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A eficácia negativa do princípio da proteção à confiança e sua aplicação como um fator limitativo ao exercício da autotutela administrativa.

Uma análise do art. 54 da Lei nº 9784/99

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4 O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA E SUA APLICAÇÃO COMO FATOR LIMITATIVO À AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA.

4.1 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE APLICADO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

A atuação da Administração Pública vinculada aos estritos limites da lei (sob a égide do princípio da legalidade) é, sem dúvida, a lição mais básica e essencial do Direito Administrativo. Há de haver uma atividade administrativa norteada pelo princípio da legalidade. E, realmente, à luz de nosso ordenamento jurídico e principalmente da Constituição Federal (artigo 37, caput), não poderia ser de outra forma, haja vista que uma atuação estatal pautada na legalidade significa um agir com limites e previsibilidade, em consonância, inclusive, com a própria noção de segurança jurídica, ínsita ao Estado de Direito.

Com efeito, Celso Antônio Bandeira de Melo identifica o princípio da legalidade como o princípio essencial para a configuração do regime jurídico-administrativo, vinculado direta e especificamente ao Estado de Direito:

Este [o princípio da legalidade] é o princípio capital para a configuração do regime jurídico-administrativo [...] enquanto o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é da essência de qualquer Estado, de qualquer sociedade juridicamente organizada com fins políticos, o da legalidade é específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá identidade própria. Por isso mesmo é o princípio basilar do regime jurídico-administrativo, já que o Direito Administrativo (pelo menos aquilo que como tal se concebe) nasce com o Estado de Direito: é uma conseqüência dele. [...] (MELLO, 2005, p. 90-91).

No mesmo sentido argumenta José dos Santos Carvalho Filho:

O princípio da legalidade é certamente a diretriz básica da conduta dos agentes da Administração. Significa que toda e qualquer atividade administrativa deva ser autorizada por lei. Não o sendo, a atividade é ilícita. Tal postulado, consagrado após séculos de evolução política, tem por origem mais próxima a criação do Estado de Direito, ou seja, do Estado que deve respeitar as leis que edita. (CARVALHO FILHO, 2006, p.16).

Nesse passo, convém, desde logo, esclarecer que na presente pesquisa não se pretende a formular crítica em desprestígio ao princípio da legalidade administrativa (em si mesmo considerado), e nem tampouco questionar sua normatividade e gênese constitucional ou, sequer, pô-lo sob algum tipo de "suspeição"; ao revés, é incontroversa a sua relevância para o denominado Estado de Direito.

De outra forma, a questão que se revela e que se apresenta essencial ao desenvolvimento das idéias aqui defendidas é a forma de aplicação que vem sendo dada ao princípio da legalidade na Administração Pública. Mais especificamente, diz respeito à incorreta noção, por vezes enraizada em nossa cultura jurídica, segundo a qual a legalidade administrativa (e por via de conseqüência a autotutela administrativa) teria aplicação irrestrita e até mesmo "imponderável". Vale dizer que, sob tal ótica, o princípio da legalidade aplicado à administração pública representaria um princípio quase absoluto, apesar de nem a doutrina e nem a jurisprudência ousarem assim qualifica-lo.

Cumpre trazer, acerca destes aspectos, a lição de Rafael Maffini, para quem o princípio da legalidade administrativa representa um falso óbice à incidência do princípio da proteção à confiança:

[...] após o reconhecimento da legalidade administrativa enquanto valor nuclear do Direito Administrativo, seguiram-se momentos de delimitação científica, de compreensão de sua operatividade, bem como de uma hipertrofiada utilização deste princípio como valor absoluto no Direito Administrativo. Ora, não é dado olvidar que "princípio absoluto", consoante os hodiernos estudos de hermenêutica jurídica, consiste numa contradição de termos, porque se algo é princípio jurídico não pode ser considerado absoluto e, sendo absoluto, não se lhe pode reconhecer a feição de princípio. Justamente por isso [...] é que não se afigura adequado afirmar que o princípio da proteção da confiança não teria aplicabilidade no Direito Administrativo em face do princípio da legalidade. (MAFFINI, 2006, p. 64-65).

Quanto à supervalorização do princípio da legalidade no direito brasileiro, expressamente positivado no caput do artigo 37 da Constituição Federal, em detrimento do desenvolvimento de outros princípios, como o princípio da proteção à confiança, acrescenta Almiro do Couto e Silva:

No direito brasileiro, muito provavelmente em razão de ser antiga em nossa tradição jurídica a cláusula constitucional da proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada – pontos eminentes nos quais se revela a segurança jurídica, no seu aspecto objetivo – não houve grande preocupação na identificação da segurança jurídica, vista pelo ângulo subjetivo da proteção à confiança, como princípio constitucional, situado no mesmo plano de importância do princípio da legalidade. (SILVA, 2005, p. 09).

É de se registrar que, se por um lado, o princípio da legalidade, de uma maneira geral, afina-se com a idéia de segurança jurídica (confere previsibilidade e limites à atuação estatal, já que pautada em regras e princípios jurídicos previamente estabelecidos), por outro, sua aplicação, irrestrita, por vezes desmedida e exacerbada, resultará, por certo, em injustiça e afronta à segurança jurídica.

Consoante já fora registrado anteriormente, há de ser considerado que, apesar de ser imprescindível a idéia de um ordenamento jurídico pautado pela legalidade, na linha do que argumenta Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p.70), o reconhecimento de um Estado de Direito vai além da mera legalidade e da submissão do Estado à lei, representando princípio mais amplo, nos remetendo à idéia de reconhecimento dos direitos fundamentais, perfazendo verdadeiro limitador e, principalmente, legitimador da atividade estatal.

Dentro de tal contexto, considerando, sobretudo o reconhecimento (já inquestionável) acerca normatividade dos princípios, e de seu papel dentro do ordenamento jurídico, afigura-se imprescindível que, da mesma forma que não incumbe à Administração Pública agir à revelia da lei, a ela também não é permitido ignorar os comandos veiculados pelos princípios, notadamente pelos princípios constitucionais.

