Com o advento da Lei n. 9.714/98, ampliando as espécies e possibilidades de sanções substitutivas previstas no artigo 44, do Código Penal (mesmo porque se procurou prosseguir com a reforma penal prevendo introdução de novas medidas sancionatórias benéficas previstas na já longínqua Exposição de Motivos à Lei n. 7.209/84), muito se tem discutido acerca da possibilidade de sua aplicação aos crimes definidos como hediondos na Lei n. 8.072/90, e aos a eles equiparados, como os denominados de tráfico ilícito de entorpecentes.
Sabe-se que na atividade de aplicação da lei penal "o Poder Judiciário deve efetivar os princípios e as regras visando a realização do Direito e a prática da Justiça" (1).
O texto constitucional, norma fundamental e sustento de validade de todo o ordenamento pátrio, deve ser analisado sistematicamente, cotejando-se seus artigos e seus significados para, então, extrair-se as conseqüências jurídicas dele advindas, garantindo-se, sempre, os valores supremos que orientam o Estado Democrático de Direito: exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça (preâmbulo da CF).
A violação de "um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não só a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, por que representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendendo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda estrutura nela esforçada" (2).
Nesse vértice, o magistrado como membro de um Poder e, como tal, representante do próprio Estado, deve observar e garantir, primordialmente, os valores e princípios norteadores da Carta Magna, dela destacando-se a garantia de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei (art. 5º, II), e que não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (art. 5º, XXXIX).
A pena, inserida nos dispositivos constitucionais citados, é usada em sentido amplo, significando não só aquela sanção imposta pela prática de conduta tipificada como crime, mas também reprimenda aplicada ao indivíduo que descumpre qualquer outro preceito legal, seja civil, administrativo, etc..
Quanto às penas decorrentes da prática de crimes, não custa lembrar que a Carta Magna elenca no art. 5º, XLVI, o rol daquelas que a lei individualizará, dentre outras: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.
O Código Penal, por sua vez, como lei geral, em simetria com o comando constitucional, dividiu-as em privativas de liberdade, restritivas de direitos, e multa (art. 32), regulou a forma de imposição e substituição e ditou as regras básicas pelas quais deverão ser executadas (a especificação da execução está na Lei de Execução Penal), destacando-se que são reprimendas distintas e autônomas, possuindo, cada qual, características próprias e diferenciadas entre si.
A nova redação do art. 44, do Código Penal, advinda com a Lei n. 9.714/98, fixa requisitos objetivos e subjetivos para substituição da pena privativa de liberdade pelas restritivas de direito (alcunhadas doutrinariamente de "penas alternativas"), tendo-se como condições objetivas, que sempre deverão ser cumpridas: a) pena inferior ou igual a 4 (quatro) anos, se o crime for doloso; b) crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa; c) réu não reincidente em crime doloso.
No tocante à reincidência, cumpre observar que, agora, havendo condenação anterior transitada em julgado por crime doloso mas não se tratando de reincidente específico, ainda assim poderá obter a substituição desde que presente um elemento subjetivo adicional: "a medida seja socialmente recomendável" (§ 3º, art. 44).
Mas o requisito subjetivo que deverá sempre ser observado para determinação da substituição, reside no exame da suficiência desta operação, verificada a partir da análise dos seguintes elementos: a) culpabilidade, b) antecedentes, c) conduta social e a personalidade do condenado, d) motivos e as circunstâncias e do crime.
Expressamente prevista no Código Penal (derivada do comando constitucional), a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos não se subordina ao cumprimento ou preenchimento de quaisquer outros requisitos que não sejam aqueles já enumerados, sendo certo que as normas fixadas neste diploma legal, como lei geral, são aplicáveis aos fatos incriminados em leis especiais, se estas não regularem a matéria dispondo de forma diversa (art. 12, do CP).
Este dispositivo (art. 12, CP) não suscita qualquer dúvida, tendo a doutrina assentado, com firmeza:
"A essas leis, a menos que disponham de forma diferente, aplicam-se as regras gerais do Código Penal, não apenas as contidas em sua Parte Geral, como também as que se encontram na Parte Especial, como a que conceitua funcionário público, por exemplo (art.327)" (3).
