VII. Condomínio horizontal de lotes
O instituto do condomínio horizontal de lotes, salienta-se de início, será incorporado pela nova Lei de Responsabilidade Territorial (Projeto de Lei n.º 20/2007) na forma de condomínio urbanístico (art. 3º, XII, do Projeto de Lei n.º 20/2007). O mesmo ocorrerá com o instituto do loteamento fechado, conforme já referido.
Atualmente (em Porto Alegre, há mais de vinte anos), porém, pululam empreendimentos imobiliários sob a formatação de condomínio horizontal de lotes, fundamentados, sob o prisma de sua validade, no artigo 3º do Decreto-lei n.º 271/67, em combinação com o artigo 8º da Lei Federal n.º 4.591/64. Esta é a fórmula. Trata-se de empreendimento que tem por finalidade a criação de unidades autônomas (constituídas por lotes) sob as quais serão – ou não – realizadas construções, a critério do adquirente do lote.
De acordo com o Doutor João Pedro Lamana Paiva, Oficial Registrador da Comarca de Sapucaia do Sul/RS (notória autoridade no assunto), esta modalidade de empreendimento difere de outras formas de aproveitamento do solo urbano, como o loteamento fechado ou o próprio condomínio edilício. Embora apresentando alguma similitude com o loteamento fechado, com este não se confunde porque no condomínio horizontal de lotes não há necessidade de transferência de áreas (ruas, áreas verdes e áreas institucionais) para o Poder Público municipal e a concessão de uso destas áreas ao proprietário/empreendedor. Na modalidade ora comentada, as áreas que seriam destinadas à municipalidade permanecem sendo particulares e se destinam, via de regra, ao acesso de cada unidade autônoma (lote) ao logradouro público.
O condomínio edilício exige, para a sua instituição, a prévia construção (edificação) do empreendimento. No condomínio horizontal de lotes, por força do artigo 8º e alíneas "a", "c" e "d", da Lei Federal n.º 4.591/64 e do artigo 3º do Decreto-lei n.º 271/67, equipara-se as obras de infra-estrutura à construção da edificação. Logo, a realização das obras de infra-estrutura pelo empreendedor supre a necessidade de construção do prédio (casa/edifício), pois o requisito legal já estará atendido. Assim, a unidade autônoma será o lote e não a edificação sobre este. Com isso, admitir-se-á a cada titular de unidades autônomas a livre utilização e exploração do bem imóvel da forma que melhor lhe aprouver, desde que respeitadas as normas de ordem pública e as prévias estipulações constantes da convenção de condomínio.
Portanto, para a implementação desta espécie de empreendimento (condomínio horizontal de lotes), é mister que o proprietário/empreendedor apresente ao Ofício do Registro de Imóveis os seguintes documentos: a) um requerimento solicitando o registro da instituição condominial em que conste referência expressa aos dispositivos legais supracitados; b) um projeto devidamente aprovado pela municipalidade, a qual deverá conter legislação que autorize a aprovação deste tipo de empreendimento, contendo o que segue: b.1) um memorial descritivo informando todas as particularidades do empreendimento (descrição das unidades autônomas contendo especialmente as áreas privativa, comum e total e a fração ideal correspondente na área total etc.); b.2) planta de lotes; b.3) planilha de cálculo de áreas; b.4) planilha de custos da realização da infra-estrutura; c) uma convenção de condomínio, na qual deverão estar previstas, entre outras cláusulas previstas em lei, as formas e características que cada construção poderá apresentar; e d) a anotação de responsabilidade técnica (ART) do responsável pelo projeto.
Frise-se que poderá haver a realização de incorporação imobiliária para a consecução do condomínio horizontal de lotes e, neste caso, a documentação a ser exigida pelo Registrador Imobiliário será a constante do artigo 32 da Lei Federal n.º 4.591/64. São estes os sábios ensinamentos do Doutor João Pedro Lamana Paiva, pedindo-se vênia para a reprodução neste artigo.