4.2 O PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA E SEU ÂMBITO DE APLICAÇÃO: NECESSIDADE DE RELATIVIZAÇÃO.

Interessa-nos, em especial, dois princípios de gênese, inegavelmente, constitucional: o princípio da proteção à confiança (cuja base assenta-se no princípio constitucional da segurança jurídica); e o princípio da autotutela administrativa (cuja base assenta-se, fundamentalmente, no princípio constitucional da legalidade administrativa).

Quanto ao princípio da proteção à confiança já foram formuladas, linhas atrás, as considerações necessárias à identificação de seu conteúdo jurídico e de sua gênese constitucional (feição subjetiva do princípio constitucional da segurança jurídica). Cumpre aferir, neste momento, quando de sua efetiva aplicação como um fator de limitação à autotutela administrativa; antes, contudo, faz-se necessário tecer algumas considerações acerca do princípio da autotutela administrativa.

Em linhas gerais, é possível se identificar a princípio da autotutela administrativa como sendo aquele princípio a partir do qual a Administração Pública teria o poder-dever de rever (de ofício) e anular seus próprios atos administrativos, quando houverem sido praticados com alguma ilegalidade. Funda-se, por conseguinte, no princípio constitucional da legalidade administrativa: se a Administração Pública só pode agir dentro da legalidade, é de se considerar que os atos administrativos eivados de ilegalidade devem ser revistos e anulados, sob pena de afronta ao ordenamento jurídico.

É bem verdade que a doutrina e a jurisprudência [12] identificam o princípio da autotutela administrativa também com a possibilidade de reexame de atos praticados pela própria Administração Pública no exercício de sua competência discricionária; vale dizer, reexaminando-os a partir do próprio mérito administrativo, podendo revogá-los por razões de conveniência e oportunidade.

Neste sentido, é a lição de José dos Santos Carvalho Filho:

[...] a autotutela envolve dois aspectos quanto à atuação administrativa: 1) aspectos de legalidade, em relação aos quais a Administração, de ofício, procede à revisão de atos ilegais; e 2) aspectos de mérito, em que reexamina atos anteriores quanto à conveniência e oportunidade de sua manutenção ou desfazimento. (CARVALHO FILHO, 2006, p.25, grifo nosso).

Contudo, dentro da delimitação temática ora proposta, apenas será analisado o princípio da autotutela administrativa no que toca à possibilidade de anulação, pela própria Administração Pública, de seus atos administrativos eivados de ilegalidade [13].

Dentro de tal contexto, importa considerar que, mais que um poder, o exercício da autotutela administrativa afigura-se como um dever para a Administração Pública; reitere-se, dever de rever e anular seus atos administrativos, quando ilegais. Conquanto tal poder-dever seja de índole constitucional (cuja base assenta-se, fundamentalmente, no princípio constitucional da legalidade administrativa), seu exercício não pode se dar de forma absoluta e irrestrita, porquanto a invalidação de atos administrativos não garante, por si só, a restauração da ordem jurídica. Quanto aos limites enfrentados pela Administração Pública no que diz com o poder de invalidar seus atos administrativos, assim expõe Weida Zancaner:

O princípio da legalidade, fundamento do dever de invalidar, obriga a Administração Pública a fulminar seus atos viciados não passíveis de convalidação. Só que a invalidação não pode ser efetuada sempre e indistintamente [...] Os limites do dever de invalidar surgem no próprio sistema jurídico-positivo, pois, como todos sabemos, coexistem com o princípio da legalidade outros princípios que devem ser levados em conta quando do estuda da invalidação. [...] como, por exemplo, o princípio da segurança jurídica, ou por serem protetores do comum dos cidadãos, como, por exemplo, a boa-fé, princípio que também visa protegê-los quando de suas relações com o Estado. (ZANCANER, 2001, p.60).

Nesse passo, faz-se imprescindível, no caso concreto, uma análise completa do ordenamento jurídico, a fim de se verificar a eventual incidência de algum outro princípio (como, por exemplo, o princípio da proteção à confiança), também de índole constitucional, de modo a desencadear a utilização da técnica da ponderação de interesses.

Com efeito, o exercício da técnica judicial da ponderação de interesses, a ser utilizada na resolução de casos concretos envolvendo conflitos entre princípios constitucionais não pode presumir a existência de uma ordem hierárquica de valores e bens resguardados por princípios constitucionais [14]. Tais princípios em conflito devem ceder, reciprocamente, apenas na medida suficiente e necessária para a melhor resolução do caso concreto. Tais considerações restaram bem esclarecidas por Karl Larenz, que assim lecionou ao enfrentar a temática concernente à colisão de princípios e normas mediante a ponderação de interesses:

[...] Os direitos, cujos limites não estão fiados de uma vez por todas, mas que em certa medida são abertos, móveis, e, mais precisamente, esses princípios podem, justamente por esse motivo, entrar facilmente em colisão entre si, porque a sua amplitude não está de antemão fixada. Em caso de conflito, se se quiser que a paz jurídica se restabeleça, um ou outro direito (ou um dos bens jurídicos em causa) tem que ceder até um certo ponto perante o outro ou cada um entre si. A jurisprudência dos tribunais consegue isto mediante uma ponderação dos direitos ou bens jurídicos que estão em jogo conforme o peso que ela confere ao bem respectivo na respectiva situação. Mas ponderar e sopesar é apenas uma imagem; não se trata de grandezas quantitativamente mensuráveis, mas do resultado de valorações que – nisso reside a maior dificuldade – não só devem ser orientadas a uma pauta geral, mas à situação concreta em cada caso. Que se recorra pois a uma ponderação de bens no caso concreto é na verdade, como se fez notar, precisamente conseqüência de que não existe uma ordem hierárquica de todos os bens e valores jurídicos em que possa ler-se o resultado como uma tabela.[...]. (LARENZ, 1997, p.575-576, grifo nosso).

