5 O ARTIGO 54 DA LEI nº 9.784/99 E A CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA: SISTEMATIZAÇÃO DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS À SUA APLICAÇÃO.
A Lei nº 9.784/99, logo de início, estatui no caput de seu artigo 2º que a Administração Pública atenderá, dentre outros, ao princípio da segurança jurídica; impõe, ainda, que os processos administrativos no âmbito federal deverão observar critérios de "[...] IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé". (artigo 2º, inciso IV).
Após tais cláusulas gerais concernentes à segurança jurídica, previu expressamente o princípio da autotutela administrativa em seu artigo 53 para, logo depois, limitá-lo, em seu artigo 54. Interessa-nos, em especial, o caput do referido dispositivo, que assim dispõe:
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em 5 (cinco) anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1º (omissis);
§ 2º (omissis).
Numa primeira aproximação, é possível se perceber, a partir do referido dispositivo legal, que à Administração Pública não se faculta mais ignorar os efeitos do tempo quando se queira rever e anular seus os atos administrativos; em outros termos, não há um dever atemporal de se invalidar atos administrativos [29]; ao revés, há (para a Administração Pública) um poder-dever limitado temporalmente para anular seus atos administrativos eivados de ilegalidade.
Com efeito, ao se estipular um prazo máximo decadencial [30] de cinco anos para que a Administração Pública exerça a prerrogativa da autotutela administrativa, cuidou o legislador de flexibilizar a tradicional lição administrativista, entre nós corriqueiramente reverenciada, segundo a qual um ato ilegal não pode produzir nenhum efeito, devendo sempre ser anulado com efeitos retroativos (ex tunc); o entendimento há muito dominante é no sentido de que, sendo a legalidade um princípio fundamental ao regime jurídico-administrativo e norteador da atividade administrativa, seria, por conseguinte, um princípio absoluto.
Ocorre que, tal noção absoluta acerca do princípio da legalidade (e de resto com relação aos demais princípios constitucionais) revela-se, no mínimo inadequada. Com efeito, sobre não haver princípios absolutos em nosso ordenamento jurídico, o princípio da legalidade, em específico, há de ser interpretado em consonância com todo o ordenamento jurídico, não representando tal princípio um fim em si mesmo, revelando-se insuficiente para a consecução da segurança jurídica uma legalidade meramente formal.
Dentro de tal contexto, impõe-se reconhecer que o puro e simples atendimento à legalidade em qualquer hipótese, de forma até mesmo "mecanizada", não garante, por si só, a não vulneração ao ordenamento jurídico. Dentro desta ordem de idéias, adverte Rafael Maffini:
[...] a legalidade não pode mais ser considerada como um fim em si mesmo, porquanto se apresenta dotada de uma índole eminentemente instrumental, justamente orientada à consecução da segurança jurídica e, em termos mediatos, do próprio Estado de Direito. [...] a legalidade não existe para a própria legalidade, mas para a obtenção de um estado de coisas que enseje segurança jurídica e, assim, conforme o Estado de Direito. (MAFFINI, 2006, p.132)
Estas advertências iniciais revelam-se necessárias para espancar qualquer dúvida acerca da legitimidade (ou mesmo constitucionalidade) do lapso máximo de tempo que passou a ser admitido para o exercício da autotutela administrativa. Longe de desprestigiar ou violar o princípio da legalidade administrativa, o dispositivo legal cuidou de concretizar, em nível infraconstitucional, o princípio da proteção à confiança, fornecendo balizas, objetiva e subjetiva, facilitadoras para sua aplicação.
É de se perceber que o legislador infraconstitucional efetivou uma ponderação em abstrato entre o princípio da proteção à confiança e o princípio da legalidade administrativa, elegendo três requisitos a partir dos quais, se cumulativamente considerados, restaria fulminada a prerrogativa da Administração Pública no que concerne ao seu direito potestativo à invalidação de seus próprios atos administrativos, quando eivados de ilegalidade. São eles: (i) o decurso do lapso temporal de cinco anos; (ii) a configuração da boa-fé do destinatário do ato administrativo reputado viciado; e (iii) o ato administrativo que se pretende invalidar tem que ter produzido efeitos benéficos aos seus destinatários.