DAMÁSIO E. DE JESUS já comentou, incisivamente, na mesma linha:
"Regras gerais do Código são as normas não incriminadoras, permissivas ou complementares, previstas na Parte Geral ou Especial. Em regra, estão contidas na Parte Geral, mas também podem estar descritas na Especial (ex: conceito de funcionário público - art. 327). Por outro lado, a legislação especial, conjunto de leis extravagantes, também pode conter regras gerais diversas das do Código. Neste caso, prevalecem aquelas. Em caso contrário, quando a lei especial não ditar regras gerais a respeito dos fatos que descreve, serão aplicadas as do Código". (4)
O Min. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, em voto proferido no Superior Tribunal de Justiça, também lecionou, com sua lógica objetiva:
"O Direito Penal é sistema (conjunto de normas vinculadas a princípios comuns). O Código Penal, por sua vez, o texto básico. Daí, com razão, ser denominado Direito Penal Fundamental. Aplicam-se suas regras a todo o Direito Penal, salvo se norma especial dispuser em sentido contrário" (5).
Pois bem, a Lei n. 8.072/90, que é especial, não só definiu os crimes hediondos e seus equiparados, dentre eles o tráfico ilícito de entorpecentes e, no pertinente às sanções penais (inclusive nela aumentadas), como proibiu expressamente a concessão de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória, acrescentando que o cumprimento da pena privativa de liberdade imposta deverá se dar em regime integralmente fechado (art. 2º, I, II e §1º), nada dispondo quando à impossibilidade ou incompatibilidade de substituição da pena de prisão por restritiva de direitos.
Desse modo, diante da omissão da lei especial (que não pode ser entendida como "lacuna" no processo de auto-integração da lei, como lecionou WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO (6) ), as regras gerais do Código Penal referentes à aplicação e dosimetria da pena, inclusive as atinentes à substituição das penas privativas por restritivas de direito, são aplicáveis (RSTJ, 19/491) aos crimes de que trata a Lei n. 8.072/90 (claro excluídos aqueles praticados mediante violência ou grave ameaça à pessoa), com as ressalvas explícitas contidas no art. 2º, I, II e § 1º, porque nestas a "norma especial afasta a incidência da norma geral" (7).
A previsão na lei especial de regime integralmente fechado em nada impede a possibilidade de substituição da pena de reclusão pelas restritivas de direito, porquanto tratam-se de coisas distintas e independentes entre si, de exame sucessivo no art. 59, do CP, pois a viabilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito deve ser verificada obrigatória e subseqüentemente, de ofício (inciso IV), somente após quantificada aquela e fixado seu regime (inciso III).
A propósito, recentemente decidiu-se no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que a seqüência legal prevista do art. 59, do CP, deve ser observada quando da aplicação da pena, "ou seja, após quantificá-la observando as três fases exigidas pelo art. 68, do CP, o juiz deve fixar o regime inicial de seu cumprimento (inciso III c/c art. 111, da LEP) para, depois examinar obrigatoriamente, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, a substituição por outra espécie de pena, se cabível (inciso IV); o exame sobre a possibilidade de concessão do sursis somente ocorre após verificar não ser indicada ou não cabível a substituição anterior (CP, art. 77, inciso III)" (8).
