Capa da publicação Dissimulação do fato gerador segundo o CARF
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Desconsideração de atos ou  negócios jurídicos  praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador a qualquer tempo, conforme entendimento do CARF

21/08/2024 às 17:36
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O que está sob efeito da decadência é o lançamento e ou a fiscalização?

Interessante questão foi trazida pelo CARF no julgamento do Proc. nº 10580.731272/2021-68 quando a 2ª sessão de julgamento da 3ª Câmara da 1ª Turma Ordinária decidiu que é possível ao fisco fiscalizar fatos ocorridos em passado remoto, ainda que não seja possível constituir o crédito tributário alcançado pela decadência, mas para efetuar o lançamento do tributo em relação aos períodos não atingidos pelo prazo decadencial do art. 173 ou do §4º, do art. 150. do CTN.

O caso versado tratava de desconstituição do Fundo do Investimento Imobiliário -FII- criado em 2014, seguido de lançamento do imposto de renda em 2021, relativamente aos exercícios de 2016, 2017, 2018 e 2019.

O contribuinte se defendeu alegando o decurso do prazo decadencial quer considerando o lançamento de ofício (art. 173. do CTN), quer considerando a modalidade de lançamento por homologação (art. 150, §4º do CTN).

O CARF sustentou a tese da possibilidade de investigar o passado para projetar os efeitos dessa fiscalização para tributar os exercícios financeiros não alcançados pela decadência.

O que está sob o efeito da decadência é o lançamento e não a fiscalização, ponderou a Turma Julgadora.

Assim, a desconsideração do FII constituído em 2014 para em 2021 proceder ao lançamento do imposto de renda dos exercícios de 2016, 2017, 2018, 2019 estaria dentro da legalidade.

A fiscalização é o instrumento de que dispõe o fisco para constituir o crédito tributário. Fiscaliza-se para efetuar o lançamento tributário, isto é, para constituir o crédito tributário no período fiscalizado. Não se faz fiscalização para satisfazer mera curiosidade do agente fiscal.

Mas, o caso analisado tratou-se de desconsideração do FII criado em 2014, com fundamento no parágrafo único, do art. 116. do CTN que assim prescreve:

“A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”

A doutrina batizou a regra desse parágrafo único como norma antielisiva geral.

Não há, ainda, procedimento estabelecido na lei ordinária, mas entende-se que a desconsideração deva obedecer ao princípio do devido processo legal que abrange o princípio do contraditório e ampla defesa, porque são requisitos constitucionalmente exigidos.

A dissimulação de que cuida a norma antielisiva envolve o dolo do contribuinte, que se caracteriza apenas nas hipóteses de sonegação, fraude ou conluio como definidos, respectivamente, nos artigos 71, 72 e 73 da Lei n 4.502/1964.

Sem entrar no mérito da demanda administrativa, porque em outros casos o mesmo CARF teria reconhecido a validade do FII constituído por outras pessoas, a tese sustentada pelo órgão julgador, ao permitir a fiscalização a qualquer tempo, desde que para efeito de proceder ao lançamento em relação aos exercícios financeiros não atingidos pela decadência tributária, conspira contra o princípio maior da segurança jurídica, que é o objetivo visado tanto pela decadência, como pela prescrição.

A estabilização das relações jurídicas, legais ou ilegais, se impõe depois de decorrido certo período de tempo, não sendo possível, nem desejável que a espada de Dâmocles fique pendente eternamente sobre a cabeça do contribuinte.

Assim procedendo, nem o contribuinte, nem os terceiros que com ele se relacionam poderiam dormir tranquilamente, pois os atos praticados no passado remoto poderiam ser revistos pelo fisco, a qualquer momento, afetando as relações jurídicas de há muito consolidadas.

Há um ditado invocado por administrativistas, segundo o qual o tempo apaga o vício. Exemplificando, suponha-se que um juiz que tenha sido nomeado e empossado após ser aprovado no concurso público, passados dez ou 15 anos, descobre-se ele teve acesso às provas de forma ilegal, o que acarreta a nulidade da prova a que se submeteu. Anula-se a sua nomeação? Como ficam as centenas ou milhares de decisões por ele proferidas, cobertas pelo manto da coisa julgada? Desfazer-se-iam todas as relações jurídicas consolidadas ao longo de mais de uma década? Não purgar o vício no caso, por decurso do longo prazo, causaria um gravíssimo tumulto na vida das pessoas inocentes. Só para exemplificar, um casal que teve o divórcio decretado pelo referido juiz que arbitrou a pensão alimentícia para a ex esposa. Como ficam essas relações jurídicas? Os divorciados voltam ao estado de casados? As pensões alimentícias se interrompem? Como ficam os atos de alienações imobiliárias praticados sem a outorga uxória? Haverá anulação em cascata de todas as alienações que se seguiram à primeira alienação sem outorga uxória? Não reconhecer a consolidação dos efeitos, de forma irreversível, no caso apontado seria o mesmo que causar a desordem na sociedade, na contramão do objetivo visado pelo Direito que é o assegurar a paz e harmonia na sociedade.

A decisão do CARF separou o lançamento,sujeito ao prazo decadencial da fiscalização que não teria prazo algum. Essa tese não passa, data venia, de uma retórica, sem respaldo na ordem jurídica como um todo, onde a segurança jurídica aparece como o princípio maior protegido por cláusula pétrea.

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Realmente, dentro da tese do CARF um negócio jurídico realizado na década de 50 pode ser desfeito pela fiscalização a qualquer tempo, por exemplo, em janeiro de 2020, para gerar efeitos em relação aos exercícios de 2021, 2022, 2023 e 2024. não abrangidos pela decadência.

A fiscalização retroativa para a década de 50 foi aventada de forma exagerada para bem aquilatar o desacerto da tese fazendária. Se pode rever algo consumado em 2014 porque não em relação a algo praticado na década de 50?

Positivamente, a fiscalização não pode ser dissociada do ato do lançamento. Se o lançamento estiver sob efeito da caducidade não caberá a cogitação de fiscalização sob pena de afetar o princípio da segurança jurídica que deve reger as relações entre os indivíduos e destes em relação ao Estado.

Não se pode fazer interpretação literal do art. 173 ou do 4º, do art. 150 do CTN, sem atentar para o conteúdo intrínseco dessas normas. Uma fiscalização que não tenha o objetivo de constituir o crédito tributário no período fiscalizado não tem o menor sentido. Fisclização não é instrumento de satisfação da curiosidade do agente fiscal de rendas.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Desconsideração de atos ou  negócios jurídicos  praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador a qualquer tempo, conforme entendimento do CARF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7721, 21 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110469. Acesso em: 12 set. 2024.

Mais informações

Texto publicado no Migalhas, edição nº 5;8093, de 16-7-2024. 

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