Vale dizer que, uma vez ocorridas estas três situações, acima mencionadas, reputar-se-ão configurados os requisitos (de natureza objetiva e subjetiva) suficientes e necessários para que a Administração Pública não mais possa exercer sua prerrogativa anulatória; prevalecerá, por conseguinte, o princípio da proteção à confiança, restando efetivamente limitada a autotutela administrativa. Analisemos cada um destes requisitos.
5.1 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: O DECURSO DO LAPSO TEMPORAL DE CINCO ANOS.
Já se afirmou que não é de qualquer expectativa que se está a tratar quando se pretende analisar a possibilidade de preservação de atos administrativos inválidos. Há de haver uma expectativa legítima que, por conseguinte, qualifique também de legítima a confiança do particular nos atos estatais, a fim de se alcançar uma estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente.
Deve-se compreender tal expectativa legítima, contrapondo-a àquela geralmente pejorativamente intitulada de "mera expectativa". Acresça-se a isso o conceito formal de direito adquirido, notoriamente reconhecido como aquele direito definitivamente incorporado ao patrimônio de seu titular. Dentro desta ordem de idéias, frequentemente tem prevalecido o seguinte: ou se reconhece estar configurado o direito adquirido por parte de um particular, merecedor de tutela jurídica, ou haveria apenas "mera expectativa" de direito, nada havendo de ser devido ao seu titular.
Nesse passo, a expectativa tida por legítima merecedora de proteção jurídica afigura-se como um meio-termo entre aquilo que seria reconhecido apenas como uma "mera expectativa", donde não se extraem direitos, e o direito adquirido, formalmente considerado. Vale dizer, conquanto não se esteja diante de uma hipótese de direito adquirido, também não se trata apenas de "mera expectativa".
Trata-se de uma expectativa que, por se qualificar legítima e ser merecedora de tutela jurídica, deve preencher determinados requisitos, de modo a viabilizar a produção dos efeitos jurídicos aqui pretendidos, a partir da limitação à autotutela administrativa. Neste percurso de construção de sentido, é inevitável, dentre outras coisas, que esteja configurado um decurso razoável de tempo, relacionado, inclusive, por Luís Roberto Barroso dentre os três parâmetros que considera de maior relevância para se conferir maior densidade jurídica à noção de expectativa legítima merecedora de proteção jurídica:
[...] Em primeiro lugar, será juridicamente legítima, e merecerá proteção, a expectativa que decorra de um comportamento objetivo do poder Público, isto é, que não seja apenas uma esperança inconseqüente sem vínculo com os elementos reais e objetivos da atuação estatal. Um discurso do Chefe do Executivo não gera, por si só, uma expectativa legítima, mas um decreto poderá justificá-la. Em segundo lugar, a expectativa será digna de proteção se a conduta estatal que a gerou perdurou razoavelmente no tempo, de modo a ser descrita como consistente e transmitir a idéia de certa estabilidade, levando o particular a praticar atos fiado na conduta estatal. Por fim, em terceiro lugar, será relevante saber, para a avaliação da legitimidade da expectativa, se o particular podia ou não razoavelmente prever o risco de futura modificação do ato do Poder Público. [...]. (BARROSO, Revista de Direito do Estado, 2006, p.278-279, grifo nosso).
Impõe-se concluir, portanto, que a configuração da expectativa legítima, necessária à aplicação do princípio da confiança (legítima) em limitação à autotutela administrativa, não prescinde de uma duração razoável de tempo. Com efeito, um lapso temporal razoável entre o início de produção de efeitos do ato administrativo e sua revisão e invalidação (através do exercício da autotutela administrativa) é fator essencial para que possa ser incutido um sentimento justificável de estabilidade no destinatário da função administrativa.
Em vista disso, por um raciocínio inverso, é óbvio que ninguém poderia alegar que nutria uma expectativa legítima de inalterabilidade de uma situação estatal que lhe era benéfica se o ato tido por ilegal for rapidamente revisto e anulado pela Administração Pública.
