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Análise da competência constitucional legislativa concorrente na pandemia da Covid-19 e os efeitos no federalismo brasileiro após o posicionamento do STF na ADI 6341

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A gravidade da pandemia, aliada às limitadas respostas do Governo Federal à crise sanitária, levou Estados e Municípios a tomar e coordenar ações para combatê-la em nível local. Analisam-se os conflitos políticos e judiciais sobre as medidas de isolamento adotadas entre os entes federados.

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341-DF que trata sobre a competência constitucional legislativa concorrente dos entes federados. Essa análise foi feita em comparação com o que dispõe a Constituição Federal/88 e as decisões do Supremo Tribunal Federal em tempos comuns e em tempos de anormalidade. Metodologicamente, a pesquisa é qualitativa e tem como fontes levantamentos bibliográficos e literários, especialmente pesquisas jurisprudenciais. As decisões apresentadas ao longo do artigo visam demonstrar os efeitos causados na organização do Estado federal brasileiro e quais papeis devem ser desenvolvidos pela União, os Estados e Municípios no enfrentamento da crise sanitária.

Palavras-chave: Competência Legislativa Concorrente. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Federalismo Brasileiro. Saúde. Covid-19


1.INTRODUÇÃO

É inquestionável que a forma como um Estado monta seu território e edifica o poder político tem como base a essência e a cronologia de cada país. A forma organizacional do Estado - unitário, federal ou confederado - representa a divisão de competências que leva em conta a sua formação geral, seus níveis de poder, sua unidade e o compartimento de competências no âmbito de cada área pertencente.

A evolução do federalismo brasileiro foi conturbada ao longo dos anos assim como o processo de evolução do país. Ao alternar entre períodos democráticos, de lutas e direitos alcançados e entre períodos de ideais nazifascistas e ditatoriais, com perda de direitos políticos, suspensão de direitos individuais marcados por atos institucionais, o federalismo acabou sendo prejudicado. Ora desenvolvendo de fato seu objetivo de coordenação e distribuição de recursos e competências, ora limitado à centralização imposta pelos períodos históricos (FERREIRA, 2017).

Contudo, analisando especialmente o art. 23 da CRFB/88, é possível apreender que a Constituição de 1988 trouxe estabilidade com a democracia e um federalismo cooperativo, que consiste na atuação dos entes federativos nas decisões políticas, com suas competências e as receitas que lhes foram constitucionalmente repartidas e atribuídas.

Um fator inesperado, como a pandemia do Covid-19, surpreendente para o mundo, trouxe mudanças significativas na vida pública e privada brasileira. Esse fenômeno afetou não somente a saúde, mas as esferas da política, da economia, e das políticas públicas. Com o federalismo não foi diferente. A falta de uma resposta central coordenada e organizada na esfera federal para conter a proliferação do Sars-CoV-2 tem levado a múltiplas respostas por parte de Estados e Municípios diante dessa crise.

Em muitos momentos, o Executivo federal questionou diretamente a demanda dos outros entes em tomar medidas de restrições, como o isolamento, inaugurando uma discussão sobre o sistema federal brasileiro. Esse sistema no pré-período pandêmico, com base na Constituição e na atuação do Poder Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal (STF), previa uma centralização nos poderes do governo federal para dispor, orientar e implementar políticas públicas, como discutir-se-á mais à frente. Dessa forma, estados e municípios ficavam restritos aos planos gerais.

Entretanto, o estado de calamidade pública instalado pela Covid-19 causou um aumento significativo nas demandas por prestação de serviços de saúde para Estados e Municípios e, como consequência, conflitos federativos discutidos no STF. Nesse diapasão, o STF revelou uma reorientação, através do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 6341-DF (BRASIL,2020), transformando sua jurisprudência para a adoção de uma descentralização mitigada, adequando à realidade fática do país.

Portanto, este artigo é vertido à análise acerca da competência constitucional legislativa concorrente, na interpretação do Supremo Tribunal Federal, no tema de proteção e defesa da saúde, discutido na ADI 6341-DF (BRASIL,2020). Vale notar, que o presente trabalho utiliza do método hipotéticodedutivo, sendo uma pesquisa metodológica bibliográfica que envolve leis, jurisprudências e doutrina; e quanto ao objeto uma abordagem que é qualificada como descritiva e qualitativa.


