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Normas de referência do saneamento básico: possibilidades e limites

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O saneamento básico é um desafio que envolve interesses políticos, custos econômicos, necessidades sociais, condições científicas e impactos ambientais, exigindo uma análise abrangente.

No discurso coloquial, chamamos um homem de “feliz” quando consegue atingir seus fins. Uma descrição mais adequada deste estado seria dizer que está mais feliz do que era antes.

Não há, no entanto, qualquer objeção válida quanto ao costume que define a ação humana como a luta pela felicidade. Mas devemos evitar os mal-entendidos de praxe. A meta última da ação humana é sempre a satisfação do desejo do homem agente.

Não há outro parâmetro de maior ou menor satisfação que não seja os julgamentos individuais de valor, diferentes para várias pessoas e para as mesmas, em momentos distintos. O que faz um homem sentir-se desconfortável ou menos desconfortável é estabelecido por ele a partir do padrão de sua própria vontade e julgamento, de sua avaliação pessoal e subjetiva. Ninguém está em posição de decretar o que faria alguém mais feliz.

Estabelecer este fato não nos leva, de forma alguma, às antíteses de egoísmo ou altruísmo, materialismo ou idealismo, ateísmo ou religião. Há pessoas cujo único intento é melhorar as possibilidades de seu próprio ego. Há outras a quem a consciência dos problemas de seus semelhantes causa tanto ou ainda mais desconforto do que suas próprias urgências.

Há pessoas que desejam tão-somente a satisfação de seus apetites na relação sexual, comida, bebida, uma casa boa e outros bens materiais. Mas outros homens se importam acima de tudo com satisfações comumente “elevadas” ou “ideais”.

Há indivíduos ansiosos por ajustar suas ações às demandas de cooperação social; e, por outro lado, há os tipos refratários, que desprezam as regras da vida em sociedade.

Há aqueles para quem o objetivo final da peregrinação terrena é a preparação para uma vida de bem-aventurança. E outros que não acreditam nos ensinamentos de nenhuma religião e não deixam que tais ensinamentos influenciem suas ações.

(Ludwig von Mises)1


1. Principiei esta intervenção com a longa passagem de Ludwig von Mises porque nela estão contidas mensagens que transmitem, direta e indiretamente, os motivos pelos quais estamos aqui reunidos.

2. Colho da oportunidade para agradecer aos organizadores o honroso convite para participar deste evento.

3. O saneamento básico aciona algumas palavras-gatilho: desafio, talvez seja a primeira delas. Outra que nos vêm à mente é utopia. E por fim penso que civilidade seja o terceiro gatilho acionado.

4. Todos aqueles que atuamos e militamos na área do saneamento básico temos ciência, consciência e experiência do que esse tema representa.

5. Além dessas citadas palavras-gatilho (desafio, utopia e civilidade), o saneamento básico nos convida a consideramos:

5.1. Os interesses dos políticos e as conveniências políticas;

5.2. Os custos de eficiência econômica;

5.3. As prioridades e as necessidades sociais;

5.4. As condições científicas e tecnológicas;

5.5. Os impactos ambientais e climáticos; e

5.6. As possibilidades legais.

6. As enormes dificuldades são um terreno fértil para o método de análise PESTAL 2, que foi incialmente desenvolvido por Francis Aguilar3.

7. Senhoras e senhores, ao tratar de saneamento básico, estamos a surpreender os seguintes termos: felicidade, desafio, utopia e civilização.

8. E, sob as luzes do aludido método PESTAL, devemos considerar os aspectos políticos, econômicos, sociais, tecnológicos, ambientais e legais, ao enfrentar essa temática.

9. Na qualidade de procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), nesta intervenção, devo me restringir aos aspectos jurídicos das normas de referência. Ou seja, cuido da legalidade jurídica dessas normas. Nada obstante, visitaremos outros domínios extrajurídicos.

10. Indago: por que faremos esse percurso? Respondo: porque a ANA, no processo de edição das suas normas de referência, tem procurado levar em consideração todos esses aludidos aspectos: políticos, econômicos, sociais, tecnológicos, ambientais e legais.

