Como se sabe, a EC nº 132/2023 instituiu o IBS dual (partilhado entre estados e municípios), fundindo, em seu entorno, o ICMS estadual e o ISS municipal.
Qualquer estudante de direito sabe que não se pode unificar impostos pertencentes a entes federados distintos e, ao mesmo tempo, manter o princípio federativo protegido por cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I, da CF), que proíbe a deliberação de emenda tendente à abolição do pacto federativo.
A EC nº 132/2023, ao retirar do estado o seu imposto de maior arrecadação e, do município, igualmente, o seu imposto de maior expressão financeira, compromete a independência financeira dos entes regionais e locais, suprimindo sua autonomia política e administrativa, prevista no art. 18 da CF.
Somente a discriminação constitucional de impostos privativos de cada ente político, prevista nos arts. 153, 155 e 156 da CF — respectivamente para a União, estados e municípios —, será capaz de assegurar a referida autonomia dos entes federados.
Entretanto, os importadores do IVA de países unitários que compõem a União Europeia foram incapazes de adaptar o IVA europeu à peculiaridade da Federação Brasileira, que abriga a União, os estados e os municípios, todos independentes e autônomos entre si, extraindo cada um desses entes federados seus poderes diretamente do texto constitucional (arts. 21, 22 e 30 da CF).
Esse poder abarca a capacidade de legislar, administrar e tributar. A competência do estado é extraída por exclusão: tudo que não for de competência expressa da União ou dos municípios pertence aos estados.
Pois bem, a EC nº 132/2023, por meio de uma cópia muito mal feita, aniquila o poder tributário dos estados e dos municípios, destruindo o princípio discriminador de rendas tributárias, que sustenta a autonomia dos entes políticos regionais e locais.
O IBS dual é instituído pela União por meio de lei complementar que, contudo, não tem o poder de fixar as alíquotas, nem de fiscalizar e arrecadar, como seria o normal.
A sua fiscalização cabe aos estados e municípios, que, por sua vez, não têm competência para arrecadar nem para dirimir conflitos administrativo-tributários resultantes dos autos de infração lavrados pelos fiscos estadual e municipal.
A arrecadação e a partilha do produto da arrecadação do IBS ficam a cargo exclusivo do Comitê Gestor, um órgão autônomo dotado de recursos financeiros próprios, que, no entanto, não tem o poder de fiscalizar.
Outrossim, cabe a esse Comitê Gestor decidir sobre o processo administrativo decorrente dos autos de infração lavrados por órgãos administrativos tributários dos estados e dos municípios. Temos aqui um imposto ímpar no mundo: a União institui o imposto; estados e municípios instituem as alíquotas e fiscalizam o tributo; e o Comitê Gestor promove a arrecadação, a partilha do imposto e julga os processos administrativos tributários oriundos dos autos de infração lavrados por estados e municípios.
Os inteligentes burocratas que importaram o IVA europeu, ao prescrever atribuições sucessivas a vários entes políticos e a um órgão autônomo em relação ao IBS, devem ter se inspirado no revezamento da tocha olímpica. É a única explicação plausível!
O Comitê Gestor tem, ainda, competência normativa e interpretativa sobre as normas que vier a instituir. É espantoso: interpreta as normas que ele mesmo instituiu. Seria como se o Congresso Nacional fosse o intérprete das leis que elabora, e não o Judiciário.
Na verdade, esse Comitê Gestor usurpa a competência constitucional dos entes federados, atuando como se fosse um quarto poder da República, sem a menor base constitucional.
Mas toda essa confusão, resultante da cisão do incindível — pois o poder de tributar pressupõe o poder de criar o tributo, fiscalizá-lo, arrecadá-lo e dirimir litígios tributários na esfera administrativa, por meio de órgãos julgadores de primeira e segunda instância —, é absolutamente inconstitucional. É como pretender separar do corpo humano o coração, o fígado, os pulmões etc. e, ao mesmo tempo, querer manter vivo o organismo.