2.FEDERALISMO BRASILEIRO

2.1 CONCEITO E ORIGEM

O Estado federal, segundo Dalmo de Abreu Dallari (2011, p. 227), pode ser definido como uma aliança ou união de Estados. A palavra federação vem do latim, foedus, que significa contrato, pacto. Partindo dessa premissa, o federalismo em seu aspecto formal é uma forma de organização do poder político no Estado nacional, tendo como principal característica um maior grau de descentralização do poder, uma vez que existe mais de um centro de poder detentor de autonomia política, administrativa, legislativa, orçamentária.

O federalismo brasileiro, que foi consolidado pela Constituição de 1891 (BRASIL,1891), formou-se pela segregação, ou seja, foi fruto da descentralização do poder político em um Estado unitário, fruto do movimento centrífugo instituído por Decreto nº 2. Artigo 1 de 15/11, 1889, transformando a antiga província em um estado membro da união indivisível (HORBACH, 2013, p. 9).

Nessa Constituição brasileira de 1891, também ficou especificado o acervo patrimonial de todo território da federação, bem como a repartição de competências com poderes privativos. Em seu art. 6º, evidenciou a vedação à secessão, trazendo a hipótese de intervenção federal à força com a justificativa de manter o estado federado.

Entretanto, as próximas constituições brasileiras, como as de 1934 (BRASIL,1934) e de 1937(BRASIL,1937), levando em consideração o contexto histórico que estavam inseridas, tiveram um viés que retornava ao centralismo, com restrições à autonomia política e administrativa dos Estados membros. Além disso, a presença do governo federal para a solução de problemas econômicos dos Estados-membros era tida como fundamental, o que foi considerado um retrocesso.

Já sob a vigência da Constituição de 1946 (BRASIL,1946), retornou oficialmente a autonomia administrativa e política dos Estados membros e trouxe o federalismo cooperativo. Esse federalismo foi caracterizado por uma maior entrega de recursos federais aos Estados-membros e Municípios, bem como pelo fato de a União concentrar os maiores poderes nacionais de decisão política, administrativa e legislativa (SCHULTZE, 2016).

Entretanto, esse cenário foi mais uma vez afetado pelo golpe militar de 1964. A Constituição de 1967/1969 estabeleceu um sistema federal que era apenas nominal porque os poderes da União eram tão ampliados que não restava praticamente nada para os outros entes federativos.

Com a retomada da democracia e a promulgação da Constituição Federal de 1988, o federalismo nacional voltou a ser cooperativo, pois a sua estrutura determina que as decisões políticas sejam tomadas nos três níveis de governo. A parte fundamental desta estrutura são a distribuição de competências (que podem ser legislativas ou administrativas) e o compartilhamento de receita.

No artigo 24 da CRFB/88, o modelo fica ainda mais evidente, pois se trata da competência concorrente entre os entes, o que traz muitas hipóteses de construção de um Estado Democrático de Direito. De acordo com José Afonso da Silva (2013), a Constituição Federal de 1988 visa salvaguardar os princípios do federalismo e estabelecer um sistema de divisão de poderes, tentando corrigir o desequilíbrio de poder entre os três níveis de governo da federação.

Essa nova atribuição do poder estadual se baseia no princípio da vantagem do interesse na divisão de poderes entre os entes federados, ou seja, à União passaria a competir o que fosse de interesse nacional; aos Estados, assuntos de âmbito regional; e aos Municípios, assuntos de interesse local. Ademais passou a estruturar um modelo de federalismo cooperativo que parte do conceito básico da incapacidade dos entes federais de planejar e implementar as políticas públicas necessárias ao cumprimento da atribuição que lhes é conferida pela Constituição Federal (SCHIER et al., 2018, p. 221).

2.2 FEDERALISMO BRASILEIRO E DEMOCRACIA

A democracia é uma condição necessária para a eficácia do federalismo, vez que por meio desse regime é garantida a autonomia das unidades territoriais em relação ao governo central, e assim, os demais entes - fundados no princípio da descentralização política - constroem seu autogoverno. Com base nisso, é de fácil conclusão que em regimes autoritários só é possível a forma unitária de Estado, pois a concentração do poder é indispensável para a manutenção do autoritarismo.

