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Análise da competência constitucional legislativa concorrente na pandemia da Covid-19 e os efeitos no federalismo brasileiro após o posicionamento do STF na ADI 6341

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FEDERALISMO BRASILEIRO E A COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE ANTES DO COVID-19

Como já mencionado anteriormente, no sistema brasileiro, os Estados e Municípios possuem recursos próprios, mas o poder legislativo é muito limitado. De acordo com a Constituição Federal, o escopo das questões que eles podem legislar sem competição é circunscrito, principalmente no âmbito das competências concorrentes, previstas no artigo 24 da CRFB/88, visto que a existência da lei federal instituindo normas gerais sobre determinado assunto restringe a legislação estadual a uma competência legislativa suplementar.

A competência concorrente é assim definida por Silva (2013, p. 485):

Competência é a faculdade atribuída juridicamente a uma entidade ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões. [...] Quanto à extensão, a competência se distingue em [...] d) concorrente, cujo conceito compreende dois elementos: d.1) possibilidade de disposição sobre o mesmo assunto; d.2) primazia da União no que tange à fixação de normas gerais.

A exemplo desse tipo de competência temos o artigo 24, inciso XII, da CF/88, que dispõe sobre o desenvolvimento de normas de proteção e defesa da saúde. Em contrapartida, no inciso II, do artigo 23 da Constituição tem-se a atuação administrativa na proteção e defesa da saúde, o que torna uma linha tênue, na prática, entre fazer regras e agir dentro delas.

Nosso arranjo federal oferece espaço para interpretação e muitas disputas no Judiciário. A combinação generosa de compartilhamento de receitas e muitas restrições constitucionais à legislação local traz um contexto que Estados e Municípios elaborem leis e políticas públicas de discutível constitucionalidade, que logo em seguida são questionadas por meio controle judicial de constitucionalidade brasileiro.

Tal controle tem como principal pilar o Princípio da Supremacia da Constituição, que dispõe sobre a hierarquia entre a Constituição e as normas infraconstitucionais. Hans Kelsen (p.166), em sua Teoria Pura do Direito, afirma:

A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da relação de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra, e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental–pressuposta. A norma fundamental hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora.

Assim, a Constituição da República Federativa do Brasil é considerada como rígida, o que implica em um processo mais complexo de alteração das normas constitucionais em comparação com o processo legislativo de criação das leis ordinárias e complementares.

Devido a isso, as normas constitucionais gozam de presunção de constitucionalidade, a prática desse modelo se dá por meio do controle de constitucionalidade e tem o objetivo de não permitir que regras em desconformidade permaneçam no sistema e traga instabilidade jurídica.

Assembleias Legislativas e governadores, bem como vários autores do âmbito federal, nos termos do art. 103 da Constituição Federal, detêm a legitimidade para propor ADI e, assim, o poder de contestar leis estaduais perante o STF através das ações diretas de inconstitucionalidade, dessa forma, muitas disputas políticas federativas tornam-se jurídicas.

Ao estudar empiricamente os julgados, constata-se que uma parte considerável do desempenho da Suprema Corte, em sede do controle abstrato, é no aspecto de controlar e estipular os limites das competências federativas. Além do mais, exibe um certo padrão com uma postura mais ativa em declarar a inconstitucionalidade de leis estaduais do que as federais, Canello (2016,p.230), após examinar as ADIs no lapso temporal de 1988 a 2015 reconhece o tribunal como” centralizador e uniformizador da atividade legiferante estadual”.

Isso se deve a uma reflexão da antiga política do Brasil, a qual o poder local é um obstáculo à mudança, e a centralização é uma condição necessária para reforma e desenvolvimento democrático. Assim, mesmo a Constituição garantindo ao poder local atuação legislativa, acaba redesenhando a solução dos conflitos federativos, com base na coordenação e hierarquia que a União impõe.

No entanto, nos últimos dez anos, julgamentos em sentido diverso começaram a ser mais corriqueiros, a virada jurisprudencial tem como um dos marcos a reconsideração do Tribunal na proibição do amianto. No ano de 2003, foi firmado o seguinte entendimento: a partir da lei federal já existente que permitia o uso de amianto em construções, os estados não poderiam usar da sua competência concorrente para alegar a proteção e a defesa da saúde e do meio ambiente na produção de leis estaduais que proibissem o uso do material por totalidade. Esse entendimento caracteriza uma técnica de interpretação restritiva, o que já era uma tendência no STF.

Em 2017, para acompanhar as mudanças sociais, o Supremo revisitou o tema e adotou uma posição distinta, conforme a seguir ementado:

As leis estaduais que proíbem o uso do amianto são constitucionais.

O art. 2º da Lei federal nº 9.055/95 é inconstitucional.