Não obstante, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, recentemente, ao pronunciar-se sobre o assunto, proferiu decisão extremamente heterodoxa. Refiro-me à Apelação Cível n.º 70.020.348.199, da 20ª Câmara Cível, julgada em 21 de novembro de 2007, cuja relatoria coube ao Desembargador José Aquino Flôres de Camargo. O "decisum" colegiado restou assim ementado:
"DÚVIDA. OFÍCIO DO REGISTRO DE IMÓVEIS QUE ENCAMINHOU PROCEDIMENTO DE DÚVIDA QUANTO AO REGISTRO DO CHAMADO ‘CONDOMÍNIO HORIZONTAL DE LOTES’. EXPEDIENTE QUE TOMOU O CARÁTER NORMATIVO A PARTIR DE DECISÃO DO JUIZ DA VARA DOS REGISTROS PÚBLICOS.
PRELIMINAR DE NÃO-CONHECIMENTO DO RECURSO AFASTADA. EVIDENTE INTERESSE DA PARTE EM VER RECONHECIDA A POSSIBILIDADE JURÍDICA DE PROSPERAR O SEU EMPREENDIMENTO NOS MOLDES EM QUE APRESENTADO NO ÁLBUM IMOBILIÁRIO. QUESTÃO MESMO DE SEGURANÇA JURÍDICA ANTE A INFORMAÇÃO DE EXISTÊNCIA DE OUTROS EMPREENDIMENTOS DE IGUAL MONTA SENDO APROVADOS EM OUTROS OFÍCIOS IMOBILIÁRIOS.
CONDOMÍNIO HORIZONTAL DE LOTES. O DECRETO-LEI N.º 271/67, EM SEU ART. 3º, QUE EQUIPARA A FIGURA DO LOTEADOR À DO INCORPORADOR E A DO COMPRADOR DE LOTE AO CONDÔMINO DEVE SER INTERPRETADO DE FORMA A HARMONIZÁ-LO AO SISTEMA DA LEI N.º 6.766/79.
NÃO SE VISLUMBRA, EM TESE, ÓBICE AO LOTEAMENTO FECHADO, DESDE QUE OBEDECIDAS AS EXIGÊNCIAS DA LEGISLAÇÃO – LEIS N.ºS 4.591/64 E LEI 6.766/79. CRIAÇÃO HÍBRIDA ACEITA PELA DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE, ASSIM, DE INSTITUIR CONDOMÍNIO DE LOTES, EM DESOBEDIÊNCIA ÀS RESTRIÇÕES DA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL E FEDERAL QUE ESTABELECEM A RESERVA DE ESPAÇOS PÚBLICOS.
APELO DESPROVIDO." (grifou-se).
A decisão é, realmente, heterodoxa, pois não admitiu a instituição de condomínio horizontal de lotes ao fundamento de que o Decreto-lei n.º 271/67 fora revogado pela Lei Federal n.º 6.766/79, sendo necessário respeitar as restrições da legislação ambiental (licenciamento ambiental) e federal (artigo 4º da Lei Federal n.º 6.766/79) que estabelecem a reserva de espaços públicos. De notar que o referido acórdão ainda não transitou em julgado, em virtude da interposição do recurso de embargos de declaração pela empreendedora (informação obtida em 07/02/2008 no saite www.tj.rs.gov.br).
Em primeiro lugar, a Lei Federal n.º 6.766/79 não revogou o Decreto-lei n.º 271/67. Apenas derrogou-o em alguns aspectos (exemplo: definição de loteamento e desmembramento constante do artigo 1º, §§ 1º e 2º, do Decreto-lei n.º 271/67). Outras disposições do Decreto-lei n.º 271/67 permanecem inteiramente em vigor, como, por exemplo, o seu artigo 7º, que disciplina a concessão de direito real de uso de terrenos. Da mesma forma, encontra-se em vigor o artigo 3º do Decreto-lei n.º 271/67, estabelecendo que "aplica-se aos loteamentos a Lei n.º 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o loteador ao incorporador, os compradores de lotes aos condôminos e as obras de infra-estrutura à construção de edificação". Além disso, não há como impor ao titular do domínio a aplicação da Lei Federal n.º 6.766/79 quando este não pretenda lotear a gleba, pois há mandamento constitucional no sentido de que o Poder Público municipal só poderá exigir o parcelamento compulsório do solo "mediante lei específica para área incluída no Plano Diretor..." que exija "...nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento..." (artigo 182, § 4º, da Constituição Federal), e desde que ele (proprietário) não venha a atender às pertinentes disposições atualmente estabelecidas no artigo 5º, "caput" e parágrafos, da Lei Federal n.º 10.257/01 (Estatuto da Cidade).