A rigor, apenas um sistema democrático constitucional pode fornecer garantias credíveis e mecanismos institucionais para ajudar a garantir que os privilégios legislativos dos Estados-membros sejam respeitados (STEPAN, 1999, p. 197).

Assim, consolidam-se as condições de participação efetiva de todos os interessados e a fiscalização das autoridades, tornando-as, pelo menos geograficamente, mais acessíveis. Nesse interim, o interesse público está cada vez mais adaptado à tomada de decisão coletiva e à ordem jurídica obedecida pelos governados. Porquanto, o modelo federal constitui um mecanismo democrático vez que garante a obediência ao princípio da separação dos poderes e a descentralização funcional.

Por outro lado, federações que dizem ser constitucionais também emergiram em contextos autoritários, como no caso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que conseguiu expandir suas fronteiras empregando a força de seus grupos territoriais e fez uso da Constituição Federal apenas para legitimar atitudes como essa. Entretanto, na prática, esses grupos eram controlados pelo poder central. A verdade, portanto, é que o federalismo é uma condição para a democracia, mas não vice-versa.

Desse modo, analisando a democracia brasileira e a Constituição Federal de 1988 (BRASIL,1988), especialmente em seu artigo 3º, é possível compreender que a República Federativa do Brasil tem como fundamento o modelo de cooperação entre os entes, de divisão de competências, concomitantemente, em privativas, concorrentes, suplementares, tanto nas esferas legislativas, administrativas quanto tributárias; além disso, possuem objetivos comuns para todo o território nacional

Miguel Reale (2001, p.99), ao discorrer sobre a formação do Estado brasileiro, afirma que o poder constituinte originário prevê três diferentes níveis de ação, que juntos se complementam, "formando, no seu todo, a República Federativa do Brasil, segundo os princípios do chamado federalismo cooperativo, ou integrado". No entanto, o federalismo cooperativo previsto na Constituição não é suficiente para que Estados e Municípios tenham verdadeira autonomia política, eles também devem possuir autossuficiência administrativa e financeira.

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Com efeito, a verdadeira existência da autonomia depende da presença de meios suficientes, e não se restringe por condições, para dar lugar ao seu pertencimento. Sem meio suficientes, a autonomia existirá apenas no texto da Constituição. Se por um lado, a Constituição de 1988 (BRASIL,1988) pretendia fortalecer os laços e o pacto federativo; por outro, não conseguiu conter a centralização federal, bastando observar a extensão da lista dos artigos 21 e 22 para perceber que resta pouco espaço para os Estados-membros.

Para mais, o artigo 25 do texto constitucional estipula que os Estadosmembros "organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios da Constituição”. Nesse diapasão, a doutrina preleciona dois tipos normativos constitucionais denominados de reprodução obrigatória e de imitação a serem obedecidas pelo poder constituinte derivado.

Os regulamentos de reprodução obrigatórios são aqueles que são impostos à Constituição do Estado. Nesse caso, a tarefa do Legislativo estadual é restrita a inserir essas normas na ordem constitucional dos Estados-membros por meio do processo de transplante, transcrevendo o texto federal. Por outro lado, as normas de imitação representam normas cuja matéria é a mesma das regras da Constituição Federal, mas não existe compulsoriedade de transcrevêlas nas Constituições dos Estados-membros, pois nesse caso o assentamento é espontâneo.

Outrossim, não se contempla um mínimo desejo na União de que se tenha uma estabilidade federativa que possa proporcionar capacidade financeira aos Estados-membros e Municípios, a fim de criar um mínimo de correspondência na atuação e atendimento de necessidades públicas. É o que se verifica no julgamento da ADI 507-3/DF, em que o até então Ministro Celso de Mello entendeu que o:

Estado Federal exprime, no plano da organização jurídica, a síntese que decorre de dois movimentos que se antagonizam: a tendência à unidade ou à centralização, que se rege pelo princípio unitário, e a tendência à pluralidade, ou à descentralização, que se funda no princípio federativo. Do maior ou menor equilíbrio entre esses dois princípios, resultará, em cada hipótese, um modelo diverso de Estado Federal, quer caracterizado por um grau de maior centralização, quer tipificado por um coeficiente de maior descentralização relativamente ao exercício do poder político (BRASIL, 1992).

