1. Em novembro de 1998, foi editada a Lei nº 9.714/98, modificando dispositivos do Código Penal, dentre os quais os relativos às penas restritivas de direitos, sustitutivas da privativa de liberdade. De acordo com a redação da nova Lei, passou a constar do inc. I, art. 44, do CP, que "as penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo". Esta nova regra, por alguns setores da doutrina (1) e jurisprudência (2), em uma contestável e isolada interpretação literal, tem sido endereçada a agentes do crime do art. 12 da Lei de Tóxicos.
2. Quando uma regra jurídica é elaborada, e entra em vigor, passa a integrar a ordem jurídica, como conjunto de normas ordenadas em institutos e sistemas. Sua vigência e comandos se correlacionam com a vigência e comandos das normas preexistentes, podendo, eventualmente, umas influir sobre o sentido de outras, cabendo ao intérprete, em decorrência, visualizar e compreender o conteúdo das várias normas, garantindo o equilíbrio e a unidade do sistema jurídico. Nesta tarefa de descortinamento, ajusta a norma à realidade, onde o Direito se impõe, com força que impera sobre o modo de viver dos homens, na expressão de Fabrício Leiria (3).
3. Diversos os métodos interpretativos que o conduzem à descoberta de mens legis, mas que não os fazem excludentes uns de outros, ao contrário, complementam-se em um processo mental para atingir um resultado final de interpretação que mais se ajuste da justiça real. Sempre oportuno lembrar, a interpretação não se restringe ao esclarecimento do significado das palavras ou dos pontos obscuros, mas a toda elucidação a respeito da exata compreensão da regra jurídica a ser aplicada aos fatos concretos (4), tendo como guia, recomendado pela hermenêutica, que as leis do Direito foram inspiradas nas fontes mais puras da Justiça.
4. Dentre os métodos disponíveis, o primeiro utilizado, e o mais singelo de todos, é o literal ou gramatical. Através do método gramatical, examina-se a morfologia das palavras que o texto legal encerra, para encontrar o mais correto sentido dos termos. Estuda-se o relacionamento lógico que as palavras da lei guardam entre si, para fazer valer o Direito. Apesar de valioso, até para o fim de afirmar que a lei é clara, o método literal, por si só, em face da sua superficialidade, pode implicar, se isoladamente utilizado, em uma conclusão que não corresponda à verdadeira mens legis, não atenda ao valor que deu fundamento e conteúdo à norma, nem se compatibilize com outras normas que tratam do mesmo assunto. A interpretação literal, em termos de resultado, tende a fazer valer a máxima de Montesquieu, ditada em plena efervescência do Iluminismo do século XVIII, época de um protesto santo contra a interpretação das leis penais, de acordo com a qual os juízes se devem ater à letra da lei, não lhes sendo dada a faculdade de interpretar os textos legislativos. Por isso a necessária complementação por outros métodos, hábeis a conduzir o intérprete a uma análise mais densa, mais profunda, que considere a totalidade do ordenamento jurídico-penal e suas raízes valorativas, na medida em que os comandos e proibições penais possuem raízes nas normas de valoração, fundamentam-se em aprovações e desaprovações.
5. Na busca da harmonizá-la com os comandos das demais normas que integram o ordenamento, ao intérprete cabe comparar o dispositivo com outros referentes ao mesmo objeto, estejam no próprio diploma interpretado, na Constituição ou nas leis esparsas, verificando e compreendendo o conjuntural tratamento jurídico. A respeito, oportuno reproduzir passagem de artigo subscrito por Sidney Eloy Dalabrida, publicado no site da Associação Catarinense do Ministério Público: "Para o equacionamento da questão levantada, portanto, não pode o intérprete confinar-se no exame do novo texto legal, ignorando a posição que este ocupa no novo modelo punitivo, corolário do direito penal democrático, devendo, ao contrário, observando os passos da interpretação sistemática, parafraseando o notável Carlos Maximiliano, elevar seu olhar dos casos especiais para os princípios dirigentes a que eles se acham submetidos, indagando se, ao obedecer a um, não estará violando outro".
Não deve descurar o bem jurídico que as normas tutelam, sempre atento ao fato de que o Direito é organizado em princípios informadores e hierárquicos, que subordinam as leis em um conjunto harmônico, o ordenamento jurídico. Também não deve desprezar a perspectiva histórica da formação da nova lei e da lei com a qual possa conflitar, desde seu projeto, exposição de motivos, emendas etc, assimilando os anseios da sociedade à época de sua criação, para, então, conclusivamente, chegar a uma justa aplicabilidade da norma, consentânea com os valores sociais, políticos e jurídicos que a subjazem.
