4. Desinternação progressiva como meio de humanização na execução da medida de segurança
4.1. Conceito e previsão legal
Pela primeira vez no Brasil, em 1966 o Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso, possibilitando aos internos visitarem seus familiares por um determinado período até que estivessem aptos para manter-se definitivamente em sociedade, instaurou a desinternação progressiva. Em São Paulo, o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha foi a instituição pioneira a criar um pavilhão exclusivo e oportunizar visitas experimentais com os familiares nos anos de 1981 a 1984. Todavia, o experimento foi suspenso por falta de previsão legal e somente em 1989 o HCTP-II inaugurou um pavilhão exclusivo para a desinternação progressiva com o intuito de progredir do tratamento hospitalar ao convívio social, realizando a progressividade da medida de segurança através de um procedimento que consiste em etapas.
Inicialmente, o Decreto Nº 46.046, de 2001, organizou o HCTP II de Franco da Rocha implementando as medidas necessárias nas áreas de atuação do hospital, desde a administração até o tratamento multidisciplinar. Nessa linha, a regulamentação do programa ocorreu somente através da Portaria Nº 9 de 09 de junho de 2003, da Vara de Execuções, assinada pelo Doutor Miguel Marques da Silva, todavia, sua aplicação não possui respaldo na legislação atual, mas é concedida sempre por meio de autorização judicial embasada em relatório produzido pela equipe técnica que acompanha os pacientes.
Após a avaliação inicial dos profissionais da equipe multidisciplinar (enfermagem, médico psiquiatra, assistente social e psicólogo) e o respaldo efetivo da família, o paciente gradualmente retorna ao meio social por meio das visitas domiciliares (CIA, 2011).
Diferentemente da desinternação prevista no Código Penal (art. 97, §3º), que consiste em findar a medida de segurança imediatamente após determinação judicial, recolocando o interno diretamente ao convívio social após um período recluso, até mesmo sem apoio da rede familiar, essa medida consiste em uma etapa anterior à desinternação tradicional.
A desinternação progressiva constitui um método terapêutico que agiliza e aprimora a compreensão, o manejo e a efetivação do tratamento, restando claro que o regime de contenção se aplica a poucos internos. Consiste numa revolução terapêutica aplicável aos pacientes-delinqüentes "condenados" à internação, opondo-se ao regime fechado (FERRARI, 2001, p. 9).
Um dos objetivos dessa etapa é garantir segurança jurídica tanto para o indivíduo, quanto para a sociedade, garantindo a funcionalidade das prevenções especiais positivas e negativas assim respectivamente.
Além disso, a desinternação progressiva tem como finalidade a desinstitucionalização do tratamento do portador de sofrimento psíquico e, por consequência, visa alcançar a autonomia dos indivíduos através de um tratamento mais humanitário, com avaliações comportamentais que permitem qualificar a eventual ressocialização do indivíduo (CIA, 2006).
4.2. Procedimentos
Como mencionado, a aplicação da desinternação progressiva ocorre através de etapas visando diminuir a dependência das instalações hospitalares. Primeiramente, é feita a seleção dos internos que apresentaram evolução no tratamento; depois, as acomodações do hospital são ajustadas para que os reeducandos tenham livre acesso aos ambientes, além de terem a possibilidade de visitar espaços externos da instituição, sendo esta uma das formas de estimular a independência e ressocialização; durante as refeições, utensílios e eletrodomésticos ficam a disposição dos agentes, tal como pratos, copos de vidros e talheres, como anota Ferrari (2001).
No HCTP II Franco da Rocha, conforme evolução, é realizada uma estratégia para reintegração comunitária, que funciona através das chamadas imediações acompanhadas, desacompanhadas e, finalmente, as visitas domiciliares assistidas (VDAs).