Com a intenção de reparar essa ganância centralista, a Constituição Federal/88 desenhou no aspecto das repartições de receitas um cenário em que, apesar de estarem reunidos na União a maior parte das fontes de arrecadação tributária e o monopólio das residuais, estabeleceu para Estados e Municípios fontes tributárias exclusivas; assim como a divisão do produto da arrecadação de forma equilibrada.

A partir dessa análise, o sistema federal do Brasil tende a ser centralizado, ou como alguns estudiosos chamam, sistema federal unitário, porque carece de capacidades claras, visto que elas estão entrelaçadas ou sobrepostas, permitindo que a União domine cada vez mais capacidades, e estabeleça mais condições que precisam ser atendidas pelos Estados-membros.


COVID-19 E CONFLITOS FEDERATIVOS

3.1 ATUAÇÃO DO GOVERNO FEDERAL

A Organização Mundial de Saúde (OMS) indicou circunstância de emergência de saúde pública de grau internacional em 30 de janeiro de 2020. No entanto, como o número de casos cresceu extraordinariamente pelo mundo foi necessário a conversão da circunstância de emergência de saúde pública para pandemia: no dia 11 de março do mesmo ano, essas informações foram publicadas pelo Ministério da Saúde3.

Em 02 de abril, a totalidade dos casos de pessoas confirmadas com o Sars-CoV-2, no mundo, ultrapassava um milhão; e, em 15 de abril, conforme a OMS, era acima de dois milhões. Essa estatística já contava com pelo menos 190.876 mortes em consequência do vírus, conforme dados oficializados e divulgados pelos países, metodizados por Stephanou (2020).

No Brasil, o Decreto Legislativo nº 6 de 18 de março de 2020 (BRASIL,2020) estabeleceu o estado de calamidade pública. O primeiro caso foi confirmado em 26 de fevereiro de 2020 e, com apenas um mês, ultrapassava os 2000 casos, já com 20 mortos. Esse cenário agravou-se e, ao final do mês de maio, os dados divulgados apontavam mais de 438 mil pessoas contaminadas e aproximadamente 27 mil mortes, os números são disponibilizados no portal do governo do Brasil.

É importante ressaltar que a contaminação e a taxa de mortalidade se deram de forma desigual pelo território brasileiro, senão vejamos:

Fonte: MINISTÉRIO DA SAÚDE apud MAZOLA (2019, online).

Essa desigualdade demonstra a indispensabilidade do respeito às autonomias definidas na Constituição Federal/88 para todos os entes federativos, no intuito de combater de forma efetiva a pandemia.

No plano federal, o governo do Presidente Jair Bolsonaro assumiu sinais ambíguos sobre a gravidade do coronavírus, aliado ao ceticismo do Presidente da República sobre a necessidade de distanciamento social, bem como críticas às autoridades locais que indicaram medidas restritiva. Essa instabilidade política e jurídica assolou o país.

Em março, o governo federal tomou medidas legislativas relacionadas, mas ainda ambíguas. A lei nº 13.979/2020 (BRASIL,2020) estabeleceu medidas gerais de enfrentamento à pandemia no país, conferindo poderes aos três níveis de governo para adoção de medidas restritivas, como isolamento, quarentena, testes e vacinas, e restrições ao uso de aeroportos, portos e rodovias.

Logo depois, essa lei foi alterada pela Medida Provisória nº 926 (BRASIL,2020), que trouxe a possibilidade de restrições às fronteiras, “entrada e saída do país” e “locomoção interestadual e intermunicipal” (art.3º, I, II, III). Entretanto, no mesmo texto, ficou determinado que essas medidas não poderiam afetar os serviços públicos e as atividades consideradas, pelo governo federal, como essenciais (art.3º §8º e 9º).