6. Nessa ótica interpretativa, o Ministro da Justiça, na Exposição de Motivos da Lei nº 9.714/98, expressou que a ampliação das alternativas à prisão foi idealizada com base na compreensão de que, para os crimes de menor gravidade, a melhor solução consiste em impor restrições aos direitos do condenado, que não o estigmatizem de forma tão brutal como a prisão, que permitam de forma bem mais rápida e efetiva a integração social.
Com este propósito de ampliar as alternativas à prisão, preservando o valor liberdade, é que o projeto foi elaborado. A não-imposição de limite máximo da pena para conversão nos crimes culposos, e o poder que reconhece ao juiz para operar a conversão, até para o reincidente, claramente revelam esta sua ratio. A finalidade que busca atingir, porém, não é a de beneficiar agentes de crimes graves, de séria e aflitiva afetação aos mais caros bens penalmente protegidos. Sua finalidade, correlata ao valor que inspirou o legislador a elaborá-la, é de preservar a liberdade, compatibilizando, adequadamente, nos casos de ausência de reclamo social e escassa lesividade aos bens jurídico-penais, os imperativos de prevenção geral e prevenção especial, mediante imposição de sanção penal cuja execução não seja aflitiva nem estigmatize de forma tão brutal como a prisão, antes permitindo, de maneira bem mais célere e efetiva, a reintegração social do condenado. Nessa linha de propósitos é que o projeto de ampliação das alternativas à pena de prisão foi elaborado.
7. Este ideal (ou ratio) que revela, e que também é correlato a política criminal que visa à diminuição dos gastos da lotação do sistema penitenciário, evidentemente não se compatibiliza (e para que assim se afirme não precisaria estar expresso na Constituição ou na Lei nº 8.072/90) com o ideal (ou ratio) inspirador do regramento penal dos crimes hediondos, de modo especial do relativo ao tráfico de entorpecentes, que reserva a mais grave reprimenda penal dentre as disponíveis (privação de liberdade), inclusive no tocante ao seu cumprimento (regime integralmente fechado).
8. Cotejada a nova Lei com o ordenamento constitucional e infraconstitucional dos crimes hediondos e assemelhados, em uma interpretação contextualizada, na qual o aplicador não perde de vista a unidade e a harmonia da ordem jurídica, o descortinamento não será outro, senão o da manifesta incompatibilidade em substituir-se a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos aos agentes de tais crimes, pois:
a) A CF, no art. 5º, inc. XLIII, pela gravidade sócio-jurídica que lhes reconhece, dispõe: "a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos";
b) A CF, ao mesmo tempo em que estabelece como regra que nenhum brasileiro será extraditado, permite a extradição do naturalizado que tiver comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, sendo este o único crime pelo qual admitiu a extradição de brasileiro naturalizado, em mais uma inequívoca demonstração da severidade do tratamento jurídico dispensável ao narcotráfico, um dos principais flagelos da atualidade;
c) A Lei nº 8.072/90, editada em atendimento à determinação constitucional e também como resposta a considerável reclamo social, expressamente veda a concessão de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória aos agentes do tráfico devido à lesividade deste delito, que compromete a força de trabalho, prejudica, sobremodo, a saúde da juventude, provoca corrupção, homicídios, chacinas, seqüestros, extorsões e toda sorte de crimes violentos, estabelecendo, como expressão máxima do rigor com pretende sejam punidos, o cumprimento da pena em regime integralmente fechado, sendo sempre oportuno lembrar que a constitucionalidade deste diploma legal foi assentada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (5);
d) Aos autores do delito do art. 12, como regra, não é dado o direito de apelar em liberdade (6), mesmo sendo primários e gozando de bons antecedentes, e o processo, quando provisoriamente presos, tem seus prazos computados em dobro, à despeito do status libertatis, pela compreensão de que os prazos para formação da culpa são fixados em favor da sociedade, interessada na completa apuração dos fatos e inflexível aplicação da lei penal, o que por vezes pode demandar tempo, e não em favor da liberdade dos agentes de tão grave delito;
e) O crime do art. 12 integra o rol dos delitos que admitem a prisão temporária (Lei nº 7.960/89, art. 1º, inc. III, alínea n), verdadeira prisão para averiguações, cujo prazo de vigência é seis vezes superior ao dos demais crimes em que a mesma custódia é permitida, com previsão de prorrogação por igual período (trinta dias), pela evidente razão de que sua investigação é objetivo primordial da polícia judiciária;
f) A gravidade de uma condenação pelo delito do art. 12 da Lei de Tóxicos, ainda que não caracterize reincidência e mesmo sem trânsito em julgado, por si só, conduz a agravamento da pena do porte ilegal de arma (art. 10, § 3º, inc. IV da Lei nº 9.437/97);
