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A liberdade de expressão e o discurso do ódio frente a intolerância religiosa.

Estudo do caso: Charlie Hebdo

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2. UNIVERSALISMO, MULTICULTURALISMO, DISCURSO DO ÓDIO E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

2.1. Multiculturalismo

O multiculturalismo surge a partir do desenvolvimento social, onde passam a coexistir muitas culturas em uma só região, cidade ou país. O conceito se desenvolve a partir da possibilidade de participação de diversas culturas sem a opressão e sem supervalorizar uma delas.60

Ao tratar do tema da liberdade de expressão frente a liberdade religiosa, é preciso ter em mente que este direito surge dentro de uma sociedade multicultural, com inúmeras ramificações culturais, e cada uma dessas ramificações tem um entendimento diferente sobre determinados assuntos. Em uma sociedade multicultural, é preciso adotar a ideia de um universalismo de direitos, e com a liberdade de expressão e a liberdade religiosa não pode ser diferente.

A liberdade de expressão, assim como todos os outros direitos humanos, deve ser entendida em seu carater universal, sendo aplicavél a todos os indivíduos, de forma igual e sem discriminação às pessoas. Essa característica é fundamental quando passamos a analisar a sociedade como um todo. Se os direitos humanos fossem aplicados a determinadas pessoas ou a um grupo delas, o objetivo principal destes direitos (de unir a sociedade e de respeito aos povos) iria se esvair, causando desequilírio e desigualdade social.

A diversidade cultural muitas vezes é vista como ameaça à identidade da nação, porém, outras vezes, é vista como fator de enriquecimento e abertura de novas e diversas possibilidades.61

No mundo globalizado, estas culturas estão muito mais próximas, convivendo quase que conjuntamente. Em caso, sejam quais forem as consequências e exigências de um mundo global a vivencia em uma sociedade multicultural é uma realidade, jamais mera expectativa, para tanto é preciso impor determinadas regras de convívio, para que cada um tenha sua individualidade garantida, sem a necessidade de se preocupar com repreensões, punições ou qualquer outra forma de sanção que possa vir a ser aplicada por colocar em prática determinados direitos.

Nas sociedades contemporâneas o conflito entre culturas é inevitável, porém necessário. É preciso uma diferenciação dos indivíduos para que estes se identifiquem enquanto pessoas e enquanto membros de determinado contexto social.62.

A ideia central do multiculturalismo é defender a tolerância cultural dentro do mesmo território. Pasra os teóricos defensores, as culturas que habitam os Estados devem ser respeitadas e encorajadas a serem mantidas, havendo convivência pacífica e harmoniosa entre elas.63

Para definir uma sociedade multicultural os teóricos criam dois conceitos à respeito do tema: o primeiro deles define que todas as culturas dentro de uma mesma nação tem o direito de existir mesmo que não haja fio condutor que as una, já o segundo, define como uma diversidade cultual coexistindo dentro de uma nação cultural comum que mantenha a sociedade unida.64

No entanto, diante destes conceitos, percebemos que o centro da questão se baseia em culturas diferentes que convivem dentro de um mesmo espaço. A diferença entre os conceitos está em saber se essas culturas tem ou não liames semelhantes entre si. Atualmente, alguns povos vivem em regiões que em nada são semelhantes com a sua forma de ver o mundo. Se fosse preciso um liame entre essas culturas, obviamente, o multiculturalismo seria mais aceito, sem a possibilidade de existência de uma política monocultuuralista.

Na verdade, o multiculturalismo implica em reinvidicações e conquistas de uma minoria. Esta doutrina da ênfase a ideia de que as culturas minoritárias são discriminadas, sendo vistas como movimentos particulares, mas que deveriam merecer reconhecimento público. Para isso, devem ser amparadas e protegidas pela lei. Se opondo ao etnocentristmo, o multiculturalismo defende a ideia de respeito entre as culturas, onde nenhuma delas poderá ser consumida pela outra.65

Como já dito anteriormente, a gloablização une culturas de diversas partes do mundo, mas essa “união” nada mais é do que uma frágil tolerância. Em alguns países essa idéia de convivência harmoniosa e pacífica entre culturas praticamente opostas não existe. É o que acontece, por exemplo, com os Franceses em relação à cultura àrabe/mulçumana. “Na França, o multiculturalismo não é aceito, eles acreditam que se um indivíduo está dentro do seu território, ele deve aceitar inteiramente as suas regras”66.