Neste ponto invoca-se novamente a doutrina de DAMÁSIO E. DE JESUS quando afirma, sobre o tema, diante da lei nova:
"As penas alternativas não são absolutamente incompatíveis com os delitos previstos na Lei dos Crimes Hediondos. São admissíveis em alguns casos. Cremos que não se apresenta como obstáculo o disposto no art. 2°, § 1°, da Lei n. 8.072/90, que disciplinou os delitos hediondos e deu outras providências, segundo o qual a pena deve ser executada integralmente em regime fechado. De ver-se que as penas alternativas constituem medidas sancionatórias de natureza alternativa, nada tendo que ver com os regimes de execução. Estes são próprios do sistema progressivo. De maneira que o juiz tem dois caminhos: se impõe pena privativa de liberdade por crime hediondo, incide a Lei n. 8.072/90; se a substitui por pena alternativa, não fala-se em regimes (fechado, semi-aberto e aberto). Nesse detalhe, a Lei de Crimes Hediondos disciplina a "execução da pena privativa de liberdade", não se relacionando com os pressupostos de aplicação das penas alternativas. Encontramos parâmetro no sursis, que também admite, em tese, sua incidência nos delitos hediondos, como vem entendendo a jurisprudência, embora não unânime. Como já dissemos, a execução da pena imposta em face do crime hediondo, presentes seus pressupostos objetivos e subjetivos, não é incompatível com o sursis. Ex.: tentativa de atentado violento ao pudor com violência imprópria, imposta a pena mínima de dois anos de reclusão. Não impede o disposto no art. 2°, § 1°, da Lei n. 8.072/90, segundo o qual a pena deve ser executada integralmente em regime fechado. Ocorre que o sursis constitui uma medida penal sancionatória de natureza alternativa, não se relacionando com os regimes de execução. Nesse sentido: ANTÔNIO SCARANCE FERNANDES, Considerações sobre a Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, crimes hediondos, RT, 660:266; CLÁUDIA VIANA GARCIA, A Lei n. 8.072/90 e o sursis: possível a concessão?, Boletim do IBCCrim, São Paulo, maio 1997, 54:8; TJSP, HC 112.809, RT, 676:298; TJSP, ACrim 112.837, JTJ, 134:417 (tentativa de estupro); TJSP ACrim 166.011, 3ª Câm. Crim., j. 27-6-1994, JTJ, 161:311; TJSP ACrim 153.487, rel. Des.Canguçu de Almeida, RT, 719:391; STJ, REsp 91.851, 5ª T., RT, 739:572. Contra: STJ, REsp 60.733, 5ª T., DJU, 12 jun. 1995, p.17637; STJ, REsp 91.852, 6ª T., DJU, 5 maio 1997, p. 17197. A argumentação referente ao sursis é aplicável ao tema das penas alternativas. Contra, no sentido de que, cuidando-se de crimes hediondos, é inadmissível a aplicação do sistema vicariante: CÉZAR ROBERTO BITENCOURT e LUIZ RÉGIS PRADO, Código Penal anotado, 2. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais (no prelo)" (9).
Ademais, o fato de a pena privativa de liberdade ser cumprida integralmente em regime fechado será um reforço adicional e estímulo para que o condenado cumpra e observe o regramento da pena restritiva, pois esta será convertida naquela se houver o seu descumprimento (art. 44, §4º, do CP).
Embora possa existir disparidade entre a situação do condenado a cumprir uma pena privativa de liberdade integralmente em regime fechado e a condição daquele que obtém substituição por "pena alternativa", tal distinção é natural e facilmente justificável, posto que, na prática, diversas são as formas das ações criminosas, tendo, cada uma delas, graus de reprovabilidade social diferenciadas.
Assim, o agente que, por uma única vez buscou, em situação que caracteriza crime de tráfico de entorpecentes, uma forma talvez desesperada de sustentar seu vício, merece reprimenda completamente diferente daquele que se revela grande traficante e fornece quilos ou até toneladas de substâncias estupefacientes a pessoas dependentes, pratica violência, alicia crianças para o mundo das drogas e envolve outras pessoas ("mulas, "olheiros, e etc...) para a prática de diversos ilícitos, com intuito lucrativo e para manter sua impunidade.
Torna-se evidente, portanto, que enquanto ao primeiro deve ser aplicada pena que permita sua plena ressocialização e tratamento, inclusive evitando-se sua contaminação com o ambiente deletério da prisão com a promiscuidade maligna com os demais criminosos, ao segundo, narcotraficante repulsivo movido pelo lucro fácil, a sanção deve ser firme e contundente, com cunho repressivo e preventivo, exemplarmente dissuadindo a entrada de outras pessoas no mundo do crime.
Daí revelar-se como oportuna a aplicabilidade das novas sanções aos crimes em comento, com rígida observância do requisito subjetivo incluído pelo legislador no inciso III, do art. 44, do CP, cabendo ao sentenciante análise da suficiência da substituição da prisão pelo cumprimento de pena "alternativa", com o que poderão ser evitadas injustiças que derivaram da lei na forma anterior, quando o pequeno e infeliz usuário flagrado em situação de tráfico era apenado com a mesma sanção que seria imposta ao grande traficante.