11. Os homéricos desafios, que uma vez superados, podem viabilizar a utópica felicidade civilizatória, que será concretizar o pleno e universal acesso de todos os brasileiros aos serviços públicos de saneamento básico, exigem uma prudente sabedoria. As manifestações da Procuradoria devem ser pautadas pelo consequencialismo, pelo realismo e pelo pragmatismo jurídico.

12. Reafirmo: na qualidade de procurador-geral cuidamos da legalidade e da juridicidade, mas não devemos ser indiferentes aos agitados aspectos políticos, econômicos, sociais, tecnológicos e ambientais.

13. Conquanto sejam os aspectos legais os últimos do método PESTAL , iniciarei por eles, em vista das funções que exerço na Agência. Como Procurador-Geral tenho dupla vinculação. Sou vinculado à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico e à Advocacia-Geral da União. Os membros da AGU devemos ser os defensores da lícita e da legítima legalidade federal.

14. Com efeito, a Lei é a nossa matéria-prima. Mas a Lei não é exclusividade da Procuradoria. A Lei deve ser para todos. O Estado de Direito deve ser o da igual e justa legalidade.4 A Lei é o ponto de partida (o alfa) e, ao mesmo tempo, o ponto de chegada (o ômega) na atuação da Procuradoria da ANA. Agência, no processo de edição das normas de referência no saneamento básico, tem na Lei Jurídica um aspecto a ser considerado, repetimos.

15. Mas o que seria uma norma de referência? Para responder, irei me louvar no magistério doutrinário de Eros Roberto Grau5. Normas de referência consistem em um conjunto de preceitos que estabelecem determinadas diretivas e determinadas condições para a consecução de determinados fins ou para a obtenção de determinadas vantagens.

16. Indago: tais normas são cogentes e imperativas? Essas normas proíbem ou obrigam de modo vinculante os seus destinatários? Respondo: segundo o estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal essas normas de referência estão dentro do denominado direito premial, porque visam incentivar comportamentos adequados e, por conseguinte, desestimular condutas inapropriadas.

17. As normas de referência do saneamento básico têm como destinatários os titulares, os prestadores e as entidades reguladoras e fiscalizadoras desses serviços públicos. A Lei 9.984/2000 elenca o extenso rol das matérias que serão alcançadas pelas normas de referência da ANA e as suas atribuições no tocante ao saneamento básico.6

18. O STF tem reconhecido o poder normativo das Agências Reguladoras. Esse poder consiste em uma maior liberdade de ação na decisão regulatória. Segundo o Tribunal, a função normativa das agências reguladoras não se confunde com a função regulamentadora da Administração, tampouco com a figura do regulamento autônomo.7 Todavia, a Agência não pode inovar primariamente o ordenamento jurídico sem expressa delegação legal.8

19. Eis, portanto, a bússola que norteia a ANA: a impossibilidade de inovar o ordenamento jurídico e a possibilidade de agir com maior grau de autonomia, respeitando a legislação federal. Nós, da Procuradoria da ANA, na elaboração de nossas manifestações jurídicas temos levado em consideração essas balizas.

20. Fincadas essas estacas legais, visitemos os aspectos políticos. A Política consiste no arranjo institucional construtor de consensos possíveis no seio dos dissensos existentes. Na Democracia, a Política permite o exercício legítimo e lícito do poder do Estado (ou governamental). Só é democrático o regime político no qual as pessoas não têm medo nem receio do exercício arbitrário e abusivo do Poder, seja o legislativo, seja o executivo, seja o judicial (sobretudo deste último). Em regimes verdadeiramente democráticos, nos quais há plena e irrestrita liberdade, não há criminalização das opiniões e dos discursos, por mais odiosos e execráveis que sejam. Em uma democracia, ninguém deve ter medo de falar ou de escrever o que pensa. E ninguém deve ter medo dos magistrados dos tribunais, sobretudo da mais alta Corte. Devemos respeitá-los, nunca temê-los.9

21. Como todos nós sabemos, em 15 de julho de 2020, foi publicada a Lei n. 14.026, que instituiu o novo marco legal do saneamento básico. A aprovação dessa Lei resultou de um complicado processo de construção de consensos políticos no seio do Congresso Nacional.10 Em que pese fosse unânime o reconhecimento de que o velho modelo tenha fracassado em sua finalidade de viabilizar o pleno e universal acesso a esse serviço público, os múltiplos personagens envolvidos demoraram em construir uma solução política e legislativa tida como ótima, dadas as circunstâncias e os contextos.