Com isso, é proibida, em todo o Brasil, a utilização de qualquer forma de amianto. STF. Plenário. ADI 3937/SP, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Dias Toffoli, julgado em 24/8/2017 (Info 874). STF. Plenário. ADI 3406/RJ e ADI 3470/RJ, Rel. Min. Rosa Weber, julgados em 29/11/2017 (Info 886).

Os Ministros basearam-se no argumento de que a Constituição de 1988 adotou a divisão de competências entre os entes federados, tendo como padrão o princípio da supremacia dos interesses. Dessa maneira, a União ao estabelecer regras gerais não pode esgotar todas as disciplinas normativas, ou seja, tratar de todos os aspectos da matéria, de modo a fazer com que os Estados-membros não tenham poder. Da mesma forma, a legislação estadual não pode violar a autoridade federal e disciplinar de forma contrária.

O descumprimento das restrições constitucionais impostas ao exercício simultâneo da jurisdição, ou seja, violação do campo contencioso alheio, significa que as leis federais, estaduais ou municipais são formalmente inconstitucionais.

Vale ressaltar que a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC) da Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica todas as formas de amianto como claramente cancerígenas para humanos. Segundo a OMS, não há possibilidade de uso seguro da fibra, pois não existe nível de uso sem risco carcinogênico, e a única forma eficaz de eliminar as doenças relacionadas às fibras minerais é abandonando o uso de todos os tipos de amianto. Assim, este é um grave problema de saúde pública.

Portanto, os ministros demonstraram a necessidade de reconsiderar as amarras produzidas ao longo dos anos em relação à legislação concorrente, e atuação dos Estados e Municípios no ato de suplementar à federal.


FEDERALISMO E A COMPETÊNCIA CONCORRENTE LEGISLATIVA DEPOIS DO COVID-19 SOB ANÁLISE DO JULGAMENTO DA ADI 6341

O período pandêmico do covid-19 parece ser um ponto de inflexão relativo. A luta do Brasil contra a pandemia envolve múltiplas iniciativas de diferentes poderes e níveis da Federação, com base no que já foi demonstrado nos tópicos anteriores.

Em um contexto em que a esfera federal apresentou pouco envolvimento na orientação, planejamento e implementação de um plano nacional de combate à pandemia, o Supremo Tribunal Federal adotou um posicionamento pela descentralização moderada, certificando espaço para iniciativas locais capazes de colaborar para proteção das pessoas contra o vírus.

No início de fevereiro de 2020, foi promulgada a Lei Federal nº 13.979/2020 (BRASIL,2020), já detalhada anteriormente, que previu medidas de combate ao coronavírus. Naquele período, problemas causados pelo vírus já aconteciam pelo mundo, mas a doença ainda não havia chegado ao Brasil.

Em março de 2020, o Brasil começou a ver seus primeiros casos. Para conter a disseminação do coronavírus em nosso país, alguns prefeitos e governadores assinaram decretos restringindo a entrada e saída de pessoas de seu território, como no caso do Decreto do Governo do Estado do Rio de Janeiro nº 46.980, de 19 de março de 2020, conforme no seu art. 4º determinou:

Art. 4º De forma excepcional, com o único objetivo de resguardar o interesse da coletividade na prevenção do contágio e no combate da propagação do coronavírus, [COVID-19], diante de mortes já confirmadas e o aumento de pessoas contaminadas, DETERMINO A SUSPENSÃO, pelo prazo de 15 [quinze] dias, das seguintes atividades:

[...]

  1. - a partir da 0h [zero hora] do dia 21 de março de 2020, a circulação de transporte interestadual de passageiros com origem nos seguintes Estados: São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Distrito Federal e demais estados em que a circulação do vírus for confirmada ou situação de emergência decretada. Compete à Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT ratificar esta determinação até o início da vigência do presente dispositivo;

  2. - a partir da 0h [zero hora] do dia 21 de março de 2020, a operação aeroviária de passageiros internacionais, ou nacionais com origem nos estados São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Distrito Federal e demais estados em que a circulação do vírus for confirmada ou situação de emergência decretada. A presente medida não recai sobre as operações de carga aérea. Compete à Agência Nacional de Aviação Civil - ANAC ratificar esta determinação até o início da vigência do presente dispositivo. O Estado do Rio de Janeiro deverá ser comunicado com antecedência nos casos de passageiros repatriados para a adoção de medidas de isolamento e acompanhamento pela Secretaria de Estado de Saúde.

Entretanto, o Governo Federal posicionou-se afirmando que tais medidas não poderiam ser tomadas por Prefeitos e Governadores. Através da Medida Provisória 926, editada pelo Presidente da República, determinou que o Governo Federal seria o competente para legislar sobre definições de atividades essenciais e sobre limitação de locomoção, o que alterava significativamente, na prática, a referida lei, conforme destaca:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: [Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020]

§ 8º As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais. [Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020]

9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º. [Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020].