Importante trazer mais uma vez a opinião do mestre DAMÁSIO E. DE JESUS, também em comentários à nova lei geral:
"Tráfico de drogas. Admite, em tese, a imposição de penas alternativas, tendo em vista que a pena mínima cominada nos arts. 12, 13 e 14 da Lei n. 6.368/76 é de três anos de reclusão. Nesse sentido, pronunciamento do Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Dr. Luiz Antônio Guimarães Marrey, criticando a lei nova por se aplicar à hipótese (Folha de S. Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo, edição de 25 de novembro de 1998). O tratamento mais leve, entretanto, condiciona-se à presença das circunstâncias pessoais e objetivas, estas referentes à gravidade do crime, previstas nos incisos II e III do art. 44 do CP" (10).
Por outro lado, revela-se insustentável o argumento contrário à aplicabilidade das penas alternativas especificamente para os crimes de tráfico de entorpecentes quando invoca que estes, por serem equiparados a hediondos, não podem ser considerados de menor gravidade e que somente estes delitos mereceriam a aplicação de penas "alternativas", diante da "mens legis" motivadora da Lei n. 9.714/98 (em sua exposição de motivos menciona-se direção até crimes de média gravidade).
É que, a distinção entre crime hediondo ou de especial gravidade com o crime de média gravidade ou mesmo de menor potencial ofensivo não se encontra escrita de forma expressa nem mesmo implícita, no texto ou sequer na ementa da lei (e ementa não faz parte do comando normativo); ao contrário, na Lei n. 9.714/98 foram definidos os critérios legais para aferição da possibilidade de operar-se a substituição de forma geral, sem ressalva à classificação do crime por sua gravidade ou potencialidade lesiva (salvo aqueles praticados com violência ou grave ameaça à pessoa).
Assim, se a Lei n. 9.714/98 não vedou expressamente a aplicação de penas alternativas aos crimes de especial gravidade, aos hediondos e equiparados, então o intérprete não poderá fazê-lo por conta própria, pois o princípio da legalidade insculpido no texto constitucional garante ao cidadão que o Estado não lhe aplicará sanção que não esteja amparada em lei anterior que a comine, valendo invocar a máxima "ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus", ou seja, se a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir, especialmente quando esta distinção resultará fatalmente em prejuízo ao réu.
O princípio da legalidade, também conhecido como da reserva legal ou da anterioridade da lei penal, advindo do enunciado formulado por ANSELMO FEUERBACH - nullum crimem, nulla poena sine praevia legem -, consagrado no art. 1º, do Código Penal e constitucionalizado no art. 5º, incisos XXXIX e XL, da Constituição Federal de 1988, garante descrição específica, individualizadora e prévia de condutas e sanções na lei federal (só a União pode legislar direito penal), não bastando simples referência ao bem juridicamente tutelado, nem descrição genérica.
O tipo expresso exerce função de garantia, e esta "só se justifica, do ponto de vista material, desde que especifique a conduta-infração penal. A generalidade é insuficiente. Não alcança a finalidade, para concretamente registrar a garantia ínsita à prévia descrição do comportamento ilícito penal, como bem escreveram os doutos Min. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO e Prof. PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR (11); a seguir sentenciam os grandes penalistas contemporâneos:
"A descrição genérica enseja, ao intérprete, liberdade ainda maior. Consequentemente, perigosa. Fragrantemente oposta ao mandamento constitucional. O crime não é qualquer ação, mas ação determinada. E determinada na lei".
A questão tem, assim, resposta certa, clara e cristalina:
A substituição da pena privativa de liberdade, uma vez preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos previstos no art. 44 e incisos do Código Penal, é direito público subjetivo do réu, ainda mais por se tratar, inegavelmente, de medida sancionatória mais benéfica, sabido que as normas que excluem ou privam direitos e garantias individuais devem ser interpretadas restritivamente e consoante reserva legal.