Neste aspecto, a doutrina vem reconhecendo que, uma vez identificada a colisão entre dois valores constitucionais, caracterizada por um conflito constitucional de princípios, a solução seria possível a partir de uma técnica específica, que se baseia na análise do caso concreto de onde emergiu o conflito: a ponderação de interesses. Esta é a lição de Daniel Sarmento, um dos principais autores que tratou acerca do tema:

[...] a ponderação de interesses consiste justamente no método utilizado para a resolução destes conflitos constitucionais. Tal método caracteriza-se pela sua preocupação com a análise do caso concreto em que eclodiu o conflito, pois as variáveis fáticas presentes no problema enfrentado afiguram-se determinantes para a atribuição do ‘peso’ específico a cada princípio em confronto, sendo, por conseqüência, essenciais à definição do resultado da ponderação. A relevância conferida às dimensões fáticas do problema concreto, porém, não pode jamais implicar na desconsideração do dado normativo, que também se revela absolutamente vital para a resolução das tensões entre princípios constitucionais. Afinal, a Constituição é, antes de tudo, norma jurídica, e desprezar sua força normativa é desproteger o cidadão da sua garantia jurídica mais fundamental. (SARMENTO, 2003, p. 97-98).

Ainda sobre a ponderação de interesses, são relevantes os ensinamentos de Luís Roberto Barroso que, após identificar a ponderação como uma técnica de decisão jurídica destinada a resolução de hard cases, descreve a ponderação de interesses como um processo de três etapas (identificação das normas pertinentes, seleção dos fatos relevantes e atribuição geral de pesos, com a produção de uma conclusão):

A ponderação consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas.[...] Na primeira etapa, cabe ao intérprete detectar no sistema as normas relevantes para a solução do caso, identificando eventuais conflitos entre elas. [...] Na segunda etapa, cabe examinar os fatos, as circunstâncias concretas do caso e sua interação com os elementos normativos. [...] É na terceira etapa que a ponderação irá singularizar-se, em oposição à subsunção [...] nessa fase dedicada à decisão, os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve preponderar no caso. (BARROSO, Interpretação e aplicação da Constituição, 2004, p. 358-360).

De fato, no que tange, em específico, à necessidade de se conferir temperamentos à autotutela administrativa, afirma Rafael Maffini:

[...] merece relativização a idéia – de resto, retrógrada – de uma absoluta autotutela administrativa, pela qual as condutas administrativas perpetradas à revelia da ordem jurídica deveriam "sempre" invalidadas e "todos" os seus efeitos "sempre" desconstituídos. Uma noção assim irrestrita de autotutela administrativa significaria uma apriorística prevalência do postulado da legalidade, ao mesmo tempo que importaria uma direta e absoluta preterição de quaisquer outros valores não menos importantes contidos na ordem jurídica. Tal como a própria legalidade há de ser ponderada, impõe-se, pois, temperamentos à autotutela administrativa, os quais, ns mais das vezes, embasam-se no que atualmente há de se considerar como o princípio da proteção à confiança. (MAFFINI, 2006, p.126-127).

Em síntese, há de se reconhecer que o princípio da autotutela administrativa não tem aplicação irrestrita, merecendo, pois, em algumas hipóteses, ser relativizado, tendo como parâmetro limitador o princípio constitucional da proteção à confiança; em outros termos, há de haver um temperamento a ser efetivado nos casos concretos, analisando-os também sob a ótica da segurança jurídica e, por assim dizer, também da proteção à confiança legítima. É dizer que, nestes casos, a autotutela administrativa estaria limitada pelo princípio da proteção à confiança.

Nesse passo, considerando a incontestável matriz constitucional que caracteriza tanto o princípio da legalidade administrativa (e da autotutela administrativa) quanto o princípio da proteção à confiança, bem como a impossibilidade de se conceber um princípio (ainda que constitucional) como de aplicação absoluta, impõe-se reconhecer ser possível ponderá-los num caso concreto.

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O reconhecimento de tal possibilidade, contudo, afigura-se apenas como um ponto de partida. Avançando, impõe-se perquirir sobre que fundamentos e em que condições haveria possibilidade de, em um caso concreto, o princípio da autotutela administrativa ceder à aplicação do princípio da proteção à confiança, de modo a ensejar a manutenção, no ordenamento jurídico, de atos administrativos reconhecidamente inválidos, sem que, com isso, se repute ter havido afronta ao princípio constitucional da legalidade. Mais especificamente, cumpre identificar sobre que fundamentos e em que condições tais atos poderiam continuar a produzir efeitos para aqueles que deles se beneficiaram.

Decerto que, sob uma ótica geral, é possível até mesmo se conceber que a regra, dentro da Administração Pública, é a observância do princípio da autotutela administrativa, em atendimento ao princípio constitucional da legalidade. Em vista disso, a configuração de uma expectativa tida por legítima por parte de algum administrado, de modo a ensejar a aplicação do princípio da confiança em seu favor, afigura-se como uma situação excepcional; há de haver uma nota de atipicidade, de excepcionalidade, a fim de que se possa vislumbrar a possibilidade de aplicação do princípio da proteção à confiança.

Nestes termos, por óbvio que não é dado ao administrador público assumir uma postura pautada na constante violação ao princípio da legalidade, notadamente fundamental ao regime jurídico-administrativo, sob o argumento de que estaria por "ponderá-lo" nos diversos casos em que se defrontasse com atos administrativos eivados de ilegalidade. Por conseguinte, há de se ter em mente que a possibilidade de se reconhecer, em alguns casos, limitação à autotutela administrativa a partir do princípio da proteção à confiança, não implica em se conferir "carta branca" ao administrador público para que discricionariamente e, até mesmo, arbitrariamente, admita a permanência de atos ilegais produzindo efeitos no ordenamento jurídico.

A problemática que se revela quando se está a confrontar o princípio da legalidade com o princípio da proteção à confiança é que, enquanto o primeiro (princípio da legalidade administrativa) não apresenta maiores complexidades em seu conteúdo essencial, estando expressamente previsto no texto constitucional (artigo 37, caput, CF) e já exaustivamente identificado e reverenciado pela doutrina e pela jurisprudência, o segundo (princípio da proteção à confiança) apresenta-se um princípio constitucional implícito, interligando-se diretamente ao princípio da segurança jurídica e, indiretamente, à noção de Estado de Direito [15].