Se por um lado, essas regras pareciam dar competência legal aos Estados e Municípios para tomada de medidas restritivas; por outro lado, colocava ferramentas poderosas nas mãos do Poder Executivo Federal para regular o conteúdo e o momento ideal de tomar essas medidas. Vez que as restrições não poderiam interferir nos serviços públicos (Estados e Municípios não poderiam restringir unilateralmente o acesso ao transporte urbano e escolas públicas), e o Presidente, por meio de Decreto poderia determinar as atividades essenciais protegendo o setor empresarial em geral das restrições locais.

Nesse sentido, ainda no mesmo mês de março, a MP 926 foi acrescida pela MP 927 (BRASIL,2020), esta estabeleceu que, nos casos envolvendo medidas restritivas ao tráfego intermunicipal, seria necessária uma versão anterior da atuação dos Ministérios da Saúde, da Justiça, Segurança Pública e infraestrutura conjuntamente. Assim, tanto a MP 926/2020 quanto a 927/2020 foram publicadas quando a maioria dos Estados e Municípios já atuavam prevendo medidas de restrições, inclusive no âmbito da matéria de transporte intermunicipal e interestadual.

3.2 ATUAÇÃO DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS

Diante do cenário apresentado, o legislativo estadual e municipal agiu dispondo regras sobre as mais variadas matérias, na intenção de impor restrições, com objetivo de vencer a pandemia e o estado de calamidade.

Na Paraíba, foi promulgada a Lei Estadual nº 11.746/2020 (PARAÍBA,2020), que veda a negativa de planos de saúde em atender pessoas suspeitas de Covid-19, mesmo que a situação ainda esteja dentro do período de carência contratual. Além disso, previu sanção para o descumprimento, conforme dispõe em seu artigo 1º e 2º:

Art. 1º Durante a vigência de carência contratual, as operadoras de planos de saúde no âmbito do Estado da Paraíba não poderão recusar atendimento ou prestação de qualquer serviço aos seus usuários que estejam com quadro clínico ainda não diagnosticado ou prováveis de contágio pelo COVlD-19 e que seja indicada a realização de testagem, ou com diagnóstico positivo de contaminação pelo COVlD-19. § 1º Os serviços a serem obrigatoriamente prestados durante a carência correspondem a todos aqueles contratados pelo consumidor e que tenham relação direta com o quadro de saúde apresentado em razão da contaminação pelo COVlD-19.

§ 2º Os serviços devem ser prestados nas exatas condições pactuadas contratualmente.

Art. 2º O descumprimento do disposto nesta Lei sujeitará ao infrator imposição de multa em valor equivalente a 100 (cem) UFR-PB (Unidades Fiscais de Referência do Estado da Paraíba) vigente na data da aplicação da penalidade, cujo valor da multa será destinado ao Fundo Estadual de Saúde [...] (PARAÍBA, 2020, online).

Essa lei foi rapidamente contestada no STF, e a Suprema Corte decidiu, em sede de ação direta de inconstitucionalidade - ADI, por maioria, pela inconstitucionalidade da lei, vencidos apenas os ministros Edson Fachin, Marco Aurélio e Rosa Weber. Em resumo, o julgado teve o seguinte teor:

É inconstitucional legislação estadual que impeça as operadoras de planos de saúde de recusarem o atendimento ou a prestação de alguns serviços, no âmbito de seu território, aos usuários diagnosticados ou suspeitos de estarem com Covid-19, em razão de período de carência contratual vigente. Essa norma é inconstitucional por usurpar competência privativa da União para legislar sobre Direito Civil, Comercial e política de seguros [art. 22, I e VII, da CF/88]. STF.

Plenário. ADI 6493/PB, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/6/2021.

Esse julgamento trouxe vários questionamentos, por exemplo, se não seria possível afirmar pela constitucionalidade da lei, uma vez que tratou sobre direito do consumidor, matéria que se encontra no rol do art. 24, mais especificadamente incisos V e VII da CRFB/88, denominada de competência legislativa concorrente. Todavia, os Estados possuem a competência suplementar, assim sendo, instituir normas sobre saúde e proteção ao consumidor não se mistura com o núcleo básico do contrato de prestação de serviços assumidos pelas empresas de plano de saúde.