Mas, há outro fundamento constitucional amparador do princípio da legalidade com previsão de tipo penal fechado e expresso -, que consiste na garantia da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III), vale dizer, o direito à liberdade individual só pode suportar ameaça diante da necessidade de tutela de outro bem jurídico concreto, não se devendo permitir haja intervenção estatal na liberdade da pessoa com uma simples "presunção legal" de que a Lei n. 9.714/98, diante da omissão de texto expresso vedando sua incidência aos crimes hediondos ou a eles equiparados, não permitiria tal abrangência porque sua exposição de motivos exclui crime de maior gravidade, sob pena de inversão da ordem jurídica e transformar em tábula rasa o espírito e o texto da Carta Maior, que tem na dignidade da pessoa humana um de seus pilares.
Assim temos: é flagrantemente inconstitucional o argumento de que o novo sistema de penas substitutivas advindo com a Lei n. 9.714/98, não se aplica aos crimes de maior gravidade, hediondos e a estes equiparados, como tráfico ilícito de entorpecentes, simplesmente porque sua exposição de motivos não os inclui ou porque haveria incompatibilidade com o regime integralmente fechado. Ora, quisesse proibir, a lei o teria feito.
Mas, ainda que fosse dúbia a interpretação do novo texto legal e seu exato sentido, a solução não poderia ser diferente daquela ministrada pelo festejado DAMÁSIO E. DE JESUS quando, analisando à exaustão o tema da interpretação da norma penal, demonstra:
"Que fazer quando, apesar do trabalho hermenêutico, mediante cuidadosa interpretação literal e lógica, persiste a dúvida quanto à vontade da norma? Abrem-se três caminhos ao intérprete: 1º) admitir que dúvida deva ser resolvida contra o agente (in dubio pro societate); 2º) admitir que seja resolvida contra o agente ou contra a sociedade, segundo o livre convencimento do intérprete; 3º) resolver a questão da forma mais favorável ao agente. Em outros termos, se a vontade da lei não se torna nítida, se não chegar o juiz a saber se a lei quis isso ou aquilo, ou se nem ao menos consegue determinar o que ela pretendeu, deverá seguir a interpretação mais favorável o réu (desde que usados todos os meios interpretativos). A terceira solução é adotada por nós" (12).
Nem se diga que, em se tratando de crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, o verbete n. 171 da Súmula do colendo Superior Tribunal de Justiça tenha força de impedir a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito, pois tal enunciado nega, sim, substituição da prisão por multa quando a lei especial comina estas penas cumulativamente; decisão resultante do lógico argumento de que é impossível ao magistrado suprir uma pena trocando-a por outra quando o legislador expressamente determinou a aplicação de ambas, o que é circunstância completamente diversa daquela em que são aplicadas penas pecuniária e privativa de liberdade, substituindo-se somente esta por uma restritiva de direito.
Bem por isto, anteriormente à Lei n. 9.714/98, diante da ausência de proibição expressa na Lei n. 8.072/90, já se concedia a suspensão condicional da execução da pena (sursis) aos condenados por crime hediondo mesmo que praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, como nos casos de estupro na modalidade tentada (quando a pena ficava no patamar de dois anos de reclusão), valendo lembrar que no colendo Superior Tribunal de Justiça já se o admite pacificamente (vide RSTJ, 109/306, citando RTJSP 134/417; RT 676/298 e RT 719/312.), destacando-se precedente recentíssimo, no HC n. 7919/SP (98/0063715-0), rel. Min. Félix Fischer, publicado no DJU de 22.02.99, p. 00114:
"PENAL E PROCESSUAL PENAL. "HABEAS CORPUS" SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ESTUPRO TENTADO. AUMENTO DO ART. 9º DA LEI Nº 8.072/90. "SURSIS".
"I - O acréscimo de pena previsto no art. 9º da Lei nº 8.072/90 somente se aplica na eventualidade de lesão corporal grave ou morte. Precedentes.
"II - Desde que preenchidos os requisitos legais, a serem verificados via de cognição mais ampla, o "sursis" pode ser concedido em caso de ilícito penal qualificado de hediondo. Precedentes".
No Tribunal de Justiça de Santa Catarina também já se decidia neste sentido (Apelações Criminais ns. 33.175, de São Carlos, rel. Des. Álvaro Wandelli - j. em 28.8.95, in DJ n. 9.355, de 10.11.95, p. 12 - e 97.003588-8, de Mafra, rel. Des. Amaral e Silva - j. em 10.6.97).