Nas imediações com acompanhamento, os internos são supervisionados por agentes de segurança da penitenciária dentro de um veículo com outros internos, mostrando os principais locais da cidade. Tudo isso para que sejam ambientados ao local onde cumprem a medida de segurança, e possibilitar que no avanço de seu tratamento possam, futuramente, realizar atividades externas na cidade. Nas imediações desacompanhadas, também conhecida como “permissões de saída”, o reeducando é autorizado a visitar Franco da Rocha ou cidades próximas por até três horas totalmente desacompanhado (CIA, 2011).
Já as VDAs sempre contam com a participação da família durante todo o processo, que inclusive deve anuir e autorizar o procedimento. Geralmente são iniciadas com 3 dias, e vão sendo paulatinamente ampliadas até 21 dias e, durante as visitas, a família e o paciente são orientados a procurar a retaguarda da Secretaria Estadual da Saúde, no CAPs mais próximo da residência, e o paciente sob fiscalização da família recebe toda a medicação necessária para o período da visita domiciliar (SAP, 2022).
Insta salientar que apesar dessas estratégias, todos os internos têm direito a visitas familiares, estando eles aptos ou não para as medidas aqui descritas, além de que tais medidas são aplicadas gradativamente de acordo com o desempenho dos reeducandos, podendo, inclusive, inverter a ordem da execução.
Além das estratégias para reinserir o interno ao convívio social, vale ressaltar que os HCTPs também introduzem atividades educativas, laborativas e recreativas como forma de ressocialização (CIA, 2011), dentre elas, está a possibilidade de trabalhar dentro das unidades hospitalares, com serviços de manutenção e benfeitorias nas instalações, e até mesmo trabalhos remunerados que seguem os padrões de contratação da Lei de Execução Penal (FUNAP, 2020).
4.3. A necessidade de observar a desinternação progressiva no tratamento dos inimputáveis
Diante a ausência de dados, podemos inferir que o descaso com os pacientes que cumprem medida de segurança é um fato. Não só pelas situações apresentadas, ainda que de anos anteriores, mas também pelo sistema de intervenção penal que corrobora para que a medida de segurança acabe se tornando mais próxima de um presídio, do que de uma instituição de tratamento. Nesse sentido:
A sobreposição de dois modelos de intervenção social – o jurídico-punitivo e o psiquiátrico-terapêutico – acarreta uma discrepância entre a finalidade declarada e a sua inserção de fato, que já vem ocorrendo desde o surgimento dos HCTPs. Se a medida de segurança não tem caráter punitivo, então a sua feição terapêutica deve preponderar. É necessária uma reorganização burocrática entre as Secretarias da Administração Penitenciária e da Saúde, para que essa última assuma os HCTPs (CREMESP, 2014, p. 78).
Isso porque mesmo em condições satisfatórias, o tratamento muitas vezes não obtém êxito, em vista que o pressuposto da intervenção médica segrega o doente, não possibilita a cura e ainda cronifica a doença (CIA, 2011). Além disso, muitos casos são classificados como incuráveis, o que a princípio impossibilita que o HCTP - nas condições atuais, busque um avanço progressivo para a desinternação desses indivíduos.
Entretanto, em entrevista realizada com a equipe do HCTP II Franco da Rocha, um dos participantes relatou que em sede de medida de segurança o objetivo não é buscar de imediato a cura e cessação da periculosidade, porque muitas vezes isso não é possível, mas sim em conseguir o que eles chamam de periculosidade controlada. Atingido esse patamar, o interno poderá ser inserido novamente ao convívio social, mas em tratamento a ser realizado e acompanhado pelo Sistema Único de Saúde (CIA, 2011).
O antagonismo gerado pela vinculação dos HCTPs à Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), ao invés de ser conduzido diretamente por órgão da saúde pública, tal como o SUS, evidencia que as falhas na aplicação da medida de segurança e a baixa incidência da desinternação progressiva, estão intrinsecamente correlacionadas ao fato de que existem lacunas na legislação brasileira. Lacunas essas que seriam resolvidas se o Poder Judiciário observasse e aplicasse as recomendações dos atos administrativos mencionados anteriormente, e regulamentasse a desinternação progressiva propriamente dita. Como exemplo, temos o fato de que tais atos dão ênfase no sistema de saúde como órgão que deve ter maior participação na execução da medida de segurança.