g) Todo este regramento especial ao crime de narcotráfico traz à baila a norma do art. 12 do Código Penal, de uníssona interpretação doutrinária: "As regras gerais do Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se este não dispuser de modo diverso". Deste dispositivo decorrem dois princípios que estão logicamente conectados: princípio da primazia da lei penal especial quando seu comando colidir com regra da Parte Geral do CP; e princípio da supletividade das normas gerais do CP, que os estendem às leis penais especiais nos casos em que estas se mostram silentes a respeito do assunto. A combinação dos dois princípios lógicos lança a ponte que permite relacionar o Direito Penal codificado ao Direito Penal não codificado, na expressão de Aníbal Bruno;
h) O próprio art. 44 do CP, em seu inc. III, com a redação dada pela Lei nº 9.714/98, condiciona a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos quando, dentre outros requisitos, a personalidade do condenado, os motivos e circunstâncias do crime indicarem a suficiência da substituição em termos de repressão e prevenção do crime, condição a que o tráfico de entorpecentes, seja pelo rigor que lhe destinam as normas especiais, seja pela própria natureza como fato social, seja pelos malefícios que produz, não tem como atender.
9. Por conseguinte, com base em uma interpretação globalizada do ordenamento jurídico-penal sobre ao crime hediondos e assemelhados, inafastável conclusão é a de não ser substituível por restritiva de direitos a pena privativa de liberdade infligida a agente do crime previsto no art. 12 da Lei de Tóxicos, pouco importando se grande, médio ou pequeno traficante, tendo em vista que todos os esforços se unem para que o tóxico seja comercializado, todos os envolvidos na cadeia de distribuição são concausas da destinação final e disseminação das drogas.
A propósito, a lei não faz distinção entre o agente que importa toneladas de cocaína e a mulher do presidiário que o presenteia com pequena quantidade de maconha. Distinções baseadas no volume ou natureza da substância comercializada, na organização ou empreitada solitária do narcotraficante, no reduzido ou considerável âmbito territorial do tráfico, devem repercutir na valoração jurídica do fato, mas encontram campo adequado a este sopeso na dosimetria da pena privativa de liberdade, pois, dispõe o Juiz, a quem se reconhece boa dose de arbítrio na fixação da reprimenda, entre o mínimo de três e o máximo de quinze anos de reclusão cominados pelo tipo do art. 12, de alta flexibilidade em termos quantitativos para conferir justo apenamento, para dar a cada um o que realmente é seu.
Dizer-se que o traficante de pequeno porte é um nada diante do megatraficante, ou que considerá-lo perigoso e merecedor de severa sanção significa estimular o status quo, para que continue a polícia a preocupar-se basicamente com quem representa menor risco à comunidade, é assertiva que só pode ser feita devido a total desconhecimento da trágica realidade do cotidiano, em que pequenos traficantes cercam escolas, lancherias, salões de fliperama, casas de espetáculos, centros comerciais, estádios de esportes e outros locais de habitual freqüência juvenil, minando, passo-a-passo, paulatina, mas eficazmente, forma inexorável, a nossa juventude, e quem sabe, nossos filhos e filhos de nossos amigos. É assertiva que só pode decorrer de um completo desconhecimento de que os pequenos traficantes são os maiores interessados em proporcionar a iniciação gratuita aos futuros fregueses, disseminando o uso dos entorpecentes e favorecendo a dependência; é comum, modo especial nas mais baixas classes econômico-sociais, usarem, sem qualquer pudor, crianças e adolescentes como seus laranjas, a que antes geralmente viciam com práticas de liberalidade na cessão da droga, fazendo, não raro, que abandonem os bancos escolares e conheçam os bancos dos Juizados da Infância e Juventude, como primeiro degrau na escalada de marginalização a que criminosamente os endereçam. Basta olhar através da janela.
10. Frente ao Direito Penal que no Brasil de hoje dispomos, em obediência ao conteúdo de Justiça que as normas devem traduzir, crimes de desigual gravidade e criminosos de desigual periculosidade passam a receber desigual tratamento retributivo, na exata medida em que se desigualam. Nosso ordenamento penal impõe maior severidade aos crimes mais graves e facilita o convívio social dos condenados por delitos leves. Aos agentes de tráfico de drogas, destina a mais severa reprimenda penal dentre as disponíveis (privação de liberdade), inclusive no tocante ao seu cumprimento (regime integralmente fechado). Aos narcotraficantes, por expressa disposição da lei especial, os imperativos de prevenção geral e especial não se comprazem com meras restrições de direitos. A prisão continua sendo a justa e adequada resposta.