Especificamente em crimes contra a saúde pública, na espécie tráfico ilícito de entorpecentes, para que não se diga da inexistência de precedente, não fossem os argumentos já expendidos, registra-se valioso julgado concessivo de sursis em rara hipótese de reconhecimento de tentativa (com o que a pena ficou em quantum que admitia a suspensão trazendo a obrigação de ser examinada sua concessão ou não), da lavra do eminente Des. José Roberge, com a seguinte ementa:
"CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA. ARTIGO 12, PARTE FINAL (ADQUIRIR SEM AUTORIZAÇÃO OU EM DESACORDO COM A DETERMINAÇÃO LEGAL OU REGULAMENTAR) DA LEI DE TÓXICOS. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS.
"Tentativa. O réu exauriu os atos de execução, e não meros atos preparatórios, não chegando ao seu final, por circunstâncias alheias a sua vontade, haja vista que o destinatário que seria mera peça no esquema, assustado com a quantidade do remédio e a qualidade, comunicou à polícia.
"Recurso pretendendo a absolvição, ou, alternativamente, a desclassificação do delito para estelionato na sua forma tentada. Impossibilidade. Incabível a desclassificação pretendida, pois a verdadeira intenção do agente, não era obter vantagem em prejuízo de outrem, mas sim, o fornecimento, sem nota fiscal, dos medicamentos controlados pelo Ministério da Saúde, evitando a fiscalização.
"Concessão do sursis. Admissibilidade. A lei que define o crime hediondo não inibe a concessão do benefício. Não se pode dar interpretação extensiva, a refletir analogia in malam partem, de forma a afligir a situação do condenado. O que o dispositivo em análise veda é a anistia, a graça, o indulto e a progressão de regime, mas não o sursis. Se tal fosse, estaria explícito na redação do texto legal, não se podendo dar a ele uma interpretação virtual" (Ap. Criminal n. 33.846, de São José, j. 16.04.96).
Do corpo do acórdão traz-se a fundamentação garantista do benefício por falta de proibição expressa na norma incriminadora, aplicável como luva à hipótese em exame:
"No que pertine à concessão do benefício do "sursis", esclarece-se que o recorrente foi condenado por infração ao artigo 12, porém na sua forma tentada. Conforme salienta o doutor Maurílio Moreira Leite, em seu parecer " "..embora exista corrente asseverando a impossibilidade da tentativa nos crimes definidos no artigo 12, o contrário já vem sendo afirmado, conforme VICENTE GRECO FILHO: "Consumação e tentativa. Como vimos, consuma-se o delito com a prática de uma das ações previstas no tipo. Alguns atos de execução, eventualmente caracterizadores da tentativa, são por si mesmos, condutas igualmente puníveis, daí ser difícil a existência da forma tentada. O conatus, porém, em princípio, não está nem lógica nem juridicamente, excluído, dependendo da análise do caso concreto" (Tóxicos - Prevenção - Repressão; Editora Saraiva 1993, p. 91). E o caso concreto diz bem da possibilidade aventada, porquanto o réu exauriu os atos de execução que lhe diziam respeito, somente não chegando ao seu final por circunstâncias alheias a sua vontade, haja vista que o ´destinatário´ que seria mera peça no esquema, assustado com a quantidade de remédio e sua qualidade, comunicou o fato à polícia.
"Por último, data venia ao entendimento do ilustre Procurador de Justiça, o sursis é de ser concedido. Satisfeitos os pressupostos subjetivos e objetivos do artigo 77 e seus itens, do Código Penal, não é o disposto no artigo 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90, óbice a sua concessão: ´A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado´. Sem qualquer filiação, a alegada inconstitucionalidade do dispositivo, devidamente improcedente, tantas vezes proclamada pelas Cortes Superiores, a razão está simplesmente na não vedação da concessão do sursis no dispositivo em questão.