22. Não nos esqueçamos que a aprovação desse novo marco legal foi influenciada pela decisão do STF na ADI 1.842.11 Nesse julgado, apenas para recordar, o Tribunal dissipou quaisquer dúvidas relativas ao titular do serviço público de saneamento básico. O Município é o titular desse serviço público e, por consequência, detém o poder concedente.

23. E por falar em Municípios, neste mês de outubro do corrente ano de 2024, os eleitores brasileiros escolheram os prefeitos, os vices e os vereadores que terão a missão de legislar, governar, administrar e fiscalizar as nossas localidades políticas. A partir do próximo dia 1º de janeiro de 2025, e pelos próximos quatro anos, teremos 5.569 prefeitos e seus respectivos vices, assim como em torno de 58.400 vereadores nas edilidades municipais. Temos milhares de alcaides e dezenas de milhares de edis. Não temos carência de políticos.

24. Pois bem, prefeitos e vereadores, assim como o presidente, os governadores, os senadores e os deputados, são políticos. E os políticos são homens e mulheres de carne e osso, com vícios e virtudes, com necessidades e desejos, portanto demasiadamente humanos, e são, como todos nós, falíveis e corruptíveis.

25. Daí que toda ação política, no concernente à concretização do pleno e universal acesso ao saneamento básico, dependerá muito mais das pressões e cobranças dos seus eleitores do que do voluntário cumprimento das leis. Regra geral, nós cumprimos as leis muito mais porque somos obrigados a respeitá-las do que porque concordemos com elas ou queiramos espontaneamente cumpri-las.

26. Sem embargo da relevância das pressões dos eleitores e cidadãos, a ANA firmou termos de cooperação com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e com o Instituto Rui Barbosa (IRB), este último que vem a ser uma associação civil fundada pelos Tribunais de Contas brasileiros.

27. Essas parcerias visam a mútua capacitação e o desenvolvimento de estratégias integradas em ações de implementação do saneamento básico, de sorte a estimular o envolvimento e a ação dos membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas.12 A OAB, as Defensorias Públicas e demais instituições republicanas e organizações da sociedade civil também são muito bem-vindas nessa jornada pelo saneamento básico. Ou seja, além da pressão popular dos eleitores e cidadãos, se faz necessária a pressão das outras autoridades com todo o seu poderoso arsenal sobre os políticos municipais, estaduais e federais.

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28. A hercúlea tarefa que vem a ser a universalização do saneamento básico requer o envolvimento de muitos atores e do uso de todos os instrumentos disponíveis. Nessa perspectiva, reafirmamos que os interesses dos políticos e as conveniências políticas devem ser levados em consideração no processo de consolidação do acesso saneamento básico. Sem vontade e sem ação política o novo marco legal ficará apenas no papel, desgraçadamente. E reiteramos que a ANA não é indiferente a esses relevantes aspectos da realidade.

29. Após a superação dos obstáculos políticos, o novo marco legal foi questionado perante o STF.13 Anteriormente, por ocasião do julgamento da mencionada ADI 1.84214, o Tribunal já tinha assinalado que:

Nada obstante a competência municipal do poder concedente do serviço público de saneamento básico, o alto custo e o monopólio natural do serviço, além da existência de várias etapas – como captação, tratamento, adução, reserva, distribuição de água e o recolhimento, condução e disposição final de esgoto – que comumente ultrapassam os limites territoriais de um município, indicam a existência de interesse comum do serviço de saneamento básico. A função pública do saneamento básico frequentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum no caso de instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões...

Para o adequado atendimento do interesse comum, a integração municipal do serviço de saneamento básico pode ocorrer tanto voluntariamente, por meio de gestão associada, empregando convênios de cooperação ou consórcios públicos...., como compulsoriamente, nos termos em que prevista na lei complementar estadual que institui as aglomerações urbanas. A instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões pode vincular a participação de municípios limítrofes, com o objetivo de executar e planejar a função pública do saneamento básico, seja para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, seja para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos.

