, em 2018. Durante o julgamento, a defesa do acusado fez menções à vida pessoal de Mariana, inclusive se valendo de fotografias íntimas. Segundo a depoente, as fotos foram forjadas. O réu foi inocentado por falta de provas.
Todavia, a realidade no País revela uma crônica agressão de toda ordem às mulheres na sociedade, bem como no próprio aparato estatal que as devia tutelar.
Afora o grande volume cotidiano também de outros tipos penais, a exemplo de agressões psicológicas, lesões corporais e feminicídios, segundo o IPEA, o montante anual estimado de estupro perfaz a horrível quantia de 822 mil e desse total, apenas 8,5% são registrados na polícia e 4,2% no sistema de saúde.
Trata-se de uma odiosa revitimização e retraumatização de mulheres vítimas de crimes bárbaros, que tem incomensuráveis consequências, na tentativa de relativizar atos criminosos perpetrados. Esse contexto fático, embora contrarie preceitos elementares do ordenamento jurídico, condiz com a realidade cotidiana e as inibem fortemente de acionar o Estado.
Essa subversiva situação de valores e princípios originou a recente Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1107, impetrada pela Procuradoria Geral da República contra tais práticas inconstitucionais. Visa, a princípio, não a uma declaração de inconstitucionalidade de uma lei, e sim que o Corte Constitucional do País declare contrárias à Carta Magna as condutas discriminatórias de agentes públicos e advogados que permeiam atividades de repressão, investigação e julgamento, assim como haja a devida responsabilização:
“Para além das dificuldades já ordinariamente enfrentadas no julgamento de crimes dessa natureza, relacionadas à comprovação dos fatos – por ser crime praticado na intimidade, na maioria das vezes sem a presença de ninguém mais além da vítima e de seu agressor – e à gradação do que seria consentimento, desconsiderando-se muitas vezes o relato da vítima, não é usual a repreensão a comportamentos como esses, de desqualificação da mulher violentada. Contrariamente, esteriótipos de gênero direcionam a atuação investigativa e jurisdicional. Em ambiente que haveria de ser de acolhimento, a mulher vítima de violência passa a ser, ela própria, julgada em sua moral e modo de vida, na tentativa da defesa de justificar a conduta do agressor, e sem a reprimenda proporcional pelo Estado. A sua exposição ou sujeição a escrutínio por terceiros é forma velada de mitigação dessa liberdade.
Validar essa prática representa retroceder a período em que o direito à liberdade sexual não existia ou era relativizado, favorecendo a impunidade do criminoso e, em consequência, a própria prática do crime. Como efeito perverso, antes exposto, as vítimas deixam de denunciar, por medo da exposição e de não se fazerem acreditar. Medo provocado, rotineiramente, pelo aparato que haveria de proteger a sua dignidade e punir o agressor. O ciclo da cultura do estupro – de banalização da violência sexual – perpetua-se, em detrimento das vítimas e em benefício do criminoso. Certamente não é o sistema almejado pela sociedade.
O direito de defesa, fundamental num país democrático, não pode ser utilizado para reforçar estereótipos que levam à banalização do crime de estupro praticado contra a mulher. Na apreciação das imputações penais relacionadas a violência sexual contra a mulher, o consentimento da vítima é o único elemento a ser averiguado; considerações sobre o comportamento da vítima partem de conduta enviesada e discriminatória e devem ser prontamente contidas e repreendidas.”
Não se pode olvidar ainda que em recente decisão, o STF vedou, também em sede de ADPF, o infame argumento de “legítima defesa da honra” como excludente de crimes contra as mulheres:
“A legítima defesa da honra” é recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra a mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões. Constitui-se em ranço, na retórica de alguns operadores do direito, de institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e de tolerância e naturalização da violência doméstica, as quais não têm guarida na Constituição de 1988. Referido recurso viola a dignidade da pessoa humana e os direitos à vida e à igualdade entre homens e mulheres (art. 1º, inciso III, e art. 5º, caput e inciso I, da CF/88), pilares da ordem constitucional brasileira. A ofensa a esses direitos concretiza-se, sobretudo, no estímulo à perpetuação do feminicídio e da violência contra a mulher. O acolhimento da tese teria o potencial de estimular práticas violentas contra as mulheres ao exonerar seus perpetradores da devida sanção. A “legítima defesa da honra” não pode ser invocada como argumento inerente à plenitude de defesa própria do tribunal do júri, a qual não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. Devem prevalecer a dignidade da pessoa humana, a vedação de todas as formas de discriminação, o direito à igualdade e o direito à vida, tendo em vista os riscos elevados e sistêmicos decorrentes da naturalização, da tolerância e do incentivo à cultura da violência doméstica e do feminicídio.”
(ADPF 779, Rel. Min. Dias Toffoli,, DJE 6.10.2023)
Desse modo, a despeito de ampla proteção no Direito positivo, remanesce uma ampla e crônica discriminação de gênero contra as mulheres em inquéritos e processos por meio de sistemático questionamentos sobre a vida antecedente, aviltando direitos fundamentais, o que enseja do Pretório Excelso vedar essas condutas inconstitucionais, bem assim determinar que haja a apuração da responsabilidade na esfera administrativa, civil e penal, de quem atue, por ação ou omissão, discriminando e retraumatizando as mulheres estupradas.