Nestes termos, o prazo decadencial qüinqüenal fixado pelo artigo 54 da Lei nº 9.784/99 afigura-se como um primeiro critério objetivo razoável para limitar a possibilidade de exercício da autotutela administrativa punindo a inércia demasiada da Administração Pública e evitando que se eternize sua prerrogativa anulatória de atos administrativos, o que, por certo, violaria o princípio da segurança jurídica. Rafael Maffini resume a importância da fixação de um lapso temporal máximo como um requisito para a implementação do prazo decadencial:
O prazo de cinco anos serve, portanto, como uma espécie de marco divisor da concessão de efeitos jurídicos à inércia da Administração Pública quanto ao dever de invalidação dos seus atos administrativos viciados. Por certo, o que se pretende é que a Administração Pública invalide seus próprios atos administrativos quando constatar a invalidade que os qualificada [sic]. Isso consiste num primado, inclusive, de aprimoramento da atividade administrativa, bem assim da legalidade objetiva, já referida. O que não se pode admitir é que tal prerrogativa anulatória se perpetue, porque, deixando-se de fixar prazo para o exercício de tal prerrogativa invalidatória, propícias seriam situações de flagrante insegurança jurídica, ocasionadas em nome de uma proteção – cega e desmedida – à legalidade, esquecendo-se, assim, que a própria legalidade é um instrumento de consecução de segurança jurídica (MAFFINI, 2006, p.155).
Dentre tal contexto, é digna de nota a interessante a consideração de Weida Zancaner, quanto à importância da fixação de um prazo decadencial no âmbito do Direito Público:
Se, em razão do exposto, podemos concluir que no Direito Privado a prescrição basta para garantir a segurança jurídica, o mesmo não se dá no Direito Público, pois o princípio da segurança jurídica só fica resguardado através do instituto da decadência, em se tratando de atos inconvalidáveis, devido ao fato de a Administração Pública não precisar valer-se de ação, ao contrário do que se passa com os particulares, para exercitar o seu poder de invalidar. [...] Tanto é exata tal assertiva que não se concebe a possibilidade de interrupção ou suspensão do prazo para a Administração invalidar, característica essa da decadência, em oposição à prescrição. (ZANCANER, 2001, p.77).
Almiro do Couto e Silva (2005, p.40) argumenta, outrossim, ser razoável a estipulação de um prazo decadencial de cinco anos, na medida em que o referido prazo afina-se com outros vários prazos decadenciais e prescricionais previstos em nosso ordenamento jurídico, tais como o prazo de cinco anos para a propositura da ação popular, previsto no artigo 21 da Lei nº 4.717/65 (Lei da Ação Popular), o prazo de cinco anos para a propositura da ação de improbidade administrativa, previsto no artigo 23 da Lei nº 8.429/92, e também os prazos prescricionais e decadenciais de cinco anos previstos nos artigos 168, 173 e 174 do Código Tributário Nacional.
5.2 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: A CONFIGURAÇÃO DA BOA-FÉ DO DESTINATÁRIO DO ATO ADMINISTRATIVO REPUTADO VICIADO.
Apenas o transcurso do prazo decadencial de cinco anos não basta, por si só, para que a Administração Pública fique alijada de seu poder-dever de exercer a autotutela administrativa, revendo e anulando seus próprios atos eivados de vício. Há de estar configurada também a boa-fé do destinatário (ou dos destinatários) do ato administrativo que se pretende invalidar, perfazendo, portanto, requisito subjetivo para que se possa aplicar o princípio da proteção à confiança em limitação à autotutela administrativa.
A análise acerca da boa-fé, por se tratar de temática sobremaneira evoluída na seara do direito privado, poderia nos remeter a um aprofundamento demasiado e até mesmo desnecessário para os fins limitados a que se destina a presente pesquisa. Importa aqui se perquirir, da forma mais objetiva e direta possível, qual o alcance que deve ser dado à boa-fé de modo que possibilite a aplicação do princípio da proteção à confiança, no particular sentido de preservação de atos administrativos, ainda que considerados inválidos pela Administração Pública.