Com efeito, não é demais relembrar que a própria noção de confiança (e segurança) nos remete ao âmbito dos conceitos indeterminados ou, ao menos, insuficientemente determinados. A esse respeito leciona Manuel A. de Castro Portugal Carneiro da Frada:

[...] a confiança não é, em Direito, um tema fácil. As dificuldades que ele coloca transcendem em muito a necessidade de delimitação do seu âmbito, já de si problemática. Não existe nenhuma definição legal de confiança a que possa socorrer-se e escasseiam-se referências normativas explícitas a propósito. O seu conceito apresenta-se fortemente indeterminado pela pluralidade ou vaguidade de empregos comuns que alberga, tornando difícil traçar com ele as fronteiras de uma investigação jurídica. [...] (FRADA, apud, MAFFINI, 2006, p.30-31).

Na medida em que se acentuam as dificuldades de identificação e aplicação do princípio da proteção à confiança, passa-se a correr o risco de se configurarem duas situações extremas, ambas indesejadas: i) aplicação irrestrita do princípio da legalidade administrativa (e, por conseguinte, da autotutela administrativa), em detrimento do princípio da proteção à confiança, por ser mais fácil e cômodo se aplicar um princípio jurídico direta e expressamente identificado no texto constitucional, além de prestigiado e reverenciado pela doutrina e jurisprudência, sob o qual não pairam maiores controvérsias; ou ii) aplicação indevida, desordenada e difusa do princípio da proteção à confiança, sem observância de requisitos mínimos que justifiquem sua aplicação.

Na primeira hipótese (aplicação irrestrita da legalidade administrativa), a nefasta conseqüência seria uma aplicação invariável da autotutela administrativa; vale dizer que atos administrativos eivados de ilegalidade jamais (ou quase nunca) poderiam ser mantidos no ordenamento jurídico, sendo irrelevante qualquer alegação acerca de segurança jurídica.

Já no que tange à segunda hipótese (aplicação indevida, desordenada e difusa do princípio da proteção à confiança), a própria utilização indiscriminada e sem parâmetros adequados leva ao enfraquecimento de sua normatividade; vale dizer, o princípio que se aplica, indistintamente, a qualquer caso, sobre ser desprovido de utilidade, na realidade não é adequado a nenhum em específico, de modo que qualquer discurso que pretenda fundamentar sua aplicação soará tautológico, repetitivo e vazio, restando por violar a própria segurança jurídica.

Dentro de tal contexto, impõe-se sistematizar requisitos objetivos e subjetivos que qualificam uma expectativa como legítima, e apta, portanto, a ensejar a aplicação do princípio da proteção à confiança (legítima) em favor do particular. Noutras palavras, só se deve admitir, a partir do princípio da proteção à confiança, que a manutenção no ordenamento jurídico de atos administrativos eivados de ilegalidade se dê em hipóteses específicas, quando satisfeitos determinados requisitos, de índole objetiva e subjetiva.

Na consecução deste objetivo (sistematização de requisitos para se aplicar o princípio da proteção à confiança), há de se identificar na jurisprudência, legislação e doutrina os principais argumentos e preceitos normativos capazes de sustentar a possibilidade de manutenção no mundo jurídico de atos administrativos inválidos, prestigiando o princípio de proteção à confiança; por fim, buscará analisar o artigo 54 da lei n º 9784/99, sob o enfoque da necessidade de estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente.

4.3 A IDENTIFICAÇÃO E APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

Neste momento, cumpre verificar como o princípio da proteção à confiança tem sido reconhecido e aplicado pelo Supremo Tribunal Federal. A relevância de tal abordagem revela-se na medida em que o desenvolvimento do princípio da proteção à confiança, tanto aqui no Brasil, quanto no direito alienígena, sobretudo na Alemanha e França, teve suas origens nas jurisprudências dos tribunais, a partir da análise de casos concretos [16]. Tal constatação não passou despercebida por Rafael Maffini:

[...] há de se como premissa teórica, confirmada pelas experiências estrangeiras [...], que o princípio em comento teve, invariavelmente sua gênese no labor jurisprudencial, num itinerário que, a partir dos tribunais, passou pela doutrina, culminando, no mais das vezes, na positivação seja do princípio propriamente dito, seja de regras que, direta ou indiretamente, estabelecem mandamentos imediatamente comportamentais que concretizam o estado de coisas que a proteção da confiança busca alcançar. Assim, imperiosa se afigura a constatação de que o princípio da proteção da confiança pode ser considerado, também no que pertine ao Direito Administrativo brasileiro, um produto da atividade jurisprudencial [...] (MAFFINI, 2006, p.96).

Serão examinados os três principais precedentes do STF [17] que tratam especificamente do tema, onde a aplicação do princípio da proteção à confiança se prestou para a preservação de atos estatais. Tais acórdãos, considerados paradigmáticos, foram identificados na doutrina, inicialmente, por Almiro do Couto e Silva [18]:

No que diz com a jurisprudência, são ainda escassas as decisões dos tribunais que invocam o princípio da segurança jurídica para solver questões não abrangidas pela proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, tais como as concernentes à manutenção de atos inválidos quando configurada a boa fé dos destinatários na percepção das vantagens deles emanadas. Recentemente, porém, houve três decisões do Supremo Tribunal Federal [...] qualificando a segurança jurídica como princípio constitucional na posição de subprincípio do Estado de Direito, harmonizando-se, assim, por esses arestos pioneiros da nossa mais alta Corte de Justiça, linhas de entendimento já afloradas na doutrina, em geral sem grande rigor técnico, na legislação e em acórdãos de alguns tribunais, mas que passam a gozar, agora, de um valor e de uma autoridade que ainda não possuíam. (SILVA, 2005, p. 09-10).

Faz-se necessária uma advertência inicial: nem sempre o Supremo Tribunal Federal (e também os outros tribunais) refere-se expressamente ao princípio da proteção à confiança; por vezes pode vir associado às noções de segurança jurídica, Estado de Direito e boa-fé, o que por si só, não descaracteriza a aplicação do referido princípio (MAFFINI, 2006, 97).