2.2. O universalismo dos Direitos humanos

Com o desenvolvimento dos direitos humanos em 1948, os direitos fundamentais foram internacionalizados e o cenário mundial passa a ter o individuo como principal ator. Este novo cenário protege o homem em ambito global, colocando o ser humano no centro, sendo universal e protegendo qualquer indivíduo de qualquer nacionalidade67.

De certo modo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948 recebe grandes criticas por tratar de maneira universal, utilizando a ideia do mínimo etnico, protegendo direitos mínimos necessários a população de modo geral. Devido a este caráter universal,é provavél que proteger direitos mínimos signifique sufocar dogmas específicos de algumas culturas 68. A título exemplificativo, o uso do véu, simbolo religioso da cultura islã, em local público, não restou garantido pela Declaração Universal, justamente pelo fato desta utilizar o mínimo necessário, tentando abarcar a todas as religiões sem fazer especificidade para nenhuma delas.

Essa questão do véu tem gerado algumas problemáticas específicas. Em 2011, o Governo francês validou uma lei que proibe o uso do véu, das burcas e do niqab69 em locais públicos, e logo após sua vigência, uma mulçumana questionou a validade da lei perante o Tribunal Europeu de Direitos humanos, que por sua vez entendeu que a legislação em questão não é descriminatória e nem antirreligiosa e que também não contraria os direitos humanos, utilizando como argumento que estes artefatos dificultam a identificação de pessoas, gerando insegurança à população e aos bens ou ainda fraude à identidade.

Em resumo, ao se deparar com o outro, o discurso universal dos direitos humanos acaba por segregar ao invés de respeitar, o que já demonstra a fraqueza desta estrutura, pois, quando uma cultura se depara com a outra, por mais que tentem, se ela for minoria, não irá se integrar ao sistema. 70 Nesse sentido, surge uma crescente política que tende a utilizar o discurso de direitos humanos universais em favor da dominação, pregando assim, o monoculturalismo, e como consequencia, tentando eliminar outras culturas.

Porém, se o ser humano não é centralizado na perspectiva universal, ele deve ser respeitado em suas diferenças, logo, o universalismo, deveria dar lugar ao pluralismo cultural, para que se torne possível a existência pacífica das várias manifestações culturais. A solução apresentada pelos teóricos em geral, é que o universalismo dos direitos humanos deveriam ser substituidos por um pluridireito, onde é possível vislumbrar diversas formas de consciência compartilhando o mesmo espaço. Com o fim do universalismo, seria possível conhecer o mundo multicultural como ele de fato é.71

No mais, os direitos fundamentais e essenciais, são pressupostos para a convivência multicultural, que deve se basear ao menos na essencial tolerância.

2.3. A liberdade de expressão limitada pelo discurso do ódio

Existe uma vasta direfença entre a liberdade de expressão e a opressão. Ao manifestar um pensamento, não se deve ultrapassar um limite tênue, ferindo a outrem, oprimindo culturas, formando esteriótipos, e aumentando ainda mais o abismo que existe na sociedade.

É com base neste discurso opressor que, na verdade, surge o discurso do ódio. Este modelo de dicurso é voltado para a incitação à discrimnação racial ou contra um determinado grupo religioso, étnico, social ou cultural. Normalmente dirigido à minorias, esse tipo de expressão faz uma apologia ao ódio, desqualificando determinado grupo como detentor de direitos, violando a dignidade de um povo e a sua honra coletiva.72