Um primeiro delineamento que se revela a partir do dispositivo legal em apreço nos permite concluir que a boa-fé que se está a analisar é aquela do particular, destinatário do ato administrativo, sendo irrelevante, por conseguinte, a boa-fé (ou má-fé) do administrador público. Isto se deve ao fato de ser ele (o particular destinatário do ato) o beneficiário da aplicação do princípio da proteção à confiança, sendo de todo incoerente se imaginar que a eventual má-fé da Administração Pública possa influir desfavoravelmente na esfera jurídica do particular, impedindo a aplicação do princípio da proteção à confiança em seu favor. Em suma, interessa a boa-fé (ou má-fé) do particular destinatário do ato, sendo irrelevante, para fins de limitação à autotutela administrativa, se perquirir quanto a ocorrência deste aspecto subjetivo no âmbito da Administração Pública.
Quanto à boa-fé [31], impõe-se, desde logo, deixar consignada a cristalina definição de Celso Antônio Bandeira de Mello:
O que é, pois, agir de boa fé? É agir sem malícia, sem intenção de fraudar a outrem. É atuar na suposição de que a conduta tomada é correta, é permitida ou devida nas circunstâncias em que ocorre. É, então, o oposto da atuação de má fé, a qual se caracteriza como o comportamento consciente e deliberado produzido com o intento de captar uma vantagem indevida (que pode ser ou não ilícita) ou de causar a alguém um detrimento, um gravame, um prejuízo, injustos. (MELLO, Revista de Direito Administrativa, 1997, p.34).
Concordamos, contudo, com o posicionamento de Marçal Justen Filho que, mesmo sem aludir especificamente ao dispositivo legal ora em comento, restringe um pouco mais a noção de boa-fé, excluindo de seu conceito aquelas hipóteses em que o particular tinha conhecimento (ou tinha condições de tê-lo no caso concreto):
[...] a boa-fé do terceiro caracteriza-se quando não concorreu, por sua conduta, para a concretização do vício ou quando não teve conhecimento (nem tinha condições de conhecer) sua existência. O particular tem o dever de manifestar-se acerca da prática de irregularidade. Verificado o defeito, ainda que para ele não tenha concorrido, o particular deve manifestar-se. Se não o fizer, atuará culposamente. Não poderá invocar boa-fé [...] a exigência de boa-fé traduz-se na reprovação à conduta de fraude consciente à exigência legal, de modo a configurar a busca preordenada do resultado sabidamente ilegal [...] (JUSTEN FILHO, 2005, p.520-521).
Cumpre, no entanto, deixar claro que não é qualquer omissão do particular que caracteriza uma má-fé; não há de se exigir que o particular, incondicionalmente, tenha conhecimento de todas as atividades e possíveis erros e nulidades que possam ser cometidos pela Administração Pública; de outra forma, a omissão caracterizadora da má-fé é aquela preordenada à obtenção de um resultado; uma ciência inequívoca seguida de uma omissão dolosa. É necessário que se afira no caso concreto a real possibilidade do particular ter tido conhecimento do vício que lhe beneficiava, silenciando dolosamente quando não deveria, por contar com a eventual negligência que, por vezes, pode pairar sobre a Administração Pública.
Apenas a título de exemplificação, é evidente a impossibilidade de se defender a boa-fé de um candidato que, ao prestar concurso público para ingressar nos quadros da Administração Pública, ignora cláusula expressamente prevista no edital do certame, que lhe impedia de tomar posse no cargo pretendido em razão de não atender a algum dos requisitos para investidura.
Com efeito, caso a invalidação posterior de seu ato de investidura paute-se na ausência do cumprimento de requisito previsto no edital [32], não há que se falar em boa-fé, haja vista que, diante de tal caso concreto, é possível presumir que o candidato tinha conhecimento do edital ou, ao menos, tinha plena condição de conhecê-lo, tratando-se de dever daquele que pretende prestar concurso inteirar-se do edital que, como se sabe, é a "lei interna do certame". Enfim, se o particular é nomeado, toma posse e entra em exercício, mesmo não preenchendo os requisitos para tanto, é se de concluir que não estava de boa-fé, apesar de não ter havido efetivamente um ato comissivo fraudulento.