...

O interesse comum é muito mais que a soma de cada interesse local envolvido, pois a má condução da função de saneamento básico por apenas um município pode colocar em risco todo o esforço do conjunto, além das consequências para a saúde pública de toda a região.

30. Ao enfrentar a questão do novo marco legal do saneamento básico, o STF assentou a plena validade da Lei 14.026/2020.15 Nesse julgamento, o Tribunal chancelou as novas competências atribuídas à ANA, especialmente no que diz respeito à edição das normas de referência. Relembro que a Corte estabeleceu, em síntese, o caráter não vinculativo dessas normas. Todavia, segundo o Tribunal, essas normas de referência servem de incentivos para a adoção das melhores práticas regulatórias nos níveis subnacionais, com a articulação de um ambiente regulatório policêntrico (voto min. Luiz Fux).

31. Segundo a Lei e confirma o STF, somente será premiado quem atender às normas de referência da ANA. E a sua adoção revela um compromisso com a segurança jurídica e higidez regulatória.

32. Vejam, senhoras e senhores, sobre a ANA são depositadas muitas expectativas: a edição de normas que sejam capazes de estimular, induzir e viabilizar o acesso universal ao saneamento básico. O prestígio institucional e a respeitabilidade da Agência estão em evidência.

33. E para encerrar esse capítulo da judicialização, recordamos que ainda tramitam no STF as ADPF’s ns. 1.05516 e 1.05717, que questionam a validade dos Decretos ns. 11.466. e 11.467, ambos de 2023. Sucede, todavia, que esses Decretos foram respectivamente revogados pelos Decretos ns. 11.598. e 11.599, ambos de 2023. Em princípio, houve perda de objeto dessas ações ante a inexistência jurídica dos decretos impugnados. Aguardemos o posicionamento pretoriano.

34. Esses vigentes Decretos 11.598 e 11.599 cuidam, respectivamente, da

metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário que detenham contratos em vigor, com vistas a viabilizar o cumprimento das metas de universalização; e sobre a prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico; da alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União; e o apoio técnico e financeiro para adaptação dos serviços públicos de saneamento básico.

35. Recentemente, a Corte julgou os embargos declaratórios da ADC 4218, que analisou o Código Florestal (Lei 12.651/2012), e no que nos interessa imediatamente decidiu:

(ii) atribuir efeitos prospectivos à declaração de inconstitucionalidade da expressão "gestão de resíduos" constante do artigo 3º, VIII, b, da Lei federal 12.651/2012 (Código Florestal), de sorte a possibilitar que os aterros sanitários já instalados, ou em vias de instalação ou ampliação, possam operar regularmente dentro de sua vida útil, sempre pressupondo o devido licenciamento ambiental e a observância dos termos e prazos dos contratos de concessão ou atos normativos autorizativos vigentes na data deste julgamento (24.10.2024). Consectariamente, não é necessário retirar, após o fechamento da unidade, o material depositado, observadas todas as normas ambientais aplicáveis.

36. Vistos os aspectos políticos, passemos aos econômicos. Com espeque no magistério de Thomas Sowell19, podemos enunciar que a Economia é o estudo da alocação eficiente de recursos escassos, que podem ter usos múltiplos, para a satisfação de necessidades infinitas. Só existe economia onde existe a imperiosa necessidade de economizar diante da escassez.

37. E o exercício do poder político não deve desprezar os custos de eficiência nem as consequências das suas decisões. Todos sabemos dos custos da universalização do saneamento básico. As ambiciosas e urgentes metas estão delineadas no Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) 20. Pois bem, segundo o estudo realizado pela KPMG, em parceria com a ABCON, são necessários R$ 753 bilhões de reais de investimentos, tanto públicos quanto privados, para atingir as metas para a universalização até o ano de 2033. 21

38. Há uma obviedade ululante que deve sempre ser relembrada: há uma carência de recursos econômicos (financeiros e humanos). É preciso fazer escolhas diante dessa escassez. É preciso saber economizar. Como os políticos agirão?