O condomínio horizontal de lotes difere do loteamento, do loteamento fechado e do condomínio edilício, pois a propriedade do sistema viário e equipamentos comunitários não passa ao Poder Público municipal – ao contrário, permanece como propriedade dos condôminos. Vale dizer, para o condomínio horizontal de lotes não há exigência legal da destinação de certo percentual da área da gleba para uso comum ou mesmo público.
De acordo com o Doutor João Pedro Lamana Paiva, como não existe regulamentação expressa na lei federal a respeito do condomínio horizontal de lotes – trata-se de construção doutrinária, já acolhida por alguns Tribunais – é preciso, como leciona Gilberto Valente da Silva (Consultor Jurídico do IRIB), que "...as normas de direito urbanístico do município contemplem a possibilidade administrativa da aprovação do projeto, para ser implantado segundo as normas condominiais." Aplica-se, na espécie, o artigo 30, incisos I e VIII, da Constituição Federal.
Com efeito, no condomínio horizontal de lotes ocorre que os terrenos serão designados numericamente, para efeitos de sua individualização, constituindo-se em unidades imobiliárias distintas (lotes), na forma do artigo 176 da Lei Federal n.º 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos), objeto de matrícula própria. Cada unidade autônoma (lote) terá sua área útil privativa descrita e caracterizada por suas medidas perimetrais, característicos, confrontações e área, acrescida de sua participação nas coisas de uso comum e, mais ainda, a correspondente fração ideal no terreno em que se assenta o empreendimento. As coisas de uso comum têm indissolúvel correspondência com as unidades e serão construídas ou não construídas. A fração ideal correspondente à unidade será encontrada em função da área desta mesma unidade, sem qualquer vinculação à futura edificação (aqui reside a diferença deste instituto para o do condomínio edilício).
Cita-se, por oportuno, ementa da Apelação Cível n.º 149.638.4/3 da Quinta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, julgada em 05/12/02, cuja relatoria coube ao Des. Carlos Renato:
"1. Apelação cível – Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público – Sentença de procedência.
2. Condomínio especial de casas – Lei 4591/64, artigo 8º, alíneas ‘a’, ‘c’ e ‘d’.
3. Apelação plena (CPC, 515) – Admissão do pleito de assistência simples formulado por compromissária compradora – Reexame de todos os temas, inclusive os atinentes às questões prejudiciais – Rejeitado o pleito recursal de nulidade da sentença por argüição de inexistência de postulação de tutela declaratória quanto à nulidade do registro da incorporação.
4. Interpretação do artigo 3º da Lei 7347/85 – Pólo passivo incompleto em razão da ausência de todos os adquirentes dos imóveis, dos credores hipotecários e da Municipalidade – Questão superada em decorrência do provimento recursal.
5. Distinção entre propriedade vertical (CC, 623 e 628), propriedade horizontal (Lei 4591/64, 1º), condomínio especial horizontal de casas (Lei 4591/64, 8º, ‘a’) e loteamento urbano (Lei 6766/79).
6. Condomínio especial aprovado desde 1992 – Incorporação do condomínio registrada previamente no Cartório de Registro de Imóveis local – Projeto de incorporação imobiliária previamente aprovado pela Municipalidade.
7. Proteção constitucional (CF, 5º, XXII e XIII, 30, I e VIII, 182, §§ 1º e 2º e 236) buscando a corporificação de uma forma de urbanização de propriedade privada.
8. Incidência dos comandos dos artigos 115, 524, 526, 572, 623, 628, 859 e 1080 do Código Civil e artigos 1º e 252 da Lei 6015/73.
