A importância histórica da filosofia feminina

Exibindo página 1 de 2
Leia nesta página:

A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA DA FILOSOFIA FEMININA

José Eulálio Figueiredo de Almeida

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Coordenador do Curso de Especialização em Direito Notarial e Registral da UFMA. Juiz de Direito Titular da 8.ª Vara Cível em São Luís-MA. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

Sumário: 1. Histórico. – 2. Introdução. – 3. As primeiras filósofas de nossas vidas. – 4. O lugar da mulher na história da filosofia universal. – 5. A filosofia como história da felicidade humana. - 6. Conclusão.

Summary: 1. Historic. – 2. Introduction . - 3. The first philosophers of our lives. - 4. The place of women in the history of universal philosophy. – 5. Philosophy as a history of human happiness. - 6. Conclusion.

Resumo: O presente estudo tem o objetivo de demonstrar que a história da filosofia envolve também a participação da mulher filósofa, a qual permaneceu invisível, sem lugar e sem fala na antiguidade grega, bem como em séculos posteriores, e, ainda hoje, em algumas situações, continua sem visibilidade em face do preconceito social ou da hegemonia de correntes filosóficas ou de manifestações misóginas vinculadas ao patriarcalismo radical que via a mulher como ser humano destinado apenas às funções domésticas e à procriação, circunstância que se enquadra no que denominamos, atualmente, de violência de gênero contra a mulher.

Palavras chaves: Filosofia – História - Mulher - Filósofas – Antiga Grécia – Mulheres filósofas – Mestra - Provérbio – Amiga da sabedoria – Violência de gênero contra a mulher.

Abstract: The present study aims to demonstrate that the history of philosophy also involves the participation of the woman philosopher, who remained invisible, without place and without speech in greek antiquity, as well as in later centuries, and, even today, in some situations, remains without visibility in the face of prejudice or the hegemony of philosophical currents or misogynistic manifestations linked to radical patriarchy that saw women as human beings destined only for domestic functions and procreation, circumstance that fits what we currently call gender violence against women.

Key words: Philosophy - History – Women - Philosophers – Ancient greece – Philosopher women

- Mistress – Saying – Friend of wisdom - gender violence against women.

  1. Histórico

Na história das civilizações, a religião sempre prevaleceu como base e principal elemento constitutivo da sociedade, impondo seus princípios e outorgando poderes a um Deus, cuja supremacia, dentro do próprio núcleo familiar, era representada pela autoridade do homem que, por sua vez, além dos poderes de pai, era responsável pela tutela de todos os membros da família, inclusive da mulher, vítima frequente de violência de gênero.

Quando o governo da cidade elaborou suas leis já existia um direito proeminente originado na religião e na família. Portanto, pode-se dizer que o antigo direito não é obra do legislador; o direito, ao contrário, impôs-se ao legislador.1

Durante o desenvolvimento da história da humanidade, o pensar sempre foi destacado como um privilégio dos homens, não obstante a mitologia grega enumere várias mulheres que se destacaram na mitopoese, como deusas, dentre outras: Afrodite, Artemis, Atena, Deméter, Hera, Irene, Perséfone, Pandora, Gaia e Héstia. No entanto, todas elas têm uma ligação com Zeus, um deus grego que representa a hegemonia da figura masculina.

Algumas dessas deusas gregas femininas possuem a sua correspondente romana. Dentre elas, pode-se destacar Minerva (versão latina da deusa Atena). É importante lembrar que Minerva não nasceu do corpo de sua mãe, mas da cabeça de seu pai, o deus romano Júpiter, equivalente na antiga Grécia a Zeus, considerado o deus supremo dos gregos. Isto demonstra, desde o princípio, a desvalorização da mulher mediante discriminação equivalente a violência de gênero psicológica.

Não é, por outra razão, que Simone de Beauvoir enfatiza que “toda a história das mulheres foi feita por homens2”. É unânime a opinião de historiadores e de filósofos da atualidade nesse sentido, conforme se observa, por todos, do lecionamento abaixo transcrito:

“Os próprios filósofos da Antiguidade grega definiam as mulheres com características e atribuições negativas, como a figura que detém o mal, com atitudes capciosas, um ser incompleto.3

A mulher era assim condicionada a ser o Outro: sem nome, sem identidade, sem lugar, sem fala, sem visibilidade, sem oportunidades. Esse Outro, como categoria inferior e não essencial para a sociedade de épocas remotas, como a greco-romana, por exemplo, foi colocado nesse lugar invisível pelo homem de antanho, embora ele soubesse, desde os primórdios das civilizações antigas, que a mulher é um ser pensante e que teve importante participação na história da construção do conhecimento humano.