39. Insisto na mesma cantilena: políticos (assim como todos nós) são de carne e osso! Parafraseio o judeu Shylock, personagem da peça O Mercador de Veneza, de William Shakespeare22, e digo que se fizermos cócegas neles, eles irão rir, assim como se lhes perfurarmos, eles irão sangrar. E, ainda louvando-me na referida peça, não é possível cortar uma libra de carne sem derramar nem que seja uma única gota sangue.

40. Para viabilizar a universalização do saneamento básico, é preciso cortar em outros setores e sacrificar outras necessidades sociais. Os recursos são finitos, mas as necessidades são infinitas. Onde cortar e o quanto a ser cortado, eis a dolorosa missão dos políticos. Eles - os políticos - são cobrados muito mais pelos resultados de suas ações do que pelas suas intenções ou pelos seus propósitos, como tinha percebido, há mais de 500 anos, Maquiavel23.

41. Vimos o aspecto político. Passemos para o aspecto social. Este evento é mais uma prova insofismável de que a sociedade civil organizada abraçou o saneamento básico.

42. Tenha-se que a ANA deve elaborar a Análise de Impacto Regulatório (AIR) e deve realizar consultas ou audiências públicas no processo de elaboração das suas normas de referência do saneamento básico.

43. Segundo o Decreto 10.411/2020, a Análise de Impacto Regulatório é o procedimento, a partir da definição do problema regulatório, de avaliação prévia à edição dos atos normativos que conterá informações e dados sobre os seus prováveis efeitos, para verificar a razoabilidade do impacto e subsidiar a tomada de decisão.

44. Já a consulta pública é o instrumento de apoio à tomada de decisão por meio do qual a sociedade é consultada previamente, por meio do envio de críticas, sugestões e contribuições, por quaisquer interessados, sobre proposta da norma regulatória.

45. E a audiência pública o instrumento de apoio à tomada de decisão por meio do qual é facultada a manifestação oral por quaisquer interessados em sessão pública previamente destinada a debater matéria relevante.

46. A ANA coloca-se à aberta à sociedade para a elaboração da melhor norma regulatória possível. Com essa abertura à sociedade, podemos sempre comparar práticas e índices.

47. Segundo o instituto Trata Brasil e a GO associados, Maringá – PR está em 1º lugar no ranking de melhores serviços de saneamento básico; já o município de Porto Velho – RO está na última posição nesse ranking.24 Qual o caminho devemos trilhar?

48. A partir dos êxitos de Maringá replicar tais experiências para Porto Velho e para todas as demais cidades que necessitam melhorar os seus respectivos índices. E por que adotar essa estratégia de ação? Respondo: porque somos capazes de sermos fraternos com os menos afortunados, e porque todos ganharemos com a universalização do acesso ao saneamento básico, e com a consequente diminuição das doenças decorrentes da ausência desse serviço, com a melhoria educacional, redução da criminalidade, expansão da indústria, do comércio e do turismo, incremento da economia e tudo o mais de positivo que advém dessas medidas.

49. O saneamento básico é, a um só tempo, uma conquista científica e tecnológica bem como um avanço civilizatório que viabiliza a dignidade da pessoa humana. Se diz respeito ao ser humano, diz respeito a todos nós. É bem verdade que em todos os lugares e em todos os tempos sempre teremos vícios, crimes e pecados. Ou seja, sempre conviveremos com viciados, criminosos e pecadores. Mas isso não deve ser o obstáculo para a nossa moralidade civilizatória. Não somos anjos celestiais e tampouco demônios infernais. Somos humanos: um pouco de anjo e um pouco de demônio.

50. Como testemunho das várias facetas da humanidade das pessoas, trago à colação as pungentes lembranças de Viktor Frankl25, médico judeu, que sentiu no couro e na alma, os horrores dos campos de concentração nazista:

Quero mencionar aqui apenas o chefe do último campo de concentração em que estive e do qual fui libertado. Ele era integrante da SS. Após a libertação daquele campo, constatou-se um fato que somente o médico do campo – ele mesmo um prisioneiro – tinha conhecimento até ali. O chefe do campo dera, em segredo, considerável soma de dinheiro do próprio bolso para que se pudessem arranjar medicamentos para os reclusos na farmácia do lugarejo mais próximo.