Além disso, o período de carência solicitado por as empresas de planos de saúde é assunto solidamente pacificado, pois de acordo com a Lei Federal nº 9.656/1998 (BRASIL,1988), é a manifestação da competência privativa da União (artigo 22, I, VII). Portanto, a inovação nesse assunto não pode ser realizada pelo legislativo estadual.

Outra situação semelhante, ocorreu no Estado do Pará (objeto de matéria legislativa similar em vários outros Estados), a lei estadual nº 9.005/2020 determinou as escolas e faculdades privadas a concederem descontos de no mínimo 30% nas mensalidades pelo tempo que se perdurar a pandemia:

Art. 1º. Ficam as instituições de ensino da educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e superior da rede privada do Estado do Pará obrigadas a conceder diferimento em suas mensalidades em percentual mínimo de 30% (trinta por cento), enquanto durarem as medidas temporárias para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia de COVID-19 (PARÁ, 2020).

O Plenário do STF apreciou a constitucionalidade da referida e lei e firmou entendimento no seguinte sentido:

É inconstitucional lei estadual que estabeleça redução das mensalidades no âmbito da rede privada de ensino, enquanto perdurarem as medidas temporárias para o enfrentamento da pandemia da Covid-19. STF. Plenário. ADI 6445/PA, Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Dias Toffoli, julgado em 28/5/2021 (Info 1019).

A lei mencionada contém inconstitucionalidade sob o aspecto formal e material. No âmbito formal, ela possui vício de usurpação de competência privativa legislativa atribuída à União, configurando uma inconstitucionalidade do tipo formal orgânica, pois interfere na essência do contrato, que é objeto do direito civil, conforme prescreve o artigo 22, I da CRFB/88:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho (BRASIL, 1988)

Em relação ao aspecto material a norma, objeto da ADI 6445/PA, vai de encontro ao princípio da livre iniciativa e intromete-se de forma desarmoniosa nas relações contratuais estabelecidas conforme as regras do Direito Civil.

Assim, é importante notar que o impacto da pandemia nas empresas jurídicas privadas, incluindo as relações de consumo, foram regidos pela Lei Federal 14.010/2020 (BRASIL,2020). Ao instituir o Regime Jurídico Emergencial Transição (RJET) para as relações jurídicas de direito privado durante a pandemia, a norma abate a competência complementar da legislação estadual e não contém disposições gerais para alterar os contratos educacionais assumidos pelas partes.

Outro julgado que demonstra a atuação dos Estados e Municípios foi o da ADPF 811, o contexto foi que, em vista do aumento no número de casos de Covid-19, autoridades estaduais e municipais emitiram decreto limitando temporariamente as atividades religiosas coletivas presenciais para prevenir a propagação da doença.

Seguindo nessa linha o Estado de São Paulo editou o Decreto nº 65.563/2021 (SÃO PAULO,2021), que em seu art. 2º, II, alínea a proibiu a realização de “cultos, missas e demais atividades religiosas de caráter coletivo”. O Partido Social Democrático (PSD) ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental- ADPF, requerendo a suspensão desse dispositivo do Decreto, com base no argumento de que essas restrições iriam de encontro com a liberdade religiosa, prevista no art.5º, VI, e art. 19, I, da CRFB/88.

No entanto, a corte compreendeu que:

É compatível com a Constituição Federal a imposição de restrições à realização de cultos, missas e demais atividades religiosas presenciais de caráter coletivo como medida de contenção do avanço da pandemia da Covid-19. STF. Plenário. ADPF 811/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 8/4/2021 (Info 1012).

A constitucionalidade material do Decreto é inferida em razão da medida de saúde analisada ser suficiente, fundamental e adequada, e está de acordo com as instruções científicas da Organização Mundial da Saúde.

Certamente, há um consenso razoável na comunidade científica de que o perigo de proliferação causado por atividades religiosas coletivas é maior do que o perigo de outras atividades econômicas, mesmo algumas sendo realizadas em ambientes fechados (MENDES, 2001).

Portanto, essas medidas restritivas são o resultado de uma análise técnica dos riscos ambientais de infecção por Covid-19 com base nos setores econômicos e sociais e na necessidade de manter a capacidade de atendimento da rede pública de saúde.

Já sob o enfoque da constitucionalidade formal, impor limitações à realização de serviços religiosos via decretos municipais e estaduais segue a linha das recentes decisões do STF sobre o assunto, com destaque a ADI 6341.