Esse Comitê Gestor, metamorfoseado, decreta a morte do sistema tributário vigente em um país de estrutura federativa. Os jesunos em direito que conduziram a reforma não foram capazes de enxergar o óbvio. E nem tiveram a humildade de ouvir os especialistas em direito tributário. Copiar, por si só, não é um mal. O absurdo está na cegueira, na incapacidade de adaptar o modelo copiado à nossa realidade: um país federado, que difere de um país unitário da Europa, onde não há problema de repartição de competências, como acontecia no período do Brasil-Império. A Carta Outorgada de 1824 continha um único artigo sobre impostos — e isso era suficiente, porque todo o poder estava concentrado nas mãos do Imperador.
O STF, em recente julgamento, sinalizou a inconstitucionalidade desse Comitê Gestor amorfo, como se verifica na ementa abaixo:
“Direito constitucional e administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 12.638/2007, do Estado de São Paulo. Criação do Conselho de Política de Administração de Pessoal. Interferência nas atribuições do Chefe do Executivo para organização da administração pública. 1. Ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei estadual nº 12.638/2007, que “dispõe sobre a regulamentação do artigo 39 da Constituição Federal, instituindo Conselho de Política de Administração de Pessoal, no âmbito do Estado de São Paulo”. 2. Na ADI 2.135-MC, esta Corte suspendeu a eficácia do art. 39, caput, na redação dada pela EC nº 19/1998, ressalvando, em decorrência dos efeitos ex nunc da decisão, a subsistência, até o julgamento definitivo da ação, da validade dos atos praticados durante o período em que a nova redação produziu efeitos. 3. A suspensão, com efeitos ex nunc, da eficácia do art. 39, caput, da Constituição Federal, na redação da EC nº 19/1998, não é fundamento suficiente para a declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada, editada em momento anterior à decisão do Supremo Tribunal Federal. A presente ação direta não é a via própria para analisar eventual inconstitucionalidade por arrastamento, tendo em vista que não impugna o art. 39, caput, da Constituição Federal, objeto da ADI 2.135. 4. A lei estadual, oriunda de projeto de lei de iniciativa parlamentar, usurpa a competência privativa do Chefe do Poder Executivo para dispor sobre a organização da administração pública (art. 61, § 1º, II, e, c/c o art. 84, IV, CF), uma vez que cria atribuições administrativas, alterando o rol de atividades a serem desempenhadas pelos órgãos públicos daquele ente federativo. 5. Pedido julgado procedente.
(ADI nº 4316, j. 24/4/2023).
O STF vislumbrou, na criação do Conselho de Política de Administração de Pessoal, uma ilegítima interferência nas atribuições do Chefe do Poder Executivo para a organização da administração pública, usurpando a competência privativa do Chefe de Governo para dispor sobre a estrutura administrativa, conforme os dispositivos constitucionais citados.
O caso julgado pelo STF era bem menos grave, pois se limitava à usurpação da competência do Chefe do Poder Executivo para a organização da administração pública. Em contrapartida, o Comitê Gestor, previsto na EC nº 132/2023, usurpa o poder tributário, inerente aos entes políticos, que assegura a independência e a autonomia dos estados e dos municípios. Tal medida fere de morte a Federação Brasileira ao fragmentar essa competência entre diversos entes políticos (União, estados e municípios) e um mero órgão federal autônomo, que assume atribuições típicas de um Poder do Estado, transformando-se, na prática, em um quarto poder da República.
Por tais razões, a criação desse Comitê Gestor, nos moldes previstos no PLP nº 68/2024, agrava a inconstitucionalidade da EC nº 132/2023, que compromete a estabilidade do pacto federativo.
O Comitê Gestor surge sobre as ruínas da Federação Brasileira, tornando-se paradoxalmente o seu próprio alicerce.