O Rei Leonardo I, Soberano da Floresta, um leão de juba volumosa, mau humor crônico, garras afiadas e olhar perverso, estava muito aborrecido nas savanas da África, principalmente com seu Ministro da Segurança, Rino Ceronte, que não conseguia reduzir a criminalidade. As zonas de recolhimento, como eram chamadas as cadeias, vigiadas pelas serpentes venenosas, já não suportavam mais condenados e mais condenados. E o que mais enfurecia Sua Excelência Real eram os desvios de conduta de menor gravidade ofensiva, como pequenos furtos, nos quais os símios se mostravam mestres, estelionatos cometidos por raposas safadas, roubos só com ameaça, lesões corporais, brigas de marido e mulher, intrigas na beira dos lagos quase secos, injúrias, geralmente cometidas pelas hienas, atropelamentos culposos em que os rinocerontes e os búfalos ganhavam todas as estatísticas, e tantos outros. A Comissão de Justiça, da qual a coruja Sabiana Prudente era a Presidente, andava abarrotada de processos. Havia volumes até na suíte da Rainha Leocrácia, que reclamava urgência na tomada de alguma medida salvadora. E havia ainda uma tal de prescrição retroativa, que fazia o Rei urrar de raiva, muito requerida pelos advogados do reino, principalmente por certos macacos que não punham a mão na cumbuca, chamados rábulas por sua experiência prática, sempre conseguindo a liberação dos réus diante do excesso de prazo cometido pelos membros da Comissão de Justiça.
Em conversa com o Ministro da Justiça, um macaco velho de nome Justino Justo, Sua Excelência recebeu uma idéia. "Ora", explicou, "se muitos processos terminam antes do tempo sem condenação do bicho culpado por causa dessa tal de prescrição retroativa, vamos acabar com ela. Ainda mais se ela e a chamada prescrição comum estão fazendo com que os Juízes da Comissão de Justiça não julguem os processos de menor potencial ofensivo, ao mesmo tempo em que extinguimos a primeira, vamos também elevar o prazo da ocorrência da segunda. Pouco a pouco, Excelência, vamos tirando os direitos dos réus e diminuindo os casos que podem levá-los à absolvição. Com isso, Real e Soberano Rei, conseguiremos reduzir a criminalidade. Os bichos delinqüentes ficarão apavorados", encerrou o Ministro. E assim foi feito no reino da bicharada.
Pois bem. A prescrição retroativa, tal como se aplica no Brasil ao abrigo do art. 110, §§ 1.º e 2.º, do Código Penal (CP), na redação dada em 1984, é uma peculiaridade do nosso Direito. Uma preciosidade em complicações. Não é fácil entendê-la nem explicá-la, até mesmo no âmbito de uma sala de aula de Direito Penal, pois, se fosse falar em termos matemáticos, trata-se de uma equação que, para ser resolvida, necessita da combinação de diversas variantes [1].
Lembro-me de que, certa vez, há muitos anos, almoçava em Buenos Aires, na agradável companhia de penalistas argentinos. A certa altura, um deles me pediu que lhe explicasse direito "la historia esa de prescripción retroactiva que Uds. tienen en Brasil". Fiz o que pude. Tentei explanar da melhor forma possível, mas não consegui fazê-lo compreender esse instituto do nosso sistema. Recordo o dito, ao mesmo tempo desalentado e de quem tentava ser amável, com que ele encerrou o assunto:
– Eso és muy desconcertante, Prof. Damásio!
Apesar de tudo, sou contra a abolição da prescrição retroativa. Em 2003, foi proposta sua extinção no Projeto de Lei n. 1.383/2003, apresentado pelo então Deputado Federal Antônio Carlos Biscaia. Depois de quatro anos de tramitação, a iniciativa, no Senado, recebeu Emenda única e Parecer final, seguindo para a Câmara dos Deputados. Se tornado lei, o art. 110, § 1.º, do CP, extinguindo a prescrição retroativa, passa a ter a seguinte redação:
"Art. 110 [...]
[...]
§ 1.º A prescrição, depois de transitar em julgado a sentença condenatória para a acusação e defesa, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da publicação da sentença ou do acórdão."
Em conseqüência, revoga-se o § 2.º do art. 110.
Como é cediço, pelo estabelecido no CP em vigor, conta-se a prescrição da pretensão punitiva, depois de transitada em julgado a sentença condenatória para a acusação, ou não cabendo seu recurso, retroativamente desde a data do fato criminoso ou da data do recebimento da denúncia ou queixa, tendo como base do cálculo a pena imposta.
O Projeto, recém-aprovado pela Câmara Alta, extingue, nas condenações, a prescrição retroativa, e aumenta, ademais, de dois para três anos o prazo mínimo de prescrição para crimes de menor gravidade, com penas inferiores a 1 ano.
O grande argumento a favor da abolição da prescrição retroativa é o de que isso impedirá a impunidade. Citam-se casos concretos de criminosos cujos processos foram sendo empurrados para a frente por advogados hábeis que, valendo-se dos recursos processuais correntes e da lentidão de um sistema judiciário moroso e freqüentemente mal-aparelhado, conseguiram com que seus clientes nada ou quase nada sofressem.