Em sentido contrário, Almiro do Couto e Silva, ancorado na experiência alienígena do direito francês, argumenta haver dificuldade de ordem pragmática em se identificar quem teve ciência ou não do vício; por tal razão, dada a complexidade que tal aferição comportaria, não seria conveniente atribuir relevância ao conhecimento ou desconhecimento da ilegalidade por parte do particular, para fins de se configurar a existência de uma boa-fé. Assim, referido autor leciona:
Questão complexa é a que diz com o conhecimento da ilegalidade do ato administrativo pelo destinatário, ou seu desconhecimento [...] é muito comum que os atos administrativos contemplem um grande número de beneficiários, como frequentemente ocorre, por exemplo, nas relações com servidores públicos. Os destinatários, nesses casos, têm, de regra, níveis diferenciados de conhecimento e de informação. Assim, conquanto alguns pudessem ter dúvidas quanto à legalidade das medidas que os favoreciam, outros estariam convencidos de que as medidas seriam legítimas, tornando-se muito difícil, se não impossível, determinar quem teria conhecimento da ilegalidade e quem não teria; [...] Como se percebe, análises dessa espécie dariam margem a juízos altamente subjetivos e a tratamentos desiguais, baseados nesses mesmos juízos, o que facilmente poderia escorregar para a arbitrariedade [...] tais perquirições sobre o conhecimento da ilegalidade são também desconhecidas no direito francês, onde a investigação da boa-fé do destinatário, para efeito de aplicação ou não do prazo decadencial de sessenta dias, se esgota na apuração da existência de manobras fraudulentas do interessado na obtenção do ato administrativo que o beneficiou. (SILVA, 2005, p. 38-39).
Em síntese, é possível se dizer que, de uma forma geral, age de boa-fé [33] aquele que não contribui para que o ato se torne viciado, seja com fraude, seja até mesmo com uma omissão preordenada a iludir o Poder Público. Por fim, ainda quanto à boa-fé, resta tecer algumas considerações acerca da presunção de legitimidade dos atos administrativos.
5.2.1 A presunção de legitimidade dos atos administrativos como fator favorável à configuração da boa-fé.
A presunção de legitimidade, ao lado da imperatividade e da auto-executoriedade, formam os três atributos dos atos administrativos, amplamente reconhecidos pela doutrina. Interessa-nos, em específico, a presunção de legitimidade, que, de assim é conceituada por Celso Antônio Bandeira de Mello:
Presunção de legitimidade – é a qualidade, que reveste tais atos, de se presumirem verdadeiros e conformes ao Direito, até prova em contrário. Isto é: milita em favor deles uma presunção juris tantum de legitimidade; salvo expressa disposição legal, dita presunção só existe até serem questionados em juízo [...] (MELLO, 2004, p.387)
Os fundamentos do referido atributo são assim resumidos por José dos Santos Carvalho Filho:
Vários são os fundamentos dados a essa característica [presunção de legitimidade]. O fundamento precípuo, no entanto, reside na circunstância de que se cuida de atos emanados de agentes detentores de parcela do Poder Público, imbuídos, como é natural, do objetivo de alcançar o interesse público que lhes compete proteger. Desse modo, inconcebível seria admitir que não tivessem a aura de legitimidade, permitindo-se que a todo momento sofressem algum entrave oposto por pessoas de interesses contrários. Por esse motivo é que se há de supor que presumivelmente estão em conformidade com a lei. É certo que não se trata de presunção absoluta e intocável. [...]. (CARVALHO FILHO, 2006, p.106).
Dentro deste contexto, é correto afirmar que a presunção de legitimidade dos atos administrativos atende, antes de tudo, a uma função de ordem pragmática: a vasta função administrativa não seria de forma alguma bem exercida se a cada ato administrativo exarado houvesse a possibilidade de insurgência indevida e temerária por parte do particular destinatário do ato, obstando-o. Ademais, afigura-se perfeitamente conciliável tal presunção com o Estado de Direito, dentro do qual parece razoável se presumir que a atuação Estatal se dê em consonância com o ordenamento jurídico, ou seja, que os agentes públicos atuem dentro da legalidade.
Em vista de tais considerações, impõe-se reconhecer que a presunção de legitimidade dos atos administrativos é elemento adicional a incutir no particular a convicção de legitimidade (legalidade) do ato que lhe atinge. Representa verdadeira "base de confiança" a ensejar confiança na regularidade dos atos administrativos (MAFFINI, 2006, p.142-144).