"É que ´não existe qualquer norma penal que defina a possibilidade da concessão ou não do benefício em decorrência da classificação do crime cometido´. Assim, a lei que define o crime hediondo não inibe a concessão do sursis. Não se pode dar, in casu, interpretação extensiva, ´a refletir analogia in malam partem, de forma a afligir a situação do condenado. Tal se mostra intolerável perante um sistema que prestigiou sensivelmente a presunção de inocência e a plenitude da defesa, razão pela qual, a teor do disposto no artigo 697, do Código de Processo Penal, deve o juiz se pronunciar a respeito da concessão do sursis´. (Renato Nalini - RT 676/298). O que o dispositivo em análise veda é a anistia, a graça, o indulto e a progressão de regime, mas não o sursis. Se tal fosse, estaria explícito na redação do texto legal, não se podendo dar a ele uma interpretação virtual. O regime, até que ultime a sentença, com seu total cumprimento, é o fechado, o que significa dizer que se as condições que forem impostas não restarem devidamente cumpridas, resultando rescindido o sursis, o réu será recolhido ao regime fechado".
Por fim há que se justificar mais duas situações:
- Anteriormente à Lei n. 9.714/98 não se cogitava da substituição da pena privativa de liberdade nos crimes hediondos e tráfico ilícito de entorpecentes por pena restritiva de direitos e chegava-se apenas ao sursis porque, na melhor hipótese, somente se alcançavam às situações antes enfocadas, quando as penas totalizavam até 2 (dois) anos, isto em face da causa especial de diminuição da tentativa, sabido que o limite para substituição era de até 1 (um) ano nos casos de crimes dolosos (nunca se examinou porque o limite da pena nunca permitiu).
- Nada se alterará em casos de prisão em flagrante com a proibição de liberdade provisória, ao argumento de que seria injusta a manutenção do preso quando, na perspectiva de condenação poderia ser agraciado com a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas, porquanto os institutos têm pressupostos distintos e, enquanto não há sentença, a pena possível será de até 15 anos de reclusão, fora do limite permissivo. Não fosse isto, sempre há possibilidade de "mutatio libelli" antes da sentença.
Por todos estes motivos, a conclusão lógica e irrefutável: em crimes hediondos ou a ele equiparados, como tráfico ilícito de entorpecentes, é cabível a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito, não existindo qualquer outra vedação legal à sua concessão, sendo direito público subjetivo do réu a substituição da pena quando lhe for mais benéfica, desde que preenchidos todos os requisitos estipulados pelo art. 44 do CP, com a nova redação dada pela Lei n. 9.714/98, especialmente os subjetivos contidos no inciso III, do dispositivo, devendo-se avaliar e interpretar se, não obstante a substituição, a pena imposta mostra-se suficiente à repressão e à prevenção genérica do crime (estas conclusões foram acolhidas, por unanimidade, pela Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de SC, na Ap. Criminal n. 99.002222-6, da Capital, j. em 20.04.99).
NOTAS
- DOTTI, René Ariel, A Retroatividade da Lex Mitior e o Critério da Combinação de Leis", apud JUSTIÇA PENAL, vol. 5, p. 344).
- BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de Direito Administrativo, 5ª ed., p. 451).
- BASTOS JÚNIOR, Edmundo José de, Código Penal em Exemplos Práticos, Florianópolis: Ed. Terceiro Milênio, 1998, p. 30).
- JESUS, Damásio E. de, Direito Penal, v. 1, 13ª ed., SP: Saraiva, 1988, p. 127-128.
- REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Ed. Brasília Jurídica, v. 88, p. 298.
- MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil, Parte Geral, 17ª ed., SP:Saraiva, 1978, p. 38).
- TOLEDO, Francisco de Assis, Princípios Básicos de Direito Penal, 4ª ed., SP: Saraiva, 1991, p. 51).
- Ap. Criminal n. 99.002676.0, de Itajaí, j. em 13.4.99, rel. Nilton Macedo Machado.
- JESUS, Damásio E. de, Penas Alternativas. SP: Saraiva, 1999, p. 95/96.
- Idem, ob. cit., p. 89/90.
- (Direito Penal na Constituição, 2ª ed., SP: RT, 1991, p. 16 e 17
- JESUS, Damásio E. de, Direito Penal, 14ª ed., SP: Saraiva, 1990, v. 1, p. 37).