9. Posicionamentos doutrinários a propósito do tema.
10. Ausência de ilegalidade no empreendimento imobiliário, pois a Lei 4591/64 não prevê área mínima de construção para o condomínio de casas.
11. Interesse urbanístico do Município preservado em face do princípio da legalidade (Lei 4591/64, art. 32) e da autonomia municipal.
12. Inaplicabilidade da Lei 6766/79.
13. À unanimidade, admitida a apelação.
14. Por maioria, vencido o I. Relator Sorteado, deram provimento ao recurso. Acórdão com o 3º Juiz."
No corpo do acórdão consta que "fácil fica entender, pela interpretação de dispositivos da Lei 4.591/64, que pode sim o incorporador, quando proprietário da área incorporada, tão-só alienar as frações ideais de terreno, sem se compromissar com a execução por ele da construção do empreendimento incorporado, circunstância, aliás, flagrada na própria lei quando diz que ‘... Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que, embora não efetuando a construção, compromisse à venda frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações às unidades autônomas...’ – literal (Lei 4.591/64, art. 29, ‘caput’)" (página 8 do aresto). "Deve-se, no entanto, ter presente que, enquanto no condomínio de custeio de apartamentos (Lei 4.591/64, 48 a 54) enseja-se, pela natureza da obra, a necessidade de rateio do custo pelos condôminos, nos conjuntos de edificações corporificadas pelos condomínios de casas, sendo a casa uma das partes de uso exclusivo de uma determinada unidade autônoma, não há necessidade de atribuir-se rateio do custo da sua edificação (da casa) entre os condôminos, porquanto responsabilidade do respectivo condômino titular da unidade autônoma" (página 10 do aresto).
Portanto, não se vislumbra qualquer óbice à instituição do condomínio horizontal de lotes, realidade já enfrentada por muitos municípios brasileiros (entre eles, o de Porto Alegre/RS).
VIII. Condomínio urbanístico
No Projeto de Lei n.º 20/2007, que trata da nova Lei da Responsabilidade Territorial Urbana e que substituirá (revogará) a Lei Federal n.º 6.766/79, há previsão do chamado condomínio urbanístico, a par das figuras do loteamento e do desmembramento. O condomínio urbanístico, portanto, constituir-se-á numa terceira espécie de parcelamento do solo para fins urbanos.
Pela definição contida no inciso XII do artigo 3º do Projeto de Lei n.º 20/2007, considera-se condomínio urbanístico "a divisão do imóvel em unidades autônomas destinadas à edificação, às quais correspondem frações ideais das áreas de uso comum dos condôminos, sendo admitida a abertura de ruas de domínio privado e vedada a de logradouros públicos internamente ao perímetro do condomínio". Em sendo aprovado o Projeto de Lei n.º 20/2007, os loteamentos fechados até então existentes e aprovados com base em legislação estadual ou municipal serão legalizados. Todavia, de acordo com o "caput" do art. 144 do Projeto de Lei n.º 20/2007, "após o prazo de 54 (cinqüenta e quatro) meses da entrada em vigor desta Lei, a aprovação de parcelamentos do solo para fins urbanos em área fechada ou com controle de acesso somente será admitida na forma de condomínio urbanístico."
O condomínio urbanístico, portanto, ao contrário do loteamento, do desmembramento, e do condomínio horizontal de lotes, gera unidades autônomas, e não lotes. As unidades residenciais têm acesso apenas a áreas de uso comum dos condomínios, que incluem a malha viária interna ao empreendimento, e não a via ou logradouro público. Não há, portanto, divisão física de lotes. O lote é um só e assim continuará sendo. O que existe dentro do lote único são unidades residenciais autônomas, da mesma forma que existem em um prédio de apartamentos (condomínio edilício horizontal).
O artigo 154 do Projeto de Lei n.º 20/2007, diga-se, prevê que as relações entre os condôminos do condomínio urbanístico regular-se-ão pelas disposições da Lei Federal n.º 4.591/64 e pelo Código Civil, de sorte que esta continuará em pleno vigor após a aprovação do Projeto de Lei n.º 20/2007. Restará revogada, no entanto, a Lei Federal n.º 6.766/79.