Destarte, no que tange a concessão da desinternação progressiva, verificamos que esta só se dá mediante autorização judicial após um conjunto de análise de laudos fornecidos pela unidade de internação. No entanto, na pesquisa realizada por Cia (2011), os entrevistados, ora profissionais do HCTP II Franco da Rocha, revelaram que ainda que o juiz tenha decretado sua aplicação, somente com autorização da equipe médica, os reeducandos poderiam desfrutar desse benefício.
Aqui, observamos novamente um conflito entre as autoridades institucionais. Se somente o juiz de execução tem competência para autorizar saídas temporárias - como é o caso de algumas das etapas da desinternação progressiva, se faz necessário a atuação em conjunto desses órgãos, não cabendo à equipe de saúde do HCTP coordenar as saídas. Cia (2011) reconhece que a colaboração entre o judiciário e os técnicos só seria possível mediante uma reforma estrutural no sistema judiciário, haja vista que a morosidade processual não permitiria que uma solicitação de saída fosse analisada em tempo hábil.
Outra situação analisada por Cia, é de que embora o parecer técnico do perito não seja vinculado à decisão do magistrado, maior parte das decisões segue o parecer técnico. Isto é, se a cessação de periculosidade não foi atestada, o juiz não autorizará a desinternação progressiva. Situação está só é recorrente pelo receio do judiciário em se responsabilizar por contrariar um parecer médico, e por não terem outros recursos que auxiliem em sua tomada de decisão, tal como no caso de Chico Picadinho. Diante esse cenário, verificamos aqui mais um ponto que faz o caráter perpétuo da medida de segurança.
Para Giacoia (et. al., 2016), o distanciamento do judiciário na execução das medidas de segurança e ausência de lei federal que regularize a desinternação progressiva também são um dos motivos pelo qual dificulta o fornecimento de recursos para sua execução. Já para Smanio et al. (2019), a reintegração social deve ser abordada como uma questão de interesse geral, não apenas dos legisladores e do sistema penitenciário. Isso porque tal instituto está diretamente ligado aos direitos fundamentais, além de que a sociedade como um todo é afetada pelos efeitos da delinquência. “Possui a reintegração social, na verdade, uma dimensão transindividual” (GIACOIA, et. al., 2016, p. 509).
Infelizmente, o tema abordado carece de dados recentes, motivo pelo qual ficamos limitados a deduções com base nos estudos de anos anteriores, o que acaba por se tornar um dado relevante, que inclusive é questionado nas pesquisas aqui mencionadas. Com base nos relatórios elaborados por Cia, em 2011, que retrata a falta de fiscalização, estrutura e tratamento médico adequado, pelo CREMESP em 2014, e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNCTP), restou demonstrado que:
[...] a preponderância da lógica da segurança e da disciplina prejudica qualquer perspectiva terapêutica. O tratamento, que deveria ocorrer através da construção de projetos de vida e da aposta na autonomia das pessoas, ficava completamente impossibilitado em um ambiente punitivo e fechado. Além disso, observou-se que as instituições visitadas violavam os direitos das pessoas internadas, sendo, inclusive, frequentes os episódios de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (MNPCT, 2015-2016, p. 62).
Ou seja, as condições e violações criticadas no presente trabalho permaneceram, até onde se sabe, ao menos por 5 anos. Atualmente, notícias disponibilizadas entre os anos de 2017 a 2022, pela Secretaria de Administração Penitenciária, indicam que as tarefas laborais e educativas - ao menos nos HCTPs I e II de Franco da Rocha, estão sendo constantemente incentivadas e têm trazido bons resultados. Exemplo disso é a Fundação “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel” de Amparo ao Preso (FUNAP), responsável pelos trabalhos dos internos, ter empregado 70 reeducandos em um convênio com a Prefeitura de Jundiaí, no ano de 2019.