A importância da boa-fé para o Direito Administrativo e sua correlação com a presunção de legitimidade não passou despercebida por Weida Zancaner:
Por sua vez, o princípio da boa-fé assume importância capital no Direito Administrativo, em razão da presunção da legitimidade dos atos administrativos, presunção esta que só cessa quando esses atos são contestados, o que coloca a Administração Pública em posição sobranceira com relação aos administrados. Ademais, a multiplicidade das áreas de intervenção do Estado moderno na vida dos cidadãos e a tecnicização da linguagem jurídica tornaram extremamente complexos o caráter regulador do Direito e a verificação da conformidade dos atos concretos e abstratos expedidos pela Administração Pública com o direito posto. Portanto, a boa-fé dos administrados passou a ter importância imperativa no Estado Intervencionista, constituindo, juntamente com a segurança jurídica, expediente indispensável à distribuição da justiça material. É preciso tomá-lo em conta perante situações geradas por atos ilícitos. (ZANCANER, 2001, p.61).
5.3 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: ATOS ADMINISTRATIVOS AMPLIATIVOS DE DIREITOS.
O terceiro e último requisito legal limitativo ao exercício da autotutela administrativa é, segundo a própria literalidade do caput do artigo 54 da lei nº 9.784/99, a necessidade de que o ato administrativo viciado seja benéfico para os seus destinatários. Vale dizer, preenchidos os demais requisitos legais (requisito objetivo: decurso do prazo decadencial de cinco anos; e o requisito subjetivo: boa-fé do destinatário), a prerrogativa anulatória estatal em exame apenas deve ser limitada em casos de: "[...] atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários [...]".
A noção de atos ampliativos de direito não apresenta maiores dificuldades: como a própria denominação está a sugerir, são aqueles atos que não restringem e nem limitam direitos (atos ablativos), mas ao revés, concedem algum tipo de vantagem ao administrado (exemplo típico é o ato concessivo de aposentadoria ou pensão). Cumpre transcrever, neste momento, breve trecho da didática lição de Almiro do Couto e Silva, no que diz com a classificação dos atos administrativos em razão dos efeitos (positivos ou negativos) que produzem para os seus destinatários:
[...] Quando o ato administrativo gera ou reconhece direitos, poderes, faculdades ou vantagem juridicamente relevante ou ainda elimina deveres, obrigações, encargos ou limitações a direitos dos destinatários, dilatando seu patrimônio ou sua esfera jurídica, é ele qualificado como ato administrativo favorável, benéfico ou ampliativo, em oposição aos atos administrativos desfavoráveis, onerosos ou restritivos, que criem deveres, obrigações, encargos, limitações ou restrições para as pessoas a que se endereçam [atos ablativos]. (SILVA, 2005, p. 36).
A definição de atos ampliativos também é bem construída por José Manuel Sérvulo Correia, para quem os referidos atos são aqueles que:
[...] constituam direitos na esfera jurídica do destinatário, eliminem restrições ao exercício de direitos pré-existentes, eliminem ou restrinjam obrigações, ou, ainda, que constituam na esfera jurídica do particular situações jurídicas activas diferentes dos direitos subjectivos, designadamente simples poderes ou faculdades (CORREIA, apud MAFFINI, 2006, p.145)
Ultrapassado este aspecto conceitual, é interessante notar que Weida Zancaner, ao analisar de forma aprofundada a possibilidade de invalidação de atos administrativos, mesmo sem aludir expressamente ao dispositivo legal ora em comento, reconhece a necessidade de serem impostas "barreiras" ao dever de invalidar da Administração Pública, dentre elas, estar o ato a ser invalidado inserido no conceito de ato ampliativo, vale dizer, benéfico a seu destinatário:
[...] a conjugação do princípio da segurança jurídica com o da boa-fé pode gerar outra barreira ao dever de invalidar. É o que sucederá, uma vez decorrido prazo razoável, perante atos ampliativos de direito dos administrados, nos casos em que haja regra hábil para proteger a situação e que lhe teria servido de amparo se tivesse sido produzida sem vício. (ZANCANER, 2001, p.62)
Parece evidente a necessidade de que a limitação à autotutela administrativa refira-se especificamente a atos administrativos benéficos aos destinatários. Extrai-se tal conclusão, antes de tudo, a partir de uma premissa lógica: seria um completo desvirtuamento se conceber o princípio da proteção à confiança para desfavorecer o destinatário do ato administrativo.
