“Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.”
Assim José de Alencar nos apresentou Iracema, a virgem dos lábios de mel.
À distância, o narrador contemplava a majestosa Serra da Ibiapaba, que se ergue como um paredão íngreme em sua porção oriental, devido ao abrupto desnível do terreno.
Aos 700 metros de altitude, a serra tem clima agradável e abundantes recursos naturais. Para as tribos tabajara, era uma fortaleza natural contra invasores.
Se escalasse até o topo das escarpas, Alencar poderia perceber o contraste com a declividade suave do reverso ocidental, que se estende muito além da visão do observador. Esse perfil assimétrico de relevo é conhecido como cuesta .
Ibiapaba tem papel crucial na distinção de dois regimes hídricos, marcando a fronteira entre a caatinga do Ceará e o cerrado do Piauí, mas também no litígio territorial histórico entre esses Estados vizinhos.
Até o século XIX, sob a influência da Igreja Católica, confundiam-se paróquias e comarcas. Em 1870, quando o pároco de Granja, no lado cearense, desceu além da serra para catequizar as vizinhanças, o Ceará aproveitou para estabelecer oficialmente a freguesia de Amarração, o que privou o Piauí de acesso continental ao mar. Em seguida, uma grande seca acentuou a migração dos sertanejos cearenses.
Os protestos piauienses ecoaram até a Câmara e o Senado. Com a sanção do Decreto nº 3.012, de 1880, por Dom Pedro II, redefiniram-se as linhas divisórias: a freguesia de Amarração retornou ao Piauí – que entregou ao Ceará a comarca de Príncipe Imperial.
Art. 1º. É anexado à Província do Ceará o território da comarca do Príncipe Imperial, da Província do Piauí, servindo de linha divisória das duas províncias a Serra Grande ou da Ibiapaba, sem outra interrupção além da do rio Poti, no ponto do boqueirão, e pertencendo à Província do Piauí todas as vertentes ocidentais da mesma serra, nesta parte, e à do Ceará as orientais.
Art. 2º. Fica pertencendo à Província do Piauí a freguesia da Amarração, com os limites que estabeleceu a Lei provincial do Ceará nº 1.360, de 5 de novembro de 1870, a saber: da barra do rio Timonha, rio de São João da Praia acima, até a barra do riacho que segue para Santa Rosa, e daí em rumo direto à Serra de Santa Rita, até o pico da Serra Cocal, termo do Piauí.
Assim, foram apaziguadas as disputas pelas áreas costeiras e consolidados os 66 quilômetros do pequeno litoral piauiense. Os municípios de Luís Correia e Cajueiro da Praia são hoje os centros turísticos e econômicos dessa área continental de 1.350km2.
No interior, o Ceará ganhou uma área de 6.200km2, que são as atuais cidades de Crateús e Independência, onde uma abertura da serra abriga as nascentes do rio Poti. Hoje, esses mananciais abastecem vários reservatórios de água, que mitigam o impacto das estiagens.
Apesar da pacificação das extremidades norte e sul, as controvérsias permaneceram na região intermediária, em três trechos descontínuos que somam cerca de 3.000km2.
Uma das primeiras tentativas de conciliação ocorreu em 1920, quando o Presidente da República, Epitácio Pessoa, indicou o Estado de São Paulo como árbitro para o litígio. Porém, o Ceará não aceitou assinar o convênio.
Em outros momentos, o Piauí propôs a partilha desses lotes (um pra lá, dois pra cá, ou vice-versa). De seu lado, o Ceará reforçou o entendimento de que todas as terras seriam suas.
No século XX, os mapas do IBGE sempre representaram a disputa na forma de três bolsões territoriais que atraíam a curiosidade de muitos. Todavia, a nova versão do mapa político brasileiro de 2010 eliminou as áreas de litígio e as incorporou ao território cearense.
Irresignado, o Piauí pediu ao STF a definição da linha divisória. A Ação Civil Originária (ACO 1831), ajuizada contra o Ceará, atualmente está sob a relatoria da Ministra Cármen Lúcia.
O Piauí defende que o marco referencial deve ser o divisor de águas, no topo da serra – critério que o favorece, pois, como visto, a parte mais alta da serra fica na porção oriental. Apoiado no decreto imperial, que define a Ibiapaba como divisa natural, sem interrupções além do rio Poti, reclama para si as terras onde as chuvas escoam para as bacias do oeste.
De seu lado, o Ceará afirma que a regra do divisor de águas só vale para a região do boqueirão e refuta a sua interpretação extensiva para toda a serra. Para suprir a lacuna, sustenta a prevalência do critério da ocupação humana e do sentimento de pertencimento dos habitantes, em sua maioria de famílias cearenses.
Recentemente, o Ceará acrescentou nova fundamentação à sua defesa. Para se contrapor à alegação do topo da serra, alega que a divisa deveria ser no seu sopé, pelo lado do oeste. Como essa face se caracteriza pela declividade suave, o novo critério estenderia o território cearense para além, muito além, da área atualmente ocupada pelo Ceará.
Ao rebater, o Piauí enfatizou a inadequação da alternativa proposta, apontando que o único sopé claramente visível na serra é o imponente paredão do lado cearense, tão vividamente reverenciado por José de Alencar.
Este confronto de argumentos geográficos e culturais reafirma a ancestralidade das terras, que transcendem as eras, muito antes da chegada dos colonizadores.
Em 28 de junho de 2024, a entrega do laudo pericial produzido pelo serviço de cartografia do Exército, com ênfase no terreno, promete abrir um novo capítulo nesta epopeia secular. Nos próximos meses, espera-se que a Justiça possa, enfim, traçar a linha que o tempo e a história têm relutado em definir.
⬇️ Atualização: download da Perícia do Exército (de 28/06/2024)
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