Na Idade Média, também conhecida como a “Idade das Trevas”, tida como período obscuro dominado pela Igreja Católica, a mulher era retratada com termos pejorativos para esconder sua importância social. O rótulo ou etiqueta a ela dirigido nesse período de irracionalidade humana se encontra registrado no magistério de Alessandra de Andrade Rinaldi4, in verbis:

“No período da Idade Média, especialmente a partir do século XI, a centralidade do pensamento religioso e o fortalecimento do poder da Igreja provocaram um verdadeiro incremento da repressão à sexualidade, reforçando também a distinção de gênero. A figura da mulher adquire absoluta identificação com o mal, com o perverso: a caça às bruxas é um reflexo desse pensamento e uma clara tentativa de controle da sexualidade.”

No dizer da médica psiquiátrica Nawal el Saadawi5 “a mulher foi considerada uma ameaça ao homem e à sociedade e a única maneira para evitar o mal que ela podia fazer era confiná-la em casa onde não podia ter contato nem com homens, nem com a sociedade.”

Acredito que essas mulheres virtuosas, fatigadas pela indiferença masculina e indignadas pela submissão cotidiana, passaram a desenvolver, por iniciativa própria, estratégias e vivências diárias para livrarem-se das amarras dos preconceitos sociais estabelecidos por maridos tirânicos, autoritários ou varões prepotentes que, sem qualquer afago ou gracejo efêmero, lhes devotavam apenas a ociosidade e a indolência dos dias refestelados no sossego recôndito do tálamo conjugal, onde permaneciam, invisíveis e isoladas, no gineceu pelo fato da perda da identidade e da autonomia pessoal.

O homem patriarcal e filósofo das sociedades antigas e dos séculos passados somente não imaginou que um dia o futuro da filosofia teria também como destaque a mulher filósofa, abordando temas que, outrora examinados apenas com a ótica da percepção masculina, ganham novas perspectivas sob o olhar feminino de mulheres que, independentemente de sua ancestralidade, dos lugares sociais, da nacionalidade, da raça, da cor, da origem, da etnia, da religião, tornaram-se protagonista da história da filosofia, cujo tempo e registro guardam seus escritos pretéritos e de hoje para conhecimento das gerações passantes e futuras.

Essas preceptoras, que tanto lembraremos neste estudo, atualmente elevam-se ao mesmo patamar dos homens que em épocas remotas as preteriram e obliteraram. Essas mulheres simbolizam as águias, rainhas dos céus e das aves, cuja visão altaneira representava – e ainda representa - força, coragem, destemor e o símbolo do poder.

Às mulheres filósofas está garantida, em nossos dias, a mesma posição na galeria dos notáveis homens de outrora e da atualidade, onde recebem o triunfo que as nobilitam e as glorificam com o merecido galardão de mestras, numa ubiquidade universal, mediante a imperecível aclamação das academias de cultura em que se alcandoram a fecunda uberdade dos imortais e a eloquência dos sábios.

Algumas dessas mulheres foram estetas de si mesmas, pois, sem qualquer formação escolar ou sem saírem de suas casas, possuíam o dom de compartilhar o conhecimento sem caligrafia, considerando que sua força de expressão estava na oralidade.

As mulheres a que me refiro nesta insuspeita dissertação são as que, num exemplo de coragem heroica, conquistaram a liberdade sponte sua como ser pensante, inteligente e feliz. Uma mulher é livre quando encontra, ela mesma, as razões que determinam sua independência ou quando sua liberdade/vontade, embora cerceada por outrem, não encontra resistência ou obstáculo em suas convicções racionais para fazer aquilo que a escolha pretendida a inspira ou a motiva.

2. Introdução

Para incitar o raciocínio do leitor, começo o presente estudo fazendo a seguinte pergunta: você já teve uma mulher filósofa em sua casa? Ou lembra de alguma canção de ninar, quando foi embalado por sua mãe ou pela sua avó para o primeiro sono infantil? Ou, finalmente, se recorda de algum aforismo que era pronunciado frequentemente no ambiente familiar? Se responder que nunca teve ou não lembra, eu discordo.

Após a leitura completa deste trabalho, você certamente lembrará de inúmeras filósofas que conheceu ao longo de sua vida, algumas dentro de sua própria casa; outras durante sua convivência social, mas todas muito próximas, como se fossem professoras a ensinar gratuitamente os aforismos ou provérbios que contém normas éticas, condutas morais e conceitos sociais eternos.

Numa copiosa e variada exemplificação, avós, mães, madrastas, sogras, tias, irmãs, cunhadas, comadres, madrinhas, babás, amas-secas, servas, parteiras, tecelãs, rezadeiras, lavadeiras, cozinheiras, costureiras, engomadeiras, rendeiras, benzedeiras, cada uma ao seu modo, estilo e tempo, proferiam seus adágios com o intuito de ensinar os mais jovens e catequizar toda a família sobre os temas prosaicos do cotidiano, aplicáveis a todas as situações.

Convencido disso, Jules Michelet6, num momento de rara beleza, afirma que “toda mulher é uma escola, e é dela que as gerações recebem verdadeiramente suas crenças”. O lar doméstico deve ser como uma escola uterinizada, destacado do conchego placentário, onde desde a concepção dá-se o primeiro encontro entre o feto e a maternidade, cujo cordão umbilical permite ao nascituro comunicar-se intimamente com sua mãe no espaço intrauterino.