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Devido a essa alteração, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), fazendo jus a sua legitimidade elencada no artigo 103 da CRFB/88, propôs ação direta de inconstitucionalidade propugnando a inconstitucionalidade da MP supracitada. O Ministro Marco Aurélio, relator da ação, proferiu a seguinte decisão monocromática, consolidando o seguinte entendimento:

3. Defiro, em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente.

[...] não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito Federal e Município considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior.

Com efeito, o aludido Ministro Relator detalha que a matéria da MP “não afasta a competência concorrente, em termos de saúde, dos Estados e Municípios” e “não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios”. Para o Ministro Marco Aurélio, ao assegurar que cada ente agiria “no âmbito de sua competência”, a Medida estava de acordo com as normas constitucionais sobre competência concorrente dos estados e da União para legislar sobre saúde.

No dia 15 de abril, o Plenário do STF decidiu pela aprovação (confirmação) das medidas preventivas concedidas pelo Ministro Marco Aurélio, por unanimidade. O Tribunal observou que o artigo 3º, §8 da lei 13.979/2020 deve ter interpretação conforme à Constituição, a fim de esclarecer que o Presidente da República pode, mediante decreto, normatizar serviços públicos e atividades essenciais, mas o Decreto deve manter a titularidade de cada esfera de governo.

A MP 926/2020 é constitucional do ponto de vista formal porque foi editada em um marco que revela a urgência e a necessidade, e o projeto de lei foi editado para amenizar a crise internacional que atinge o Brasil. O artigo 3º também é constitucional, pois apenas determina que as autoridades devem tomar medidas de restrição dentro de sua jurisdição e da sua necessidade.

Entretanto, vale notar que, por se tratar de “competência concorrente”, na forma do art. 23, II da CRFB/88, as medidas tomadas pela União não impedem ações dos demais entes da federação.

O artigo 21, inciso XVIII, da CRFB/88 que prescreve “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações”, no âmbito competencial exclusivo da União, foi nitidamente relativizado na decisão, devido a indispensabilidade da descentralização relativa para combater a crise.

O Ministro Gilmar Mendes também fez pontuações fundamentais que justificaram essa relativização, ponderando que esse dispositivo não é uma barreira “a que outras autoridades públicas, regionais e locais, participem e contribuam para a solução de problemas que também lhes dizem respeito”. Acrescentou ainda que apesar da “necessidade de padronização dos instrumentos de enfrentamento da crise sanitária”, “é preciso reconhecer que o Brasil é um país com dimensões continentais, com regiões que demandam soluções ajustadas ao seu contexto”.

Ele completou afirmando que:

[...] é inviável que ela seja executada sem uma articulação mínima com os Estados e Municípios. Temos visto muitas experiências exitosas nos governos estaduais, que inclusive poderiam servir de modelo nacional, mas que encontram resistência por parte do próprio Governo Federal.

Ainda no julgamento da ADI 6341-DF, vários Ministros do STF evidenciaram que as medidas para combater covid-19 - mesmo que lidem com transporte - devem ser compreendidas na chave para a proteção da saúde; e que as restrições locais ao tráfego intermunicipal cumprem com recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras instituições técnicas e científicas de combate à pandemia.

Eis que, apesar de medidas que envolvam o trânsito e não a saúde diretamente, o pretório Tribunal reconhece a eficácia das iniciativas locais que entram em conflito com a estrutura criada pela União. Dessa forma, a União mantém seu poder, mas não pode impedir que os demais entes da federação estabeleçam medidas restritivas nas suas respectivas áreas.

De acordo com a autonomia entre os entes federativos, reiterando que não há hierarquia entre eles e a universalidade de interesses, essas decisões fortalecem a divisão de poderes verticais de forma paralela para verificar a ideia de federalismo cooperativo, segundo a CRFB/88 (BRASIL, 1988). O mais importante é assegurar o normal funcionamento de um país democrático de direito, que por sua vez é responsável pela observância e pela realização dos direitos fundamentais essenciais à proteção da dignidade humana. (GERVASONI; GERVASONI, 2004).

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Sobre a autora
Ana Clara Mendes Rodrigues Sousa

Advogada no Caballero, Rocha e Carvalho, desde 2022. Atuação em Direito Administrativo, Educacional e Imobiliário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Ana Clara Mendes Rodrigues. Análise da competência constitucional legislativa concorrente na pandemia da Covid-19 e os efeitos no federalismo brasileiro após o posicionamento do STF na ADI 6341. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7798, 6 nov. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/111583. Acesso em: 7 nov. 2024.

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