Com advento da Lei n.º 9.714, de 25 de novembro de 1998, alguns dispositivos do Código Penal, parte geral, restaram alterados (art. 43; 44; 46; 47; 55 e 77 CP), inovando sobremaneira as penas restritivas de direitos e, sobretudo, os pressupostos fáticos de sua aplicação. Permitiu o legislador ordinário, com esta nova disposição legal, a substituição de penas privativas de liberdade em penas restritivas de direitos, quando coexistirem os seguintes requisitos, de natureza objetiva e subjetiva:
- pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e crime não cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo (art. 44, inciso I);
- o réu não for reincidente em crime doloso (art. 44, inciso II);
- a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente (art. 44, inciso III).
Respeitáveis doutrinadores têm se posicionado favoráveis à aplicação do art. 44 do Código Penal à Lei de Crimes Hediondos, quando nos delitos taxativamente declinados nesta Lei Especial forem cometidos sem violência ou grave ameaça e com penas aplicadas inferiores a 4 anos, na forma estabelecida no art. 44, inciso I, com a redação dada pela Lei n.º 9.714/98. Neste sentido, orienta-se Damásio de Jesus (1) e Luiz Flávio Gomes (2). Consigne, a propósito, as palavras deste jurista:
"Não resta a menor dúvida que, em tese, pela pena aplicada, cabe a substituição da pena de prisão nos denominados Crimes Hediondos, tal como é o caso, do delito de tráfico de drogas, falsificação de alimentos, tentativa de falsificação de remédios etc. (aliás, no que concerne ao tráfico de drogas, há manifestação inclusive do Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo no sentido de sua admissibilidade, em tese, tudo dependendo da pena aplicada - Folha de São Paulo e O Globo, de 25.11.98). Dizer, no entanto, que, pela pena aplicada (concreta) haja possibilidade de substituição não significa que o juiz deva procedê-la em todos os casos: além do requisito objetivo da pena (que não pode ser superior a quatro anos), urge o exame criterioso dos demais requisitos subjetivos..." (3).
É inquestionável que através de um simples critério objetivo de subsunção da nova legislação a situações concretamente existentes no mundo jurídico penal, chegar-se-ia à conclusão preconizada pelo insigne jurista; em sentido diverso, entretanto, partindo-se de uma interpretação teleológica e, sobretudo, legalista (art. 12 do CP ) do Código Penal e da Lei Especial de Crimes Hediondos, a incompatibilidade deste diploma especial frente à Lei n.º 9.714/98 seria a lógica do sistema.
Com efeito, é notório que o legislador ordinário, para elaborar a lei penal ou estabelecer determinado regime de cumprimento de pena privativa de liberdade deve, em caráter antecedente, investigar a questão sob duplo enfoque: 1) verificar a existência de bens jurídicos que estão a merecer tutela penal; 2) perscrutar se determinados bens jurídicos já valorados penalmente estão necessitando de uma reavaliação político-criminal, quer através da majoração da pena privativa de liberdade, quer através da fixação de determinado regime de cumprimento de pena. Nesta segunda hipótese, incumbe ao legislador individualizar espécies de delitos de grande potencialidade lesiva para a sociedade para, assim, instituir, legislativamente, diploma legal mais severo e dissuasivo de intentos delituosos.
A Lei de Crimes Hediondos, certamente, foi produto deste criterioso estudo político criminal, onde se constatou a imperiosa necessidade de se proteger a vida humana, a liberdade, física e sexual, a saúde pública e incolumidade física dos indiciados, ante a verificação de crimes de extorsões mediante seqüestro, latrocínios, torturas e tráficos ilícitos de entorpecentes cometidos em número crescente e alarmante, sem que a lei penal estivesse a cumprir característica que lhe é peculiar - prevenção e desestimulação de intentos delituosos. A escalada criminosa deveria, inexoravelmente, ser reprimida a qualquer custo, para restabelecer a credibilidade no sistema penal e a tranqüilidade do cidadão.
Jescheck, com habitual propriedade, destaca que
"...el Derecho penal tiene que cumplir de forma directa una función preventiva. Toda pena debe contribuir a consolidar de nuevo en el condenado el respeto al Derecho y a reconducirle, por su próprio esfuerzo u convición, al orden jurídico. El recuerdo de la pérdida de libertad, patrimonio o reputación sufrida con la ejecución de la pena há de servir también al autor como aviso frente a futuros delitos. La pena en su modalidad de privativa de liberdad debe conseguir asimismo una defensa, al menos temporal, de la sociedad frente al autor peligroso. El efecto preventivo de la pena sobre el próprio condenado se conece como "prevención especial. Junto a los efectos de prevención especial que se pretenden obtener con la pena en relación com cada condenado, el Derecho penal tine especiales funciones preventivas frente a determinados grupos de autores" (4).