O Supremo Tribunal Federal reafirmou a responsabilidade de todos os entes políticos na promoção da saúde pública, e estabeleceu a autoridade dos governos estaduais e municipais para tomarem medidas de saúde em conjunto com a União para o necessário enfrentamento à pandemia de saúde pública, de acordo com o federalismo cooperativo adotado na CRFB/88.

É importante notar que o artigo 2º do Decreto não se restringe a estabelecer limitações às atividades religiosas coletivas. Outras atividades econômicas muito importantes também foram restritas, como atendimento presencial ao público em bares, restaurantes, shoppings, galerias e assemelhados, inclusive, por meio de serviços de coleta e entrega; bem como comércio de material de varejo, construção permitidos apenas por serviços de entrega.

Na órbita municipal, o Decreto legislativo nº 19.540/2020, suspendeu as atividades comerciais, enquanto durasse o estado de calamidade pública, evidencia-se:

Art. 1º Fica suspenso o funcionamento de todos os estabelecimentos comerciais, de serviços e industriais, bem como as atividades de construção civil, no âmbito do Município de Teresina, enquanto durar o estado de calamidade pública em razão do avanço do novo coronavírus (COVID-19).

Parágrafo único. Permite-se o funcionamento dos setores administrativos, desde que seja realizado remoto e individualmente (TERESINA, 2020).

O mencionado Decreto chegou à apreciação do Supremo Tribunal Federal, via agravo regimental interposto contra decisão que recusou o pedido de suspensão, tendo a Suprema Corte fixado o entendimento que a Prefeitura de Teresina, ao suspender produção da indústria de bebidas alcoólicas em sua área, aumenta as restrições impostas pelo Estado Piauí, pode causar confusão e sobreposição de medidas na atuação das autoridades públicas lutando contra a pandemia Covid-19.

O Município alegou que a decisão “fere à ordem e à saúde públicas na medida em que esvazia e impede a atuação e a utilização do Poder de Polícia do Município de Teresina – PI no combate à pandemia do COVID-19” (BRASIL 2020, p.2). Além disso, destacou que não foi considerada a competência concorrente entre os entes na esfera da saúde pública conforme as decisões na ADI nº 6.341/DF, Min. Rel. Marco Aurélio; e na ADPF nº 672/DF, Min. Rel. Alexandre de Moraes.

Já a American Beverage Company- mbev, em suas contrarrazões, destacou que o Decreto extrapolou a competência concorrente conferida ao ente municipal, pois as atividades industriais que desenvolve, relacionadas com o setor alimentício, “estão expressamente resguardadas de suspensão durante a Pandemia” (BRASIL, 2020, p.3).

Por fim, o Plenário do STF negou provimento ao agravo regimental, conforme destacou o Sr. Ministro Presidente Dias Toffoli:

Não foram evidenciados os alegados riscos à ordem administrativa, à economia e à saúde pública, uma vez que o Decreto municipal nº 19.540/2020, que restringe o funcionamento de atividades industriais concernentes à produção de bebidas alcoólicas, é omisso quanto à fundamentação de caráter técnico-científico que justifique o enrijecimento da medida restritiva imposta pelo governo estadual. [...] O Decreto Municipal nº 19.540/2020 extrapola a competência municipal para legislar sobre assuntos de interesse local [CF/88, art. 30, I], de maneira que o restabelecimento de seus efeitos por meio do presente pedido de contracauetla, a meu ver, resultaria em insegurança jurídica quanto à atuação do poder público na eleição de medidas de combate à crise sanitária decorrente da pandemia de Covid19 (BRASIL, 2020, p.4).

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Sobre a autora
Ana Clara Mendes Rodrigues Sousa

Advogada no Caballero, Rocha e Carvalho, desde 2022. Atuação em Direito Administrativo, Educacional e Imobiliário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Ana Clara Mendes Rodrigues. Análise da competência constitucional legislativa concorrente na pandemia da Covid-19 e os efeitos no federalismo brasileiro após o posicionamento do STF na ADI 6341. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7798, 6 nov. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/111583. Acesso em: 6 nov. 2024.

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