Na modernidade, a liberdade surge da ideia de dignidade humana, essencial para o direito à autodeterminação individual absoluta, só que esse conhecimento surge de uma construção ao longo do tempo. Inicialmente, este direito tinha um caráter negativo, sendo apenas assegurado sem garantias de sua efetividade, disponível a população com uma interferência mínima por parte do Estado, ou seja, o indivíduo era livre pra exercer seus direitos e ao Estado cabia apenas a disponibilidade deste direito, sem a necessidade de intervenção social. Com o passar da historia e o advento do estado social essa liberdade toma um novo caráter, mantendo a ideia de mínima intervenção, mas agora com um lado protetivo, cabendo ao estado não só disponibilizar, mas também proteger e certificar grupos para que estes exerçam suas liberdades.73

Há quem diga que este direito é base para diálogo e logo, base para o exercício da voz democrática, mas, mesmo que assim seja, é preciso impor limites, para que este tipo de expressão não vire opressão, e minimize grupos já esquecidos da sociedade.

A linguagem opressora do discurso do ódio não é representação de ideia odiosa, é uma conduta violenta que submete-se a outro, desconstituindo sua condição de pessoa, ofendendo a dignidade humana, e agindo como verdadeira ameaça. Querer usar da liberdade de expressão para direcionar comentários odiosos a determinados grupos, é destoar o verdadeiro sentido do direito a liberdade de se expressar.74

O discurso do ódio se caracteriza pela discriminação e pela externalidade do pensamento. Quando é liberado no meio social, viola-se o princípio básico da constituição, o princípio da dignidiade da pessoa humana. Claro que a atitude de exclusão e de desqualificação deve trazer a possibilidade de violência, discriminação ou qualquer ato que torne inferior características de determinada pessoa, pois, caso contrário, não poderá ser colocado como um enunciado odioso.

Ao levantar a questão do discurso discriminatório, está-se diante de dois direitos fundamentais em uma sociedade democrática: a liberdade de expressão e o direito à não- discriminação. Ao mesmo tempo em que não se deve restringir as liberdades, seja qual forma ela venha aparecer na sociedade, é preciso a defesa de uma igualdade política, que se atinge mediante a proibição da discriminação ou de exclusão de qualquer tipo, que negue a alguns o exercício de direitos. Trata-se de uma situação que eleva o desrespeito social, uma vez que reduz o ser humano à condição de objeto, insuflando a negação pelo que é diferente.75

As vítimas deste discurso sentem que não podem contribuir para o debate, uma vez que tem sua confiança abalada, o que pode levar a um efeito silenciador do discurso, calando a voz dos menos prósperos76. O medo que se apresenta diante deste tipo de discurso é que ele torna impossível para estes grupos minoritários participar ao menos de uma discussão.77

Quando o Estado impõe uma sanção a determinado indivíduo, significa que aquela conduta praticada é reprovada moralmente e socialmente pelo Estado e pela sociedade que o compõe.E assim, não é diferente com o discurso do ódio. Quando se ofende a integridade, a dignidade ou a moralidade, com a intenção de diminuir e humilhar, o Estado combaterá o discurso do ódio através de sanções, sejam penais, a exemplo do racismo, sejam pecuniárias, através da indenização.78

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Nesse ponto, a restrição à liberdade de expressão, funciona como proposta pela luta do reconhecimento e do respeito a valores (igualdade, reciprocidade, tolerância e convivência pacífica). Esses valores são respeitados, restringindo o o discurso daqueles que pretendem atingir diretamente o estatuto de um determinado grupo social, com o objetivo de dominá-lo através da criação de um clima de terror praticamente emocional.79

O discurso do ódio impede os indivíduos e grupos de se verem respeitados, impossibilitanto a busca pelo reconhecimento recíproco. Esse discurso discriminatório não se encaixa na sociedade democrática contemporânea, pois vai de encontro com o multiculturalismo e ao respeito a outras culturas, raça, sexo ou religião.80

O que vem ocorrendo é que com o avanço da comunicação, as discussões sobre determinadas religiões, muitas vezes mascaram o fanatismo e a intolerância, diz-se fanatismo quando passa a existir um fervor excessivo e irracional por determinado tema, e diz-se intolerância quando ocorrem discursos vexatorios e discriminatórios diante de um determinado grupo. Nesse ponto, é preciso permanecer atento, visto que de um lado temos o comprometimento com a valorização da liberdade de expressão (absoluta, com valorização da cultura interna) enquanto que de outro poderemos ter a valorização do sagrado, do religioso, e daquilo que vai de acordo com a fé.81