Nesta ordem de argumentação, não é admissível que se pretenda aplicar a Lei n.º 9.714/98 nos crimes taxativamente delineados na lei de Crimes Hediondos, na medida em que a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos é absolutamente incompatível com a naureza dos crimes tutelados pela Lei Especial e, sobretudo, não cumpriria a prevenção especial indissociável da lei penal.
Sob prisma diverso, também deve ser afastada a Lei n.º 9714/98 aos Crimes Hediondos, na medida em que a Lei n.º 8072/90 é especial e incompatível com as normas gerais estabelecidas no Código Penal (arts. 44 e seguintes). Veja, nesta esteira, a dicção legal:
"Art. 12 - As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso".
Com efeito, prevendo a lei de Crimes Hediondos regime integralmente fechado para cumprimento de pena privativa de liberdade há, sem qualquer dúvida, inaplicabilidade do art. 44 do Código Penal, ante a existência de lei especial incompatível com as regras gerais do estatuto penal.
Damásio de Jesus, em sua obra Código Penal Anotado (5) leciona que:
"Quando o Código e a lei especial ditam regras gerais sobre o mesmo assunto, o conflito aparente de normas é solucionado pelo princípio da especialidade: a regra geral contida na lei especial prevalece sobre a determinada pelo estatuto repressivo. Assim, as normas contidas nos arts. 1º a 120 do CP, mais as não incriminadoras previstas na parte especial, são aplicáveis a toda legislação especial, salvo exceção expressa. Por exemplo: as disposições sobre legítima defesa, estado de necessidade, aplicação da pena, sursis, livramento condicional, extinção da punibilidade etc. se estendem aos crimes eleitorais, contra a economia popular, falimentares, de imprensa etc. Excepcionalmente, quando a legislação penal especial ditar princípio diverso do contido no Código Penal, prevalece aquele. A punibilidade da tentativa, prevista no art. 14, II e parágrafo único do CP, não se estende às contravenções, uma vez que elas, quando tentadas, não são puníveis (LCP, art. 4º)."
Em idêntico sentido, Alberto Silva Franco "et alii", em Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial (6), destacam o seguinte:
"O art. 12 do CP dispõe que "as regras gerais do Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se este não dispuser de modo diverso". Da interpretação resulta a conclusão no sentido de que as normas gerais descritas nos arts. 1º a 120 do CP são aplicáveis a toda legislação especial, salvo exceção expressa.
Com tais termos, o legislador mostrou, de forma inequívoca, que o Direito Penal fora da codificação não representa um corpo estranho em relação ao próprio estatuto penal. Entre as leis penais especiais e as regras contidas na Parte Geral, permeia um vínculo bastante estreito, idôneo a aglutiná-las numa unidade interna. O texto legal evidencia a realidade dessa união e põe em destaque os dois princípios que estão, logicamente conectados: de um lado: o princípio da primazia do conceito da lei penal especial quando colide com as regras da Parte Geral do Código Penal: de outro, o princípio da supletividade das normas gerais do Código Penal, que os estendem às leis penais especiais se estas se mostram silentes e nada dispõem a respeito. A combinação dos dois princípios lógicos lança, sem dúvida, a ponte que permite relacionar o Direito Penal codificado ao Direito Penal não codificado. Com inteira procedência, já se afirmou a importância capital do dispositivo em exame (Cf. Anibal Bruno, Direito Penal, 1967, p. 260), máxime em um país como o nosso no qual se editam, com freqüência, leis penais avulsas, carentes de disposições gerais. A referida norma atende a idéia de unificar, de harmonizar, todo o contexto legislativo penal na medida em que as regras gerais ou comuns se aplicam às matérias regidas pelos preceitos especiais em tudo o que estes não previram ou não se opuseram. Com isso, evita-se enquistamentos de todo intoleráveis e, não raro, injustos".
Sendo indiscutível, portanto, que a Lei de Crimes Hediondos trata-se de Lei Especial e, ainda, que a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, na forma preconizada pelo art. 44 do Código Penal, é incompatível com a forma de cumprimento da pena privativa de liberdade em regime integralmente fechado estabelecida naquela legislação especial, não resta dúvida que este dispositivo penal, enquanto regra geral do Código Penal, não estenderá seus efeitos à Lei de Crimes Hediondos, norma especial reguladora da matéria. Entender de modo diverso é negar vigência à Lei Federal - art. 12 do CP e, ainda, extrair da norma especial seu conteúdo preventivo e repressivo.
NOTAS
(1) "Penas Alternativas", São Paulo: Saraiva, 1999, p. 95.
(2) Penas e Medidas Alternativas à prisão, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 111.
(3) Ob. Cit., p. 112.
(4) Jescheck, Hans-heinrich, Tratado de Derecho Penal: parte general, 4ª ed., Granada: Comares, p. 4, trad. José Luis Manzanares Samaniego.
(5) São Paulo: Saraiva, 1989, p. 27.
(6) São Paulo: Revista dos Tribunais, 6ª ed., 1997, p.191.