Vejamos, na desinternação prevista em nossa legislação, independente do apoio familiar, ou da existência de uma família que possa acolher o egresso, este é imediatamente reinserido no convívio social, independentemente de ter tido um tratamento psico e sócio-terapêutico, sendo muitas vezes rejeitado pelo seio familiar por dois motivos: receio de suas atitudes e medo de se responsabilizar por eventuais impulsividades - mesmo caso retratado sobre o judiciário.
Por esse motivo, verificou-se que o fato de proporcionar o contato do interno com a sua comunidade de origem inaugura inúmeras possibilidades convenientes para sua ressocialização, mais um indício que tal metodologia é bastante acertada (CIA, 2011, p. 165).
Em suma, é evidente que o mecanismo da desinternação progressiva traria melhores resultados no que tange à execução da medida de segurança. Entretanto, para que isso seja efetivamente possível, se faz necessário a implementação de políticas públicas que viabilizem constantes fiscalizações nos HCTPs e locais de tratamento ambulante (CAPs), visando garantir condições mínimas de salubridade nas instalações e tratamento multidisciplinar adequado, buscando primordialmente respeitar os deveres e garantias constitucionais. Senão, a fim de desintegrar o caráter prisional que a medida de segurança possui hoje, os arts. 1715 e 18 da Resolução Nº 487, que determina a interdição total dos HCTPs - assim como já havia sido indicado na Resolução Nº 113, de 2010 (com a criação dos CAPs), e na Recomendação Nº 35, de 2011, deveriam ser empregados.
Insta salientar que a inclusão das redes alternativas de tratamento demonstra, desde a promulgação da Reforma Psiquiátrica, a ruptura da lógica hospitalocêntrica, uma vez que caminharam da extinção dos manicômios para os HCTPs, e destes, passaram a recomendar a transferência para hospitais gerais nos casos excepcionais de internação, evitando instituições de característica asilar. Ainda, cumpre ressaltar que embora a reforma não tenha sido um ato normativo voltado diretamente para a esfera penal, a Resolução Nº 487, de 2023, foi promulgada justamente com o intuito de reforçar as ideias passadas pela lei antimanicomial, evitando discussões sobre a aplicação ou não de seus dispositivos em sede de medida de segurança.
Nesse sentido, a implementação de lei especial seria imprescindível para que o tema da desinternação progressiva fosse regulamentado e proporcionasse maior segurança jurídica no que tange a sua aplicação e metodologia, padronizando estratégias de reintegração comunitária. Além disso, ainda que se trate de um sistema de intervenção penal, as medidas de segurança deveriam estar diretamente vinculadas ao SUS, haja vista que sua finalidade tem como base a prevenção positiva especial, como foco no tratamento do indivíduo.
Sendo o controle realizado por uma unidade de saúde, a fiscalização e disponibilização de profissionais, por exemplo, seriam de fácil acesso e permitiriam que o objetivo fosse além do farmacológico, visando a cura ou a redução de danos, além de evitar que os indivíduos em tratamento estivessem em ambientes de caráter prisional e asilar.
Apesar das adversidades, as estratégias utilizadas na desinternação progressiva para a ressocialização dos reeducandos trazem indícios de que se esses mecanismos forem aplicados corretamente podem diminuir o índice de reincidência dos inimputáveis, além de proporcionar a periculosidade controlada destes, podendo retornar ao convívio social mediante continuidade do tratamento fornecido pelo SUS.
Sendo assim, a idealização desse mecanismo como uma etapa obrigatória anterior a desinternação propriamente dita decorre da análise de processos que são realizados paulatinamente, a fim de verdadeiramente tratar, ou ao menos mitigar, as consequências do transtorno mental para o indivíduo e a sociedade como um todo.