Essa história ainda teve um epílogo. Após a libertação, prisioneiros judeus esconderam esse homem da SS das tropas americanas e declararam a seu comandante que o entregariam sob a condição de não se tocar em um só fio de seu cabelo sequer.

O comandante das tropas americanas deu-lhes então sua palavra de honra como oficial militar, e os prisioneiros judeus lhe apresentaram o ex-chefe do campo. O comandante das tropas reintegrou esse homem da SS em seu cargo de chefe do campo, e ele organizou então para nós coletas de gênero alimentícios e de agasalho entre a população dos vilarejos circunvizinhos. Em contrapartida, o preposto justamente daquele campo, ele mesmo um prisioneiro judeu, foi mais brutal que todos os guardas da SS do campo juntos. Batia nos prisioneiros quando, onde e como pudesse, ao passo que o chefe não levantou o punho sequer uma vez, ao que eu saiba, contra qualquer dos “seus” prisioneiros....

Sem dúvida, a vida no campo de concentração ensejava o rompimento de um abismo nas profundezas extremas do ser humano. Não deveria surpreender-nos o fato de que essas profundezas punham a descoberto simplesmente a natureza humana, o ser humano como ele é – uma liga do bem e do mal...

Ficamos conhecendo o ser humano como talvez nenhuma geração humana antes de nós. O que é, então, um ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é. É o ser que inventou a câmara de gás; mas é também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios.

51. Após esse impressionante e comovente relato do aspecto social, e humano, passemos ao aspecto tecnológico.

52. Os direitos fundamentais podem ser divisados, quanto à essência, em três categorias: naturais, morais e artificiais.26 Os direitos fundamentais naturais são aqueles instintivos e inerentes à condição humana, como o direito à vida. Os direitos fundamentais morais são aqueles decorrentes dos avanços da decência civilizatória, como os direitos de proteção aos naturalmente vulneráveis. E, por fim, os direitos fundamentais artificiais são aqueles que decorrem dos avanços tecnológicos e científicos de uma comunidade, como o acesso ao saneamento básico. 27

53. O saneamento básico pressupõe avanços científicos e tecnológicos. E esses avanços dependerão de recursos econômicos e de decisões políticas, mas não apenas dos políticos. É uma decisão da sociedade comprometida com a decência civilizatória.

54. A Lei 11.445/2007, como todos sabemos, estabelece as diretrizes dos serviços públicos do saneamento básico bem como no que eles consistem.28 Resumidamente, o saneamento básico é um conjunto de serviços públicos, infraestrutura e instalações operacionais de abastecimento de água potável, de esgotamento sanitário, de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas.

55. E não restam dúvidas que isso perpassa pelos aspectos ambientais. Ocioso relembrar que os investimentos em saneamento básico melhoram a situação ambiental das pessoas beneficiadas. O homem é o centro da criação divina. A humanidade é a razão de ser da proteção e dos cuidados com o meio ambiente. O ambiente é um meio de sobrevivência e bem-estar do homem, razão de ser da existência do Mundo, quiçá do próprio Universo.

56. Também não devemos nos esquecer que a água é, antes de tudo, um bem público ambiental. E é um bem escasso por natureza que deve ser utilizado com eficiência, efetividade e economicidade.

57. Como anunciamos, a ANA tem considerados todos esses aspectos (os políticos, os econômicos, os sociais, os tecnológicos, os ambientais e os legais). A Agência já editou 9 normas de referência, além de outros provimentos relevantes, como o relativo à mediação dos conflitos no setor do saneamento básico. 29 E ainda há um considerável estoque de temas a ser normatizado.