O primeiro dos julgados diz respeito Questão de Ordem recebida como Medida Cautelar – petição nº 2.900, cujo relator foi o eminente Min. Gilmar Mendes [19].

Em síntese, essa era a questão fática envolvida: uma aluna da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas foi aprovada em concurso público para assumir um emprego público na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos; seria lotada em Porto Alegre/RS. Diante disso, considerando a incompatibilidade de assumir o emprego público referido e continuar seus estudos em Pelotas, requereu administrativamente fosse transferida de faculdade, para continuar seu curso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tal pedido foi indeferido; impetrou, mandado de segurança que lhe favoreceu, conseguindo garantir aquela transferência pleiteada; posteriormente o TRF da 4ª Região, em julgamento de apelação, reformou a decisão que havia concedido a segurança; em vista disso, aquela aluna interpôs recurso extraordinário, apresentando, ainda, petição requerendo fosse dado efeito suspensivo ao referido recurso.

Resultado do julgamento: foi concedido o efeito suspensivo ao recurso extraordinário interposto para fins de se preservar aquela situação anteriormente conseguida pela aluna (a decisão liminar foi confirmada por unanimidade pela 2ª Turma do STF). Fundamentou-se tal julgado com base na segurança jurídica e no princípio da proteção à confiança, considerando, ainda, que, quando do deslinde da questão jurídica, a aluna já estava em vias de se formar naquela nova faculdade (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

É de se verificar, no julgado em comento, que a aplicação do princípio da proteção à confiança atendeu à finalidade de estabilizar aquela decisão judicial que conferia uma posição de vantagem à impetrante, na medida em que havia sido concedida a ordem para que ela pudesse continuar seu curso de Direito na UFRGS. Em outras palavras, reconheceu-se a necessidade de preservação de um ato estatal jurisdicional, fato este que, apesar de não se referir especificamente à limitação da autotutela administrativa, não desnatura a relevância da fundamentação do julgado, qual seja, necessidade de se tutelar a confiança legítima depositada pela aluna/impetrante nos atos estatais (na hipótese, ato jurisdicional). Merece nota, acerca deste julgado, o registro de Rafael Maffini:

O julgado em tela aplicou concretamente o princípio da proteção à confiança no sentido de preservação de um outro ato jurisdicional, que tinha, por seu turno, criado uma expectativa legítima em favor de sua beneficiária, a qual já se encontrava na iminência de gozar dos plenos efeitos da tutela jurisdicional pretendida. Embora se possa dizer que o fundamento intrínseco à decisão seja realmente de aplicação do princípio da proteção à confiança, a questão neste caso particular, diz respeito à estabilização à estabilização de decisões judiciais [...] É plenamente aproveitável, contudo, a tese que lhe é intrínseca [...] (MAFFINI, 2006, p.100).

Convém uma última observação quanto aos casos em que o princípio da proteção à confiança é aplicado na preservação de atos jurisdicionais. Nestas hipóteses a questão merece ser examinada com cautela, uma vez que, nem sempre um provimento liminar, dado seu caráter nitidamente precário, pode ser mantido com base no princípio da proteção à confiança [20].

Em outras palavras, é perfeitamente previsível que um provimento judicial que foi concedido mediante uma cognição sumária possa ser revogado; por óbvio também que ninguém tem direito adquirido e nem uma firme esperança (legítima) de que se eternize uma determinada situação conseguida através de um provimento liminar (ainda que satisfativa).

Em casos tais, ainda que não se possa afirmar que é impossível se aplicar o princípio da proteção à confiança, é de se considerar que, eventual necessidade de estabilização da situação jurídica criada pelo provimento liminar, deve ser sopesada com cautela, aferindo, no caso concreto, vários fatores que indiquem a necessidade de se tutelar a segurança jurídica, tais como a demora injustificada para julgamento de recurso que contra aquele provimento liminar se insurgiu, os prejuízos que seriam suportados no caso de reversibilidade da situação jurídica, considerando o decurso razoável de tempo, etc.

O segundo julgado refere-se ao Mandado de Segurança nº 24.268, rel. orig. Min. Ellen Gracie, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, tendo também como relator o Min. Gilmar Mendes.

Em síntese, essa era a questão fática envolvida: O Tribunal de Contas da União cancelou unilateralmente e sem contraditório o pagamento de pensão especial concedida, há dezoito anos, à beneficiária que fora adotada por seu bisavô em 1984. O Presidente do Tribunal de Contas da União sustentou a legalidade do ato impugnado, fundamentando o cancelamento do benefício na ausência de comprovação da adoção por instrumento jurídico adequado, violando os artigos 28 e 35 da Lei nº 6.679 de 1979.

Resultado do julgamento: a Relatora, Min. Ellen Gracie, afastou, inicialmente, os argumentos aduzidos pela impetrante, afirmando ser dispensável o contraditório na fase administrativa, uma vez que a questão versada nos autos seria apenas de direito. Afastou, da mesma forma, as alegações de direito adquirido e coisa julgada. Por fim, aduziu que as circunstâncias evidenciam que a adoção se deu sob simulação, ensejando percepção indevida de benefício previdenciário.

Divergindo dessa orientação, o Min. Gilmar Mendes apresentou fundamentação [21], que resultou vitoriosa, no sentido de que o ato deveria ser invalidado por ausência de contraditório e também de ampla defesa. Após ampla exposição acerca da garantia do devido processo legal, segurança jurídica e princípio da proteção à confiança, incursionando, inclusive, pelo Direito Alemão e após citar, ainda, as lições de Almiro do Couto e Silva, Miguel Reale e Karl Larenz, conclui:

Como se vê, em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça material [...] É possível que, no caso em apreço, fosse até de se cogitar da aplicação do princípio da segurança jurídica, de forma integral, de modo a impedir o desfazimento do ato. Diante, porém, do pedido formulado e da causa petendi limito-me aqui a reconhecer a forte plausibilidade jurídica desse fundamento. Entendo, porém, que se há de deferir a segurança postulada para determinar a observância do princípio do contraditório e da ampla defesa na espécie (CF, art. 5º, LV). (MS 24.268-0 MG, Rel. p/Acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 05.02.2004)

Talvez este seja o mais interessante dentre os julgados examinados, por trazer em seu bojo a discussão acerca da necessidade do contraditório para se exercer a autotutela administrativa. Com efeito, como restou reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, a necessidade do contraditório (e da ampla defesa) também pode ser concebida como uma limitação ao exercício da autotutela administrativa, na medida em que representa uma restrição "na forma de se proceder" à invalidação de atos administrativos; antes de invalidá-los deveria viabilizar o contraditório, evitando surpresas para o beneficiário do ato e, principalmente, que a invalidação se dê de forma temerária, principalmente quando transcorrido lapso considerável de tempo.