Nesse aspecto, a suposta autoridade patriarcal, outrora reclamada de forma machista, cede espaço à potência da mulher enquanto mãe, porque é ela quem amamenta, gesta e educa seus filhos e filhas, futuros cidadãos e cidadãs de uma República, afastando tudo aquilo que, de acordo com a tradição cristã, a pecante maldição de Eva nos infligiu – Virgines, futuras virorum matres, republica docet.

O patriarcalismo remonta ao mito de Adão e Eva; algo ligado à sedução e ao sexo. Volta-se a um tempo em que se estabeleceu a história do medo que o homem sente da mulher. Essa projeção sombria, vinculada, dentre outras causas, ao ciúme é resultante do fato de que “o macho da espécie humana jamais perdeu seu medo de que um dia a mulher se tornasse vitoriosa e reconquistasse os direitos que perdeu.7

Embora cerceadas em seus lares, tais mentoras mantinham-se com a visão do palinuro que não deixa a embarcação naufragar entre ferozes banzeiros dos grandes mares. O monopólio masculino e os compromissos familiares não lhes coibiam a inata vocação para ensinarem filosofia pura sem nunca terem comparecido um dia sequer a uma escola para adquirirem algum conhecimento, porque a experiência de vida foi a melhor professora de todas elas.

Essas heroínas dos lares domésticos, outrora exploradas e devotadas à maternidade e ao diário labor domiciliar, eram mulheres sábias que, no esplendor de suas sapiências, cantarolavam em seu trabalho diuturno, contavam histórias, causos e fábulas aos circunstantes, as quais vinham temperadas de preceitos éticos, religiosos e morais constantemente evocados para justificar exemplos de correção e de prudência, quando não de cunho hilariante ou anedótico.

Nesse cenário familiar essas matriarcas e matronas, mestras de todos nós, embora algumas não fossem alfabetizadas8, deixaram seus legados filosóficos que foram sendo difundidos verbalmente até nossos dias e seguirão na mesma diretriz para conhecimento das gerações passantes e futuras.

Axiomas como “quem não pode com o pote, não pega na rodilha” ou “quem tem telhado de vidro não joga pedra em telhado alheio” refletem bem as lições sobre responsabilidade e ética social em preceitos que, apesar de inocentes, incutem no ouvinte o aprendizado de como deve ser o sentido da vida.

Essas mulheres filósofas pensavam por si e pelos homens. Por isso, sendo rainhas ou princesas, burguesas ou plebeias, casadas ou solteiras, sabiam de todas as coisas, apesar de não terem direito a fala e a um lugar na sociedade dominada pelos homens. Pouquíssimas deixaram suas ideias retratadas em livros ou escritos esparsos. A maioria transferiu para os homens conhecimentos precursores, propiciando-lhes a usurpação de seus dotes magistrais.

Mesmo sendo mães, esposas, viúvas e mestras de muitos homens ilustres, uma imensidão de mulheres teve seus valores espoliados e os nomes apagados da história, restando apenas um pequeno registro histórico de algumas que, usando nome masculino ou utilizando outros artifícios, como, por exemplo, trajar-se com roupa apropriada para homens e assumir trejeitos másculos, conseguiram difundir suas ideias em formato de publicações por pesquisadores, embora sem romperem o paradigma machista vigente durante o período em que viveram.

E foi assim que a filosofia feminina foi difundida, principalmente, na antiga Grécia, onde floresceu nos apotegmas de filósofos pré-socráticos como Tales9 de Mileto, Pitágoras10 e os pitagóricos11 (que aceitavam mulheres em suas confrarias) e, mais precisamente, nos ensinamentos do próprio Sócrates12, do seu discípulo Platão13 e de Aristóteles14.

Embora prevalecesse uma hegemonia masculina, pelo fato de as vozes femininas não terem lugar, nem expressão na sociedade humana daqueles tempos, totalmente dominada, predominantemente, pelos homens, existiram, nesse período, várias mulheres filósofas cujas ideias propiciaram o desenvolvimento do pensamento filosófico universal, não obstante, repita-se, algumas delas não tenham publicado livros ou documentos manuscritos.

A propósito disso, conforme aduz a historiadora Marize Campos15, deve ser dito que o registro mais antigo de denúncia da opressão feminina, datado de 624 a.C., é o da poeta grega Safo16, na expressão de um epigrama de autoria de Platão, no qual esse filósofo faz menção a essa mulher17, nominando-a de a “décima musa”.

Na ficção, o grande dramaturgo grego Sófocles, na peça conhecida como “A Trilogia Tebana”, dá voz a Antígona, uma mulher que, na tragédia idealizada pelo referido escritor, descumpre a lei do Estado invocando os deveres religiosos. Rompe, assim, com o lugar feminino que deveria ocupar na sociedade machista para assumir papel tipicamente masculino, enfrentando o rei Creonte, tio dela, em defesa do direito ao sepulcro e honras fúnebres para seu irmão Polinice, morto