Segundo Owen Fiss, a proibição estatal de incitação ao ódio deve ser vista como fator que promova e não que limita a liberdade de expressão, pois em algumas instâncias “o Estado pode ter que agir para promover a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado não estão inibindo o discurso”. Para combater efetivamente o discurso do ódio, pretende-se estruturar a lógica argumentativa com as noções de luta e reconhecimento, reciprocidade e especialmente a tolerância, pressuposto e justificação legítima para um regime político democrático, protetor dos direitos fundamentais.82

O ideal para constituição de uma sociedade igualitária seria permitir diferentes práticas, sem adotar uma postura de discriminação, apoiando a liberdade, mas adotando também um preceito de tolerância e realização de ideias. O respeito pela cultura menos influente é um primeiro passo no sentido do reconhecimento para um tratamento igualitário.

2.4. A liberdade religiosa e o discurso do ódio

O tema da liberdade religiosa, é o foco central. Em uma sociedade livre cada indivíduo tem o poder de escolher que tipo de religião quer seguir, porém, muitas vezes, a sociedade não adimite a diferença ou até recrimina, silenciando as religiões que não são tão influentes no mundo atual. O ódio a determinada cultura, nasce com a tentativa de diminuir e desmerecer quem a segue.

A liberdade religiosa é uma ramificação da Liberdade Absoluta, e assim como esta última, é um direito fundamental, intrínseco a todas as pessoas, sendo, inclusive, ponto relevante para constituir a dignidade humana, sendo natural o exercicio da livre religião, com seus discursos e ações.

Essa liberdade consiste na faculdade da escolha de seguir qualquer ou nenhuma religião, seguida pelo direito de crer ou não, de ter fé ou não, sem que seja ou receba algum tipo de discriminação por isso. Dentro da liberdade religiosa está incluso o direito de não se submeter ao que o Estado ou Nação abriga como preferência, ou seja, o indivíduo tem todo o direito de tomar a sua decisão sobre a religião que seguirá, sobre seus conceitos, crenças e fé, independente da vontade de outros 83

Não obstante, os choques entre duas visões religiosas é inevitável. São embates ideológicos, onde se exercita a liberdade de crença e convicção. Porém, a falta de uma visão equilibrada, baseada no respeito mútuo e na tolerância, e portanto no multiculturalimso, tem sido fonte de enormes enfrentametos entre civilizações.

O que nos resta a aceitar é que cada indivíduo tem o direito de livre manifestação do pensamento conforme a sua convicção e consciência. A liberdade religiosa pressupõe o direito de crer e de afirmar aquilo que se crê, mesmo que isso contrarie opiniões ou até mesmo a religião alheia. A liberdade religiosa só está de fato assegurada quando esse aspecto externo e público está garantido.84

Ademais, por ser um direito fundamental, ela não deve ceder a outros princípios menores, e nem seria aceitável a ideia da imposição para que o indivíduo deixe de pensar o que pensa, com o objetivo de tornar a sua crença mais aceitável ou dminuir eventuais contrastes na sociedade, pois isto negaria a liberdade dada ao ser humano.85

Diálogos são sempre bem vindos e até bem vistos perante a sociedade. Ter uma conversa saudável para discutir estes assuntos, é viável, pois este seria o exercício efetivo da liberdade de expressão, porém, a partir do momento que o discurso ataca a integridade moral ou pessoal de qualquer indivíduo ou instituição, desqualificando-o por sua crença ou ideologia, estaremos diante de uma postura discriminatória que merece resposta..

Entendendo que todo ser humano é livre para ser diferente do meio em que vive, e que tem os mesmos direitos que os demais, as diferenças deveriam ser insiginificantes. Assim, se um fiel crê que nada se representa em imagens, ou que Deus teria outro nome ou outra representação, ele jamais deveria sofrer discriminação por isso, pois estaria sofrendo um verdadeiro atentado contra sua liberdade cultural e religosa.