Tamanha a relevância do julgado que se está a analisar que ele serviu de precedente para que o Supremo Tribunal Federal editasse a súmula vinculante nº 03, cujo enunciado é o seguinte:

Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão [22]. (súmula vinculante nº 03).

Conquanto a presente pesquisa tenha por objeto o enfrentamento do princípio da proteção à confiança em seu aspecto material (substancial), não há como negar que o referido princípio revela também uma faceta procedimental, que se materializa pela observância das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, quando do exercício da autotutela administrativa. Quanto a este aspecto, afirma Rafael Maffini:

[...] Evidente que o contraditório e a ampla defesa prestam-se à obtenção de um modo de proteção às expectativas depositadas em atos estatais, a qual, inclusive, aproxima-se do princípio da participação [...] Todavia, não se podem confundir ampla defesa e contraditório, que são garantias eminentemente procedimentais às expectativas legítimas, de relevante posição constitucional, com a proteção substancial da confiança, o qual, sendo também princípio constitucional, possui sentido próprio. (MAFFINI, 2006, p.101).

O Ministro Marco Aurélio, há muito, já havia reconhecido a necessidade de contraditório e ampla defesa para extinção de atos administrativos ampliativos de direitos:

[...] tratando-se da anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, a anulação não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que enseje a audição daqueles que terão modificada situação já alcançada. Presunção de legitimidade do ato administrativo, que não pode ser afastada unilateralmente, porque é comum à Administração e ao particular. (RE 158.543, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 30.08.1994).

A limitação à autotutela administrativa, pelo exercício do contraditório, cresce de importância quando se está diante de um elevado decurso de tempo entre o ato e sua pretendida. O precedente analisado evidencia tal situação: o benefício foi cancelado 18 anos após sua concessão! A violação à segurança jurídica, nesta hipótese, restou inquestionável, uma vez que, além das quase duas décadas da concessão do benefício, seu cancelamento ocorreu de forma unilateral, sem contraditório. Dentro de tal contexto, não é necessário grande esforço para se constatar, antes de tudo, a completa ineficiência da atividade administrativa, por ter demorado 18 anos para "perceber" o vício do ato expedido [23].

Por fim, o último julgado: Mandado de Segurança nº 22.357, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 27.05.2004.

Neste caso, alguns empregados públicos da INFRAERO teriam ingressado em seus postos de trabalho, no ano de 1991, contudo, sem prestarem concurso público; o TCU não havia se insurgido, inicialmente, quanto a tais nomeações; a matéria (necessidade de concurso público para se investir em emprego público), que inicialmente era controvertida, restou pacificada pelo STF. Diante disso, o TCU pretendeu invalidar aquelas nomeações e dispensar os referidos servidores.

Dentro de tal contexto, o Supremo Tribunal Federal, sob o fundamento da necessária observância do princípio da proteção à confiança e da segurança jurídica, reconheceu aos impetrantes a possibilidade de ver mantida suas nomeações; vale dizer, estabilizou aquela situação que já perdurava por mais de dez anos. Trata-se, como se vê, de mais uma hipótese clara de estabilização de situações jurídicas criadas administrativamente, a partir do princípio da proteção à confiança.

4.4 A CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA PELO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO.

Cumpre deixar consignada, logo de início, uma premissa que, por si só, já fundamenta a necessidade de se buscar no ordenamento jurídico positivo instrumentos destinados a limitar, sob certos requisitos, o exercício da autotutela administrativa [24]: os atos administrativos, conquanto inválidos, produzem efeitos jurídicos na órbita dos particulares. Esta é uma realidade inquestionável, haja vista que, por vezes, a dinâmica que envolve mundo fático ignora a realidade jurídica, fenômeno essencialmente lingüístico.

E, considerando ser quase sempre inviável uma simples e "matemática" reversibilidade no tempo, não há como ignorar a alta probabilidade de que haja situações jurídicas, já sedimentadas, merecedoras de tutela jurídica, apesar de nascidas sob a égide de atos administrativos viciados. Firme neste sentido é o magistério de Weida Zancaner:

Com efeito, atos inválidos geram conseqüências jurídicas, pois se não gerassem não haveria qualquer razão para nos preocuparmos com eles. Com base em tais atos certas situações terão sido instauradas e na dinâmica da realidade podem converter-se em situações merecedoras de proteção, seja porque encontrarão em seu apoio alguma regra específica, seja porque estarão abrigadas por algum princípio de Direito. Estes fatos posteriores à constituição da relação inválida, aliados ao tempo, podem transformar o contexto em que esta se originou, de modo a que fique vedado à Administração Pública o exercício do dever de invalidar, pois fazê-lo causaria ainda maiores agravos ao Direito, por afrontar à segurança jurídica e à boa-fé. (ZANCANER, 2001, p.61-62).

Conquanto o princípio da proteção à confiança se encontre ainda em fase inicial de desenvolvimento, já é possível se identificar alguns dispositivos legais onde se prestigiou direta ou indiretamente o princípio da segurança jurídica e, mais especificamente, o princípio da proteção à confiança.

Inicialmente, cumpre destacar que a questão da segurança jurídica ganhou em amplitude com a edição das Leis nº 9868/99 e nº 9882/99, as quais, ao regulamentaram, respectivamente, o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e da argüição de descumprimento de preceito fundamental, todas perante o Supremo Tribunal Federal, reconheceram o valor constitucional da segurança jurídica, possibilitando a sua utilização como parâmetro para que o STF decida acerca da flexibilização dos efeitos das decisões proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade.