Com efeito, é óbvio que apenas aquele que se beneficiar de determinado ato administrativo tem interesse em vê-lo mantido para ser estabilizada sua situação jurídica (criada administrativamente). Em termos mais específicos, a proteção à confiança que se pretende tutelar é justamente aquela que, necessariamente, objetiva limitar a autotutela administrativa a fim de preservar uma situação jurídica favorável ao destinatário do ato.
Partindo-se de tal imperativo lógico, poder-se-ia até imaginar que tal previsão em lei restaria inútil, ou ao menos desnecessária. Contudo, não é o que se passa. Há uma sutileza que não pode passar despercebida: os atos administrativos nem sempre produzem apenas efeitos benéficos (ou apenas efeitos prejudiciais) a um mesmo destinatário; vale dizer, há os atos administrativos mistos (ou de eficácia mista), que produzem ambos os efeitos (positivos – atos ampliativos; e negativos – atos ablativos) [34].
Nestas hipóteses, há quem entenda não ser possível limitar o exercício da autotutela administrativa. Haveria de haver, por conseguinte, efeitos exclusivamente benéficos para o destinatário. Esta é a lição de Rafael Maffini, que compreende a vedação ao exercício da autotutela como uma exceção, de modo a exigir uma interpretação restritiva. Assim, conclui:
[...] quanto ao fato de que pode haver atos administrativos dos quais decorram, a um só tempo e em relação a um mesmo destinatário, efeitos benéficos e efeitos prejudiciais, a solução deveria consistir em não ser aplicado o prazo decadencial previsto no artigo 54 da Lei nº 9.784/99. [...] A implementação do prazo decadencial proibindo a invalidação é verdadeiramente uma exceção à regra. Assim, deve-se interpretar tal exceção restritivamente, ou seja, a decadência somente ocorrerá naquelas hipóteses em que do ato administrativo inválido decorrerem exclusivamente efeitos benéficos ao destinatário, com o que, se coexistentes efeitos ampliativos e ablativos em relação a um mesmo destinatário, a invalidação poderá ocorrer independentemente de qualquer limitação prazal. (MAFFINI, 2006, p.147).
Contudo, permitimo-nos divergir de tal entendimento. Decerto que a aplicação do princípio da proteção à confiança afigura-se excepcional. A regra é, indubitavelmente, a restauração da ordem jurídica pela aplicação do princípio da legalidade administrativa. Tal entendimento já fora, inclusive, consignado em capítulos atrás: há de haver uma nota de atipicidade, de excepcionalidade a fim de que o princípio da legalidade administrativa (e, por conseguinte, o princípio da autotutela administrativa) possa ceder e deixar de ser aplicado em algum caso concreto.
Ocorre, contudo, que tal premissa não conduz à conclusão de inaplicabilidade do artigo 54 da Lei nº 9.784/99 em casos de atos administrativos mistos (ao mesmo tempo ampliativos e ablativos); nem a redação do dispositivo permite inferir que, para sua aplicação, seriam necessários atos exclusivamente benéficos ao destinatário; Ora, se diante de atos mistos (ou de eficácia mista) há dois efeitos perfeitamente identificados, um favorável e outro desfavorável, é perfeitamente plausível que o aplicador da norma possa considerar apenas a parte positiva do ato, preservando-o, sem que isso configure ampliação na interpretação do dispositivo legal em comento.
Decerto, ainda, que se o dispositivo legal não menciona nenhum tipo de exclusividade de efeitos benéficos, inseri-la, interpretativamente, quando da aplicação da norma, representaria assumir uma concepção restritiva de um princípio de gênese constitucional (proteção à confiança).