Porém, existe uma diferença gritante, pois, quando um grupo tenta impedir por meios violentos as práticas de uma cultura, é ato atentatório à dignidade humana, pondo fim ao direito de expressão. Em uma segunda condição, quando o grupo tem o direito de expressar seus ideais e ainda batalhar para mantê-los, através de um diálogo, onde todos tem direito de defesa e explicação, o que nesse caso, é expressão no espaço livre de reflexão, compartilhadas com individuos opostos.

Neste segundo, é importante salientar que criticar não é a mesma coisa que ofender. Os direitos de se criticar dogmas e paradigmas de uma religião fazem parte do exercício da liberdade de expressão, todavia, não deve haver discriminação e ódio ao grupo religioso a que é direcionada a crítica. Ressaltando o que já foi dito, as críticas são essenciais ao exercício do debate democrático e devem ser respeitadas em seus devidos termos.86

A partir do momento em que ocorrem ofensas a religão ou a crença de alguém, passa a existir uma intolerância religiosa, que em casos extremos, pode se tornar uma perseguição. Essa intolerância é definida como crime de ódio, pois fere a liberdade e a dignidade humana.87

A grande questão é o que leva as pessoas serem tão intolerantes e tão odiosas com determinadas culturas. O simples fato de acreditar em dogmas diferentes, ou em um Deus diferente, não torna o outro melhor ou pior. Obviamente, há determinadas medidas tomadas por certas religiões que são extremamente desproporcionais aos dias atuais. Punições corporais, morte por apedrejamento, casamento arranjado, todas essas condutas são reprováveis quando se põe em contraponto à dignidade da pessoa humana, mas não por isso deve ser motivo de chacota para ninguém. Essas pessoas acreditam nisso, elas tem um Deus próprio, com mandamentos próprios, mas que no final é o mesmo Deus das outras religiões. Essas diferenças culturais vão de acordo com a história desse povo, de acordo com a forma de criação da religião.

O fato é que numa sociedade multicultural, onde se busca a liberdade, a tolerância, a abertura de ideais, é preciso saber lidar com a crítica e com a ironia acerca das crenças populares, desde que não haja problema em fazer o mesmo com as crenças do outro ou de ao menos contra argumentar. Um deve tolerar o outro. O religioso tolera a crítica e o crítico tolera a religião.88

2.5. A questão do Etnocentrismo

Seria o etnocentrismo a grande razão da intolerância com o discurso religioso alheio? O sentimento colonialista de superioridade e de subalternização do outro ainda é muito presente em determinadas regiões.

O que o etnocentrismo prega, é a tendência ou a atitude de considerar a própria cultura ou religião como medida de todas as demais89. Ao menosprezar a cultura ou a religião do outro, estamos colocando a nossa como supostamente superior, e é ai o ponto chave do etnocentrismo. Essa comparação desregrada, que coloca duas culturas, muitas vezes completamente diferentes, em choque, onde uma (normalmente a de quem compara) será superior a outra e agirá como patamar diferenciador entre o certo e o errado, o justo e o injusto.

O etnocentrismo vai muito além de apenas inferiorizar. Essa teoria de colocar sempre a sua cultura no centro de tudo, pode levar a atrocidades e massacres, assim como foram as atitudes de Hitler na época do Nazismo, que matou e massacrou milhares de Judeus, por acreditar que a raça alemã era superior.90

Manifestações de etnocentrismo podem ser observadas facilmente no cotidiano das pessoas. Ao ler alguma notícia, ou saber de algum fato novo, alguns indivíduos imediatamente fazem uma comparação entre a sua cultura e aquilo que está sendo lido, principalmente se as diferenças forem gritantes. Não há duvidas que o etnocentrismo foi um dos responsáveis pela geração intolerante atualmente vivenciada. Até porque, a geração atual, apesar de ser aberta para alguns pontos, em outros, é bem restrita, onde as pessoas quando não tendem a aceitar determinadas características, não tem o menor pudor em repudiá-las, sendo por vezes, cruel e irracional. É a partir dai que surge o preconceito em todas as suas formas (cultural, religioso, étnico, político etc), pois pela falta de abertura com determinados temas, a sociedade tende a ficar bitolada em um pensamento ultrapassado ou que muitas vezes nem representa a realidade.