Com efeito, o artigo 27 da Lei nº 9.868/99 [25] (e também o artigo 11 da Lei nº 9.882/99, que traz redação semelhante, só que aplicada à Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) reconheceu expressamente a possibilidade de o STF, ao julgar uma ADIN ou uma ADPF, mediante quorum qualificado, efetivar a ponderação do princípio do dogma da nulidade da lei declarada inconstitucional com algum princípio protegido pela norma constitucional violada, tendo por parâmetro razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Sem embargo da premissa teórica tradicionalmente reconhecida no Brasil, segundo a qual a questão da inconstitucionalidade se situa no plano da validade, havendo de ser, por conseguinte, nula (e não simplesmente anulável) uma lei inconstitucional [26], o fato é que o referido dispositivo legal passou a permitir expressamente que o STF, a partir daqueles parâmetros (segurança jurídica e excepcional interesse social) restrinja os efeitos os efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade. Vale dizer, mesmo sendo a lei inconstitucional, sobreleva a necessidade, em algumas hipóteses, da manutenção de seus efeitos; em outras palavras, permitiu-se a flexibilização da idéia a partir da qual uma lei inconstitucional não produz nenhum efeito (o dogma da nulidade da lei inconstitucional).

É bem verdade que, mesmo sem retirar a importância da positivação levada a cabo pelos artigos 27 e 11 dos referidos diplomas legislativos, é de se considerar que o próprio Supremo Tribunal Federal já vinha atenuando (antes de 1999), em algumas hipóteses, os efeitos retroativos da lei declarada inconstitucional. Neste sentido observou Luís Roberto Barroso:

[...] a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal atenuou, em diversos precedentes, a posição radical da teoria da nulidade, admitindo hipóteses em que a decisão não deveria produzir efeitos retroativos. Assim se passou, por exemplo, no caso de magistrados que haviam recebido, de boa-fé, vantagem pecuniária declarada inconstitucional: a remuneração foi interrompida, mas não foram eles obrigados a devolvê-la. Ou no da penhora realizada por oficial de justiça cuja lei de investidura foi considerada inconstitucional, sem que o ato praticado na condição de funcionário de fato fosse invalidado [...].(BARROSO, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 2004, p.160).

A possibilidade de se atenuar os efeitos retroativos que advêm, em regra, da declaração de inconstitucionalidade, e que fora inserida em nosso ordenamento jurídico a partir dos diplomas legislativos acima referidos, foi defendida também por Zeno Veloso, o qual menciona expressamente a necessidade da manutenção dos efeitos de relações jurídicas consumadas com base na boa-fé e na confiança:

Conferir, sem restrições e atenuações, eficácia ex tunc à declaração de inconstitucionalidade, retroagindo a sentença ab initio, determinando-se a nulidade da lei desde o seu nascimento e, portanto, considerando írritos e sem eficácia todos os atos praticados sob a égide da norma invalidada, podem causar, em muitas situações, verdadeiro caos, uma comoção nacional. Imagine-se o que representa desconstituir "como se não tivessem existido", inúmeras relações jurídicas, de toda ordem, criadas, desenvolvidas e consumadas com base na boa-fé, na confiança, amparadas em uma lei, devidamente promulgada, publicada e em pleno vigor, que gozava de presunção de legitimidade, porque depois (geralmente, muito tempo depois) o Judiciário veio a declarar aquilo que não era uma lei [...]. (VELOZO, 2003, p.191-192).

De tudo quanto o exposto, é de se concluir que, se mesmo diante de uma inconstitucionalidade (nível mais grave de invalidade) afigura-se possível que sejam preservados os efeitos de algumas relações jurídicas nascidas sob a égide da lei posteriormente reconhecida inconstitucional, com maior razão impõe-se reconhecer que um ato administrativo, ainda que eivado de ilegalidade, possa, em determinadas hipóteses, ter preservados seus efeitos, em atendimento à necessidade da estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente. Em ambos os casos, o fundamento imediato deve ser a observância da segurança jurídica e a proteção à confiança.

Outro dispositivo diretamente relacionado à confiança do particular nos atos emanados da Administração Pública, é o artigo 59, parágrafo único da Lei 8.666/93 (Lei Geral de Licitações), que assim dispõe:

Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.

Parágrafo único: a nulidade [do contrato administrativo] não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.

Num primeiro momento, é possível se identificar, desde logo, o elemento subjetivo que, invariavelmente, apresenta-se como requisito necessário à aplicação do princípio da proteção à confiança: a boa-fé do particular; vale dizer que, o particular não deveria conhecer o vício e nem ter concorrido para o seu nascimento.

Com efeito, tal dispositivo, ao que se vislumbra, alude a uma conseqüência patrimonial que não deve ser suportada por aquele que contrata com a Administração Pública, incumbindo ao Poder Público o dever de indenizar, justamente em razão das expectativas legitimas (de boa-fé) nutridas pelo particular, no sentido de que estava a agir dentro da legalidade, realizando, como era de se esperar, os dispêndios necessários para a execução do contrato administrativo.

Conquanto não esteja expresso, trata-se da proteção à confiança em seu aspecto compensatório que também compõe o conteúdo jurídico do princípio da proteção à confiança. Pertinente, neste aspecto, relembrar os ensinamentos de Rafael Maffini (já explorados no capítulo 3 desta pesquisa), para quem o princípio da proteção à confiança pode ser compreendido sob três perspectivas:

[...] a) de um lado, tem-se a proteção procedimental da confiança ou das expectativas legítimas, consubstanciada na necessidade de uma atividade administrativa processualizada, em que se assegure a participação dos destinatários da função administrativa; b) de outro lado, tem-se a proteção compensatória da confiança, compreendida como o dever do Estado de ressarcir os prejuízos decorrentes da frustração de expectativas nele legitimamente depositadas pelos cidadãos; c) por fim, destaca-se a proteção substancial ou material da confiança, cujo significado pode ser sumarizado como sendo um conjunto de normas jurídicas que visa à manutenção e à estabilização das relações jurídicas emergentes da ação administrativa do Estado, em face de expectativas que, por razões especiais, apresentam-se legítimas e, assim, dignas de proteção. (MAFFINI, 2006, p.32, grifo nosso).