58. Senhoras e senhores, além da edição de normas de referência no saneamento básico, a ANA cuida da gestão dos usos múltiplos dos recursos hídricos nos rios de domínio da União, da segurança de barragens nesses rios, bem como de eventos extremos, como inundações ou secas, dentre outros relevantes assuntos para a sociedade brasileira. Ou seja, pesada é a carga de responsabilidades sobre a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. Felizmente, a ANA possui um quadro de homens e mulheres com ombros fortes, que sabem suportar o peso dessas responsabilidades e que são comprometidos com o Brasil.30

59. Para alívio das senhoras e dos senhores, e para não mais abusar da paciência desse distinto auditório, já está na hora de finalizar. Como mensagem final, lanço mão de Ruy Barbosa31, em texto publicado no longínquo ano de 1919, mas absurdamente atual:

O Brasil não é isso

Mas senhores, se é isso que eles vêem, será isto, realmente, o que nós somos? Não seria o povo brasileiro mais do que esse espécime de caboclo mal desasnado, que não se sabe ter de pé, nem mesmo se senta, conjunto de todos os estigmas de calaçaria e da estupidez, cujo voto se compre com um rolete de fumo, uma andaina de sarjão e uma vez d’aguardente?

Não valerá realmente mais o povo brasileiro do que os conventilhos de advogados administrativos, as quadrilhas de corretores políticos e vendilhões parlamentares, por cujas mãos corre, barateada, a representação da sua soberania?

Deverão, com efeito, as outras nações, a cujo grande conselho comparecemos, medir o nosso valor pelo dessa troça de escaladores de poder, que o julgam ter conquistado, com a submissão de todos, porque, em um lance de roleta viciada, empalmaram a sorte e varreram a mesa?Não. Não se engane o estrangeiro. Não nos enganemos nós mesmos. Não! O Brasil não é isso. Não! O Brasil não é o sócio do clube, de jogo e de pândega dos vivedores, que se apoderaram da sua fortuna, e o querem tratar como a libertinagem trata as companheiras momentâneas da sua luxúria. Não! O Brasil não é esse ajuntamento coletício de criaturas taradas, sobre que possa correr, sem a menor impressão, o sopro das aspirações, que nesta hora agitam a humanidade toda. Não!

O Brasil não é essa nacionalidade fria, deliquescente, cadaverizada, que receba na testa, sem estremecer, o carimbo de uma camarilha, como a messalina recebe no braço a tatuagem do amante, ou a calceta, no dorso, a flordelis do verdugo. Não! O Brasil não aceita a cova, que lhe estão cavando os cava dores do Tesouro, a cova onde o acabariam de roer até os ossos os tatus canastras da politicalha. Nada, nada disso é o Brasil.

O que é o Brasil

O Brasil não é isso. É isto. O Brasil, senhores, sois vós. O Brasil é esta assembléia. O Brasil é este comício imenso de almas livres. Não são comensais do erário. Não são as ratazanas do Tesouro. Não são os mercadores do Parlamento. Não são as sanguessugas da riqueza pública. Não são os falsificadores de eleições. Não são os compradores de jornais.

Não são os corruptores do sistema republicano. Não são os oligarcas estaduais. Não são os ministros de tarraxa. Não são os presidentes de palha. Não são os publicistas de aluguer. Não são os estadistas de impostura. Não são os diplomatas de marca estrangeira. São as células ativas da vida nacional. É a multidão que não adula, não teme, não corre, não recua, não deserta, não se vende. Não é a massa inconsciente, que oscila da servidão à desordem, mas a coesão orgânica das unidades pensantes, o oceano das consciências, a mole das vagas humanas, onde a Providência acumula reservas inesgotáveis de calor, de força e de luz para a renovação das nossas energias.

É o povo, em um desses movimentos seus, em que se descobre toda sua majestade.

60. Com razão, o velho e insuperável Ruy Barbosa, pai fundador de nossa maltratada democracia republicana. A presença das senhoras e dos senhores neste seminário comprova isso. Quem se preocupa com o saneamento básico, se preocupa com o Brasil e com os brasileiros, sobretudo com os mais vulneráveis. Nós que estamos aqui, neste I Seminário Estadual de Direito do Saneamento Básico do Maranhão, e nos preocupamos com essa necessidade civilizatória, representamos o que há de melhor nos brasileiros.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. Normas de referência do saneamento básico: possibilidades e limites. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7797, 5 nov. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/111532. Acesso em: 21 nov. 2024.

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