Ademais, atentando-se para uma conseqüência de ordem pragmática, ao se aceitar a idéia segundo a qual tal dispositivo legal exige que os atos sejam exclusivamente benéficos ao destinatário, estariam desde já excluídas do âmbito da aplicação do princípio da confiança aquelas situações de deferimento parcial de requerimentos formulados no âmbito da Administração Pública, tão comuns no âmbito da atividade administrativa [35].
Em suma, sempre quando possível, não deve ser exigido que do ato administrativo decorram efeitos exclusivamente benéficos para o destinatário. A autoridade aplicadora do ato deve considerar sua parte positiva, para fins de se aplicar o artigo 54 da Lei nº 9.784/99 e limitar a autotutela administrativa (SILVA, 2005, p.36-37) [36].
Da mesma forma, quando o ato for favorável a alguns destinatários e prejudicial a outros, importará o ato na medida em que for ampliativo; vale dizer, na lição de Almiro do Couto e Silva:
Se o ato administrou gerou direito administrativo para alguém ou qualquer outra vantagem juridicamente relevante, não mais poderá ser revogado ainda que seja desfavorável a outrem. Do mesmo modo, bastará que o ato administrativo seja favorável para o destinatário imediato para sujeitar sua anulação, quando ilegal, ao prazo decadencial do art.54 da Lei nº 9.784/99. (SILVA, 2005, p.37).
Decerto que tema tão rico e relevante, atinente ao princípio constitucional da proteção à confiança e sua aplicação como fator limitativo à autotutela administrativa, não se encontra exaurido pelas considerações até aqui formuladas. Importa observar, com efeito, que, diante desta inevitável colisão de princípios constitucionais, urgia se delimitar critérios objetivos (parâmetros) a fim de que eventual ponderação (entre legalidade e proteção à confiança) se efetive com segurança jurídica.
Se, por um lado, passou-se a reconhecer [37] limitações à legalidade administrativa, ampliando sua compreensão para além daquela noção absoluta e imponderável, por outro, houve avanços na sistematização de requisitos que, em determinadas hipóteses, balizam a incidência do princípio da proteção à confiança para fins de se possibilitar a preservação de atos administrativos, apesar de inválidos.
Conquanto a jurisprudência mais recente já venha, em algumas hipóteses, reconhecendo a possibilidade de se limitar a autotutela administrativa, o necessário regramento jurídico, que efetivamente sistematizou parâmetros claros limitativos à prerrogativa anulatória da Administração Pública, foi introduzido pelo artigo 54 da Lei 9.784/99.
Em verdade, o legislador realizou uma ponderação em abstrato: de um lado, o princípio constitucional da proteção à confiança, tendo a seu favor, basicamente, a segurança jurídica a ser atendida presumidamente pelo preenchimento dos três requisitos acima explorados (prazo decadencial de cinco anos, boa-fé do destinatário e atos ampliativos); de outro, o princípio constitucional da legalidade administrativa e o conseqüente poder-dever de autotutela administrativa.
Dentro de tal contexto, considerando a magnitude do que se está a ponderar, afigura-se completamente inviável, sob a ótica constitucional, se invocar atualmente a teoria do ‘fato consumado’ para se justificar a manutenção de situações criadas sob o manto da ilegalidade. Tal argumentação há muito freqüente em nossa jurisprudência, parece agora, efetivamente, ter restado abandonada [38].
Primeiro, porque já se é possível reconhecer e delimitar o conteúdo jurídico do princípio da proteção à confiança, elevando-o à categoria de princípio constitucional; segundo, porque a noção de ‘fato consumado’ parte de uma argumentação difusa, inconsistente, sem critérios precisos, violando, por certo, qualquer noção que se possa ter segurança jurídica; afinal, o que seria o tal fato consumado? Quando estaria efetivamente consumado o fato? A noção elástica e sem rigor técnico do que venha a ser ‘fato consumado’ não contribui para o desenvolvimento da resolução de conflitos envolvendo princípios constitucionais; e terceiro, porque um ato ilegal não passa a ser legal única e exclusivamente pelo decurso do tempo; são necessários outros requisitos (conforme foram detalhados neste capítulo).
Enfim, por tudo isso, impõe-se reconhecer que a tutela jurídica de valores constitucionais requer sistematização de requisitos e parâmetros precisos, aptos a balizar o exercício de uma eventual de ponderação.