Além de se constituir em interpretação violadora de preceitos constitucionais e legais (não é lícito aplicar uma norma jurídica senão à ordem de coisas para a qual foi feita), inaceitável, sob qualquer prisma interpretativo, que se queira dar aos agentes do tráfico de substâncias entorpecentes a aplicação benigna da nova Lei, que se pretenda fazê-los destinatários das penas alternativas. As restrições aos direitos do condenado, que não o retiram do convívio social, ampliadas pela nova Lei, são reservadas aos crimes de menor lesividade e a agentes que não exigem afastamento do meio comunitário.
Mesmo em se considerando a recomendação da hermenêutica para que se dê restritiva interpretação às normas que limitam direitos individuais, tal recomendação só tem cabida quando a lógica do razoável não a refutar, exatamente como no caso em questão. A muralha da Lei é a lógica. E a lógica, funcionando como muralha, afasta a incidência do regramento da Lei nº 9.714/98 aos agentes do crime de narcotráfico, conclusiva e definitivamente, porque:
a) De inconciliável combinação a norma proibitiva de liberdade provisória com a de permissão da substituição da privativa de liberdade por pena restritiva; não é lógico nem razoável que o agente permaneça preso durante o processo, porque pego em flagrante, sem direito a liberdade provisória, deva ser solto, como direito subjetivo seu, para cumprir em liberdade, à título de substituição da privativa, pena restritiva de direitos, exatamente depois de formada, reconhecida e transitada em julgado sua culpa; realmente, seria de doer nos olhos, lembrando conhecida expressão de Tourinho Filho;
b) De inconciliável coexistência a regra que admite a prisão temporária com outra que, em sobrevindo condenação, autorize a liberdade mediante substituição da pena carcerária por restritiva de direitos; suficiente examinar a natureza dos crimes em que é a temporária permitida para comprovar-se a excepcionalidade da medida, que só se justifica, como prisão para averiguações, devido à gravidade dos delitos homicídio doloso, seqüestro, cárcere privado, roubo, extorsão, extorsão mediante seqüestro, estupro; atentado violento ao pudor, rapto violento, epidemia com resultado de morte, envenenamento de água potável, substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte, quadrilha ou bando, genocídio e contra o sistema financeiro;
c) De inconciliável coexistência a norma que impõe o mais grave regime de cumprimento da pena privativa de liberdade previsto na legislação brasileira com outra que autorize, aos mesmos destinatários daquele rigor, a substituição da prisão por restritiva de direitos;
d) Contraditório possa o agente merecer a restritiva de direitos, como substituição a privativa de liberdade, porque seu fato se encaixaria nas regras destinadas aos delitos de menor lesividade, próprios da substituição, e, no caso de descumprimento da pena substituta, deva cumprir a pena substituída em regime integralmente fechado;
e) Incompatível norma concessiva de tamanha benesse em favor de agente de crime constitucionalizado e que pela Carta Maior foi erigido como de elevada lesividade e considerado merecedor de significativa severidade em termos de reação penal (7);
f) De notar que o inc. III do art. 44 do CP requer que a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias, indiquem a suficiência da substituição; à luz do regramento jurídico dos hediondos e assemelhados, em expressa disposição, os imperativos de prevenção geral e especial não se comprazem com meras restrições de direitos, sendo a prisão a justa e adequada resposta;
g) Finalmente, In toto juri generi per speciem derogatur, et ilud potissimum habetur quod ad speciem directum ets – "em toda a disposição de Direito, o gênero é derrogado pela espécie, e considera-se de importância preponderante o que respeita diretamente à espécie" (Papiano, apud Digesto, liv: 50, tit. 17, frag. 80) (8).
11. O juiz, o promotor e o advogado, principais personagens do processo de aplicação da lei penal, que têm diante de si um sistema de Direito, não o podem receber apenas como concatenação lógica de proposições. Devem sentir que existe algo de subjacente ao sistema jurídico, que são os fatos sociais aos quais está ligado um sentido ou um significado que resulta dos valores, em um processo de integração dialética, que implica ir do fato à norma e da norma ao fato. As normas não são todo o fenômeno jurídico, mas apenas os momentos culminantes de um processo.