De acordo com o disposto no art. 156 do Código de Processo Penal, "A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante".
Com base na primeira parte desta regra, verifica-se que o processo penal brasileiro adotou um sistema que reparte o ônus da prova entre as partes: a prova da alegação incumbirá a quem a fizer.
Assim, à acusação compete provar a existência do fato típico denunciado, na totalidade de seus elementos, e a respectiva autoria. Por exemplo, se a imputação é de homicídio qualificado pela paga, ao Ministério Público caberá comprovar a conduta, a identidade do autor, o resultado morte da vítima, o nexo causal entre a conduta e o resultado danoso, o dolo homicida e o recebimento da vantagem pelo agente. E à Defesa, por seu turno, cabe provar os fatos que extingam ou modifiquem a pretensão punitiva estatal. Por exemplo, se o réu, na defesa prévia, alega ter agido em legítima defesa, a ele compete a prova cabal da excludente, ou, se alega a ausência de dolo, também é dele a tarefa de demonstrá-la.
Em sua monografia "Da Prova no Processo Penal", seguindo a mesma linha de pensamento expressada por Hélio Tornaghi (in Instituições de Processo Penal, vol. IV, p. 226), Camargo Aranha, ao tratar do ônus da prova nas justificativas penais, assim se manifesta:
"Como fatos modificativos temos, à título de exemplo, todos os que importem na exclusão da antijuridicidade. Daí por que constitui um ônus da defesa provar a legítima defesa, o estado de necessidade, as causas supralegais etc" (p. 13).
Nesse sentido, da jurisprudência gaúcha: "O Estado admite, excepcionalmente, que alguém mate alguém, mas usando moderadamente dos meios necessários, para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Faz-se necessário, para o reconhecimento da legítima defesa própria, que todos os pressupostos legais alegados estejam reconhecidos nos autos" (RJTJRGS 108/88); "A prova desta excludente, ainda que mínima, é encargo da defesa. " (A.C. nº 694130584, Terceira Câm. Crim., TJRGS).
Esta bipartição do ônus não quer significar, porém, que a falta de comprovação da legítima defesa alegada implique na condenação do réu, tal como proclamado em setores da jurisprudência (TJRJ, ACrim 1.316, RT 649/302; TACrimSP, ACrim 606.871, 2ª Câm., RJDTACrimSP 7/151) e da doutrina ("Se, em contrapartida, o réu alega em sua defesa, uma excludente de ilicitude, e não se desencumbe satisfatoriamente do ônus de provar as suas alegações, acabará sendo condenado, conforme preconiza a máxima de experiência advinda do Direito Romano: Reus nin excipiendo fit actor, signifindo que aquele que apresenta uma exceção de defesa, incumbe-lhe o dever de fazer prova do evento que lhe seja favorável" (Irajá Pereira Messis, Da Prova Penal, pág. 181).
Ao réu não compete fazer prova plena e completa em apoio à sua defesa, porquanto a prova insuficiente pode mostrar ser "provável" a existência da legítima defesa e justificar assim a sua absolvição (inc. VI do art. 386 do CPP), ao reverso do que se dá com a acusação, que somente pode ser procedente com provas "decisivas", "plenas", "definitivas" no sentido de que o réu "não agiu em legítima defesa".
Quando a legítima defesa não é cabalmente provada pelo interessado, desde que não tenha sido uma mera alegação defensiva, caracterizada pela ausência de mínimo reforço probatório, mas encontre alguma base nos elementos de convicção que a façam provável, possível, verossímil, e sem que o juiz disponha, no processo, de elementos outros para persuadir-se pela inocorrência da excludente, porque tênue e inconsistente a prova produzida pela acusação, sem conseguir atingir, assim, o indispensável "estado de certeza sobre a ilicitude da conduta", a sentença deverá ser absolutória (art. 386, VI, do CPP), por imposição do "in dubio pro reo": "A dúvida sobre a ocorrência da legítima defesa leva necessariamente à absolvição do réu, já que, para a sua condenação, é necessária certeza sobre a inexistência da excludente, mas o ato absolutório, nas circunstâncias inicialmente referidas, deverá ter por fundamento o inc. VI e não o inc. V do CPP" (RJTJRGS 131/191 - "A dúvida sobre a legítima defesa, sendo uma dúvida sobre a ilicitude da ação, importa em dúvida sobre o próprio crime, ensejando a absolvição no art. 386, inc. VI, do CPP" (Julgados do extinto TARGS 66/66).
A regra da bipartição do ônus probatório não pode ser literalmente interpretada. Pensar-se que a ausência de prova da legítima defesa, por se tratar de desatenção do ônus da parte, sendo certas a autoria e a materialidade, importaria na condenação, sob o argumento de que o juízo provisório da ilicitude, nascido com o cometimento do fato típico (o tipo exerce a função de indiciar a ilicitude), afirmar-se-ia como juízo definitivo, é arrematado absurdo à luz do direito penal constitucionalizado e dos demais princípios do Estado Democrático de Direito. Como juízo de censura, individualizado e intranscendente por expressa disposição constitucional, a culpabilidade pressupõe "certeza" sobre a "existência", "tipicidade" e "ilicitude do fato".
Na medida em que o processo não permite ao julgador persuadir-se da "antijuridicidade" ou "ilicitude" do fato, não só pela ausência de prova escorreita da legítima defesa pelo réu, mas também em virtude de a acusação não haver logrado rechaçá-la, vez por todas, como tese defensiva, a dúvida sobre a ilicitude estará instalada, e, por conseqüência, o julgador não terá a certeza de que o homem sobre o qual deva emitir o juízo de culpabilidade praticou um fato antijurídico, e não é concebível, na vigência de um Estado Democrático de Direito, sob o primado do princípio da culpabilidade, a emissão de veredicto condenatório fundamentado tão só na literalidade da regra da bipartição do ônus estabelecida pelo art. 156 do CPP. Alegada a excludente, mas não logrando a prova impor a certeza quanto aos seus elementos fáticos, o julgamento deve ser "pro reo", como se a legítima defesa tivesse sido efetivamente comprovada. Para condenar é exigível prova incontroversa da responsabilidade criminal e uma justificativa que não foi seguramente excluída pela prova é quanto basta para negar a responsabilidade criminal.
Nas palavras de Américo Taipa de Carvalho, renomado penalista lusitano, "condenar alguém, havendo dúvida razoável sobre a verificação de um elemento constitutivo de uma causa de justificação (tipo justificador), é, humana e jurídico-penalmente, tão inadmissível e injusto como considerar e dar como provada (e, assim, condenar) a prática do fato típico (tipo legal em sentido estrito), apesar de existir e permanecer dúvida razoável sobre a verificação de um elemento do respectivo tipo legal. Por outras palavras: é tão injusto condenar alguém, havendo dúvida razoável sobre a justificação do fato típico como condenar alguém, havendo dúvida razoável sobre a tipicidade da conduta. Tal como no primeiro caso, também, no segundo, há dúvida sobre a ilicitude do fato; donde que a solução não pode deixar de ser senão a imposta pelo princípio in dubio pro reo" (A Legítima Defesa).
O princípio da verdade real, expressamente consagrado na segunda parte do art. 156 do CPP ("... mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante"), ao mesmo tempo em que não deixa o juiz adstrito às provas requeridas pelas partes, exatamente por que o processo deve ser reconstituir a verdade da realidade do fato, impõe ao julgador o "dever de investigar", para que, através da sua própria atividade de investigação, alcance a verdade, obtendo convicção das circunstâncias necessárias para a condenação ou convicção sobre a ausência destas circunstâncias. Não conseguindo atingir a sensação de posse da verdade, o juiz deve absolver, incidindo o princípio "pro reo", a despeito do desatendimento, por parte deste, do ônus bipartido de que versa o art. 156.
A regra de repartição do ônus da prova deve ser compreendida, relativamente à defesa, à luz da presunção constitucional de não-culpabilidade, que é ônus do réu a prova da excludente alegada (e não que o Ministério Público, além do dever de demonstrar a ocorrência do fato e da respectiva autoria, também deva comprovar que este não se deu em legítima defesa), mas nada além disso, muito menos que a falta de comprovação da excludente justifique a condenação, a despeito das incertezas sobre a ilicitude do fato geradas pela pobreza probatória do processo !
Quando o julgamento criar no espírito do juiz dúvida razoável sobre a verificação da legitima defesa, invencível porque inexistentes elementos outros no processo que possam dissipá-la, deve o réu ser absolvido. Na judiciosa lição de Manuel Cavaleiro Ferreira, "Os fatos ou elementos impeditivos nada mais são que elementos negativos dos fatos constitutivos ou extintivos. Por isso, a dúvida sobre a existência daqueles é também uma dúvida sobre a existência destes. A dúvida sobre a existência de legítima defesa é também necessariamente uma dúvida sobre o fato penalmente ilícito, sobre a ilicitude" (Processo Penal, 1956, p. 312).
Arremate conclusivo sobre o assunto vem de Figueiredo Dias: "O princípio "in dubio pro reo" aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude (v. g. a legítima defesa). A persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à conseqüência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido. Não assiste, deste modo, qualquer parcela de razão ao STJ quando afirma, no seu Acórdão de 14 de Julho de 1971, que tratando-se duma causa justificativa do fato, é ao réu que cabe alegá-la e prová-la" (Direito Processual Penal, 1974, pp. 21 1-9).
Assim numa sentença, não se pode adotar a seguinte formulação: o réu invocou a legítima defesa, mas não conseguiu fazer a prova de tal; assim, ele é de condenar. A formulação deveria ser: o juízo investigou a questão da legítima defesa invocada pelo réu, mas a questão não se conseguiu esclarecer com segurança, assim, ele é absolvido.