Toda essa ideia de etnocentrismo caminha na exata contramão da integração global decorrente da modernização dos meios de comunicação, sendo sinônimo de estranheza e intolerância. Basta pensarmos, apenas como exemplos, nas relações entre norte-americanos e latinos (principalmente mexicanos) imigrantes, abalada pela imigração dos povos ao território e pelo limite socio economico do país , que segundo os pesquisadores já foi atingido, e entre franceses e os povos vindos do norte do continente africano que buscam residência neste país, que são considerados pelo Estado Frânces como um atentado contra a cultura e a segurança do seu povo.91

Como se não bastasse a cultura etnocentrista, nada pior do que combiná-la com a superioridade que o grupo ou nação dominante dedica aos dominados e oprimidos. Obviamente, esse contexto nunca é inocente, pois remete à negação do “outro” enquanto pessoa e nega- o por senti-lo como uma ameaça a sua própria maneira de ser. É típico do ser humano, ao se sentir atacado, partir para eliminação física do outro.92

Mas essa eliminação física do outro não significa tirar a vida desta pessoa, mas remete apenas a tirar a sua diferença, apagando a parte que o constitui como ser humano diferente e não como igual.93

Há formas mais sutis de lidar com a diferença alheia. A falta de semelhança torna-se alvo para legitimação da dominação e da exploração, destruindo a pessoa humana. Dizer que a civilização recebe e trata bem os estrangeiros que se adaptam ou se integram a ela, não é respeitar, é querer que o outro se adeque e que seja igual. Isso é puro etnocentrismo e pura dominação cultural.

Agora, se os jornais franceses, com toda a liberdade que já possuem, escreverem e ilustrarem o que querem, sobre crenças mais conhecidas e menos estigmatizadas, será que ocorreria a mesma reação de repúdio e desdêm que ocorreu em relação ao povo islamita? É obvio que não, o povo islã já está tão estigmatizado pelo rótulo de terrorismo e atentados e pela religião diferenciada, que a atenção a esta problemática é sempre esquecida, alegando o bom e velho senso de humor. A questão aqui não é apenas o que se diz, é contra quem se diz. Se fossem outras religiões, outras crenças, em vez da mulçumana, a reação seria diferente, pois quando se trata desses simbolos, tudo é estranho, e por isso, a liberdade de expressão é a primeira a ser indagada. Não é possível defender que a solução para esse infortúnio seja uma disputa física, ou que morte resolva esses problemas, mas é preciso impor limites a este direito tão intitulado. Remetendo ao que foi dito, é uma linha tênue, tortuosa, mas que precisa existir, pois sem esses limites, a sociedade estaria a beira de um caos. Nada mais constrangedor que ouvir ou ver alguém menosprezando aquilo que você acredita, em favor da liberdade de expressão. E a liberdade do outro? De demonstrar que não gostou do que viu ou ouviu? Foi esquecida, ou simplesmente, em favor da liberdade de expressão, tornou-se obrigatório engolir ofensas e discriminalização a cultura alheia? Não se pode permanecer inerte, e nem permanecer cego diante de injustiças, e isso que se fez/faz, não só em relação à cultura mulçumana, mas a qualquer outra deve ser repugnado.

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Sobre a autora
Vanessa Rodrigues de Albuquerque Moury Fernandes

Advogada formada pela Universidade Católica de Pernambuco, atuando desde 2016. Pós graduada pela Universidade do Vale de São Francisco - Direito e processo do trabalho. Pós graduada em Segurança Pública, pela Rede de Ensino da Faculdade Renato Saraiva.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Vanessa Rodrigues Albuquerque Moury. A liberdade de expressão e o discurso do ódio frente a intolerância religiosa.: Estudo do caso: Charlie Hebdo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7641, 2 jun. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109605. Acesso em: 29 jun. 2024.

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em 2015 ao Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Rafael Baltar.

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