Para os partidários do fim da prescrição retroativa, aboli-la parece a panacéia que sanará todos os males e alçará o Brasil, ipso facto, a campeão mundial da aplicação de uma Justiça justa, rápida e eficiente. De modo simplificado, raciocinam assim: ou o cidadão é inocente ou é culpado. Se inocente, não tem nada a temer da Justiça e, portanto, não se beneficiará da possibilidade de uma prescrição, ainda mais retroativa. Se culpado, requer o interesse da sociedade que ele seja condenado a qualquer tempo e sem qualquer contemplação. Assim, o instituto da prescrição retroativa somente beneficia o culpado e favorece a impunidade.
Sinto decepcioná-los, mas as coisas não são tão simples assim.
Na realidade, deve-se ter em conta que a prescrição retroativa é uma defesa do cidadão contra a morosidade do Estado em julgá-lo e puni-lo. Com a prescrição, perde-se, pelo decurso de tempo, o jus puniendi do Estado, o direito que o Estado tem de punir o fato criminoso a bem do interesse social. Entende-se que, pela demora e pela inércia, o próprio Estado precisa reconhecer que desapareceu o interesse social na punição daquele delito, sepultado pelo esquecimento geral. Por isso, ele tem um prazo para julgar e punir, sob pena de, não o fazendo a seu tempo, perder o próprio direito de fazê-lo. Esse é o fundamento da prescrição, inclusive o da prescrição retroativa.
O acusado, inocente ou culpado, tem direito a ser julgado em tempo razoável. A incerteza da condenação e o estigma que, inevitavelmente, acompanha na vida social qualquer pessoa que esteja "respondendo a processo" já representam, de per si, uma punição que atinge tanto culpados como inocentes – e até mais a estes do que àqueles pelo simples fato de que os inocentes não se beneficiam daquela peculiar forma de insensibilidade anestesiante que as consciências cínicas possuem.
A prolongada incerteza de um mal possível faz sofrer, às vezes, até mais do que a própria realização do mal. O gênio grego exprimiu tal situação pela conhecidíssima metáfora da espada de Dâmocles. Ora, para quem sofre o tormento de ter a espada sempre pendente sobre a cabeça, representa um alívio saber, a cada dia que passa, que tal tormento está se aproximando de um termo pré-estabelecido por lei. A não existência desse termo significará eternizar, ou pelo menos perpetuar, o tormento do pobre Dâmocles. Assim, a abolição desse instituto extintivo da punibilidade, que em tese agrava o cidadão culpado e, por isso mesmo, beneficia o cidadão inocente, na prática prolonga a tortura de ambos.
Por quê? Por uma razão muito simples. Extinguir a prescrição retroativa significa incentivar ainda mais a morosidade da Justiça, já que, demore ela quanto haja por bem demorar, isso em nada ou quase nada afetará seu termo. O réu somente poderá ser beneficiado, sob o prisma da causa extintiva da punibilidade de que estamos falando, com a incidência da prescrição comum. O Estado, dessa forma, exercerá uma espécie de vingança perversa, uma vingança social, na palavra de Nélio Machado [2], não contra a autoridade inoperante, mas contra o réu. É um prêmio à inércia do Estado, como disse Celso Villardi [3].
A solução, a meu ver, consiste em aparelhar melhor os sistemas policial e judiciário, para que investigações e procedimentos judiciais tenham condições melhores para correr com uma celeridade compatível com o bom senso e o legítimo interesse de todos, acusados inocentes, acusados culpados e, sobretudo, da sociedade como um todo.
É verdade que, como lembram muitos, e eu próprio lembrei no início deste artigo, a prescrição retroativa, como entre nós se pratica, é uma peculiaridade brasileira, não existindo nada semelhante em países ditos "avançados". Acontece que, nesses Estados, muitos deles de formação jurídica anglo-saxônica bem diferente da nossa, que é sobretudo latina, a justiça é rápida e eficiente e, portanto, não teria o menor propósito esse instituto. É óbvio: torna-se inaplicável a prescrição retroativa numa legislação criminal cujos prazos de encerramento do processo são obedecidos. Vejo a abolição da prescrição retroativa como mais uma iniciativa bem intencionada, mas ingênua, para diminuir a impunidade e, assim, favorecer a justiça. Na prática, como tantas outras propostas análogas de agravamento draconiano das penas previstas em lei, não coibirá a prática do crime e terá o efeito colateral perverso de aumentar ainda mais a pressão abusiva que o Estado todo-poderoso, punitivo e cominativo, exerce sobre a sociedade civil. Além disso, o Projeto contraria o princípio de que a pena só deve ser aplicada em último caso, como afirmou corretamente o advogado Jair Jaloreto Júnior [4].
Nunca me canso de repetir: não será aumentando o número e o rigor das leis penais que se desestimulará a prática do crime. O que pode inibir o criminoso é a certeza de que sua ação será punida. E, pelas razões que apontei acima, a abolição da prescrição retroativa somente tornará mais tardia e incerta a punição do crime.
NOTAS
[1] Veja nosso Prescrição Penal. São Paulo: Saraiva, 2005.
[2] CRISTO, Alessandro. Projeto de lei dá fim à prescrição retroativa. Valor Econômico, São Paulo, out. 2007.
[3] Valor Econômico, out. 2007.
[4] Valor Econômico, out. 2007.