Marçal Justen Filho empreendeu estudo aprofundado acerca do referido dispositivo legal, evidenciando a necessidade de boa-fé do particular contratado a fim de que seja indenizado pelo Estado, no caso de nulidade do contrato administrativo:

Outro ângulo da questão relaciona-se com a situação subjetiva do particular que participou da contratação inválida com a Administração. Afigura-se irrebatível que a indenização em favo do particular, cujo patrimônio seja afetado por atuação indevida da Administração Pública, depende de sua boa-fé. A relevância jurídica da situação subjetiva do particular relaciona-se com dois fundamentos jurídicos pelos quais se impõe o dever de a Administração indenizar o particular. A invalidade do contrato conduz ao dever de indenizar o particular, tendo em vista dois fundamentos. Um deles é o ato ilícito e o outro é o enriquecimento sem causa. Sob ambos os prismas, dá-se relevância à situação subjetiva do particular, na medida em que sua participação na consumação do resultado danoso pode afetar a extensão de sues direitos. [...] a boa-fé do terceiro caracteriza-se quando não concorreu, por sua conduta, para a concretização do vício ou quando não teve conhecimento (nem tinha como conhecer) sua existência. [...]. (JUSTEN FILHO, 2005, p.519-520).

Quanto ao referido dispositivo, que veicula inegável proteção à expectativa do contratado face à Administração Pública contratante, relevantes são as considerações de Rafael Maffini:

Esse dispositivo, ao contrariar a antiga parêmia de que o que é nulo não tem aptidão para a produção de efeitos – de resto, já de há muito mitigada -, produz um estado de coisas pelo qual o contratado terá protegida a sua expectativa, mesmo que parcialmente, em face da aparência de validade do vínculo contratual, bem como o fato de que não contribuiu para a patologia de um contrato administrativo cujo vício restou reconhecido ulteriormente à sua celebração e ao início de sua execução. Trata-se, por certo, de um primado decorrente da própria vedação ao enriquecimento sem causa [...] Entretanto, além de sê-lo, subjaz, inegavelmente a índole normativa de proteção ao que se expectou legitimamente da Administração Pública (MAFINNI, 2006, p. 120).

Continuando a examinar o ordenamento jurídico posto, é possível se extrair, ainda, um outro dispositivo legal, por vezes esquecido e pouco explorado doutrinariamente, mas que, indubitavelmente, evidencia forma de se concretizar a proteção à confiança do particular nos atos emanados do Poder Público. Trata-se do artigo 100, incisos I a IV e, especialmente, o parágrafo único da Lei nº 5.172/66 (Código Tributário Nacional):

Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:

I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;

II – as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua força normativa;

III – as práticas reiteradas observadas pelas autoridades administrativas;

IV - os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo.

É de se verificar, a partir da própria literalidade do referido dispositivo, que o legislador infraconstitucional, prestigiou, já naquela época (1966), a boa-fé do contribuinte, presumindo-a para efeito excluir a imposição de penalidades, juros de mora e correção monetária, nos casos em que tiver pautado sua conduta segundo as próprias diretrizes emanadas das autoridades administrativas; vale dizer, há de ter em conta a boa-fé do contribuinte quando este agir em observância às denominadas "normas complementares", dispostas nos quatro incisos (acima transcritos) do artigo 100 do Código Tributário Nacional.

Ainda na seara tributária, Luis Roberto Barroso destaca a norma prevista no artigo 178 do Código Tributário Nacional [27], que aduz à impossibilidade de produção de efeitos de norma revogadora de isenção, quando esta tiver sido concedida por prazo certo e em função de determinadas condições; vale dizer, no caso de isenções condicionadas e temporárias, não pode o legislador, injustificadamente, em prestígio à boa-fé do particular, frustrar-lhe a expectativa se já tiver dado início à implementação, por certo dispendiosa, daquelas condições estipuladas para fazer jus ao favor legal [28]. Com efeito:

[...] a jurisprudência consolidou o entendimento de que os benefícios fiscais, se concedidos como incentivo à execução de determinado projeto, não podem ser interrompidos na pendência do desenvolvimento do projeto, em homenagem à boa-fé do particular. (BARROSO, Revista de Direito do Estado, 2006, p.280-281).

A este respeito, esclarecedoras são as palavras de Luciano Amaro:

Certas isenções são reconhecidas pela lei com o objetivo de estimular a execução de empreendimentos ou atividades de interesse público, e geralmente essas isenções costumam ter determinado prazo de duração. São, pois, isenções temporárias (o que não impede sua eventual prorrogação). Por exemplo, confere-se isenção do imposto "X", durante dez anos, às empresas que se instalarem em certa região para fabricar determinado produto. É evidente que, instalando-se nessa região uma empresa que atenda às condições para enquadrar-se na norma de isenção, não pode o legislador frustrar o direito da empresa à isenção, cassando-a antes do prazo assinalado. (AMARO, 2006, p.287-288).

Por fim, cumpre examinar o dispositivo legal que, apesar de não ser o único e nem o último a prestigiar a segurança jurídica, ao que tudo indica, representa a principal manifestação do legislador infraconstitucional no sentido de concretizar o princípio da proteção à confiança dos particulares nos atos estatais; afigura-se, em essência, a manifestação legislativa mais evidente de limitação à autotutela administrativa. Trata-se do artigo 54 da Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Tal dispositivo, por sua relevância e peculiaridades, merece análise em um capítulo em separado.

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Sobre o autor
Flávio Romero de Oliveira Castro Lessa

Analista Judiciário na Justiça Federal em Vitória (ES). Graduado em Direito e em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal do Espírito Santo. Especialista em Direito Público pelas Faculdades Integradas de Vitória (FDV).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Flávio Romero Oliveira Castro. A eficácia negativa do princípio da proteção à confiança e sua aplicação como um fator limitativo ao exercício da autotutela administrativa.: Uma análise do art. 54 da Lei nº 9784/99. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1739, 5 abr. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11135. Acesso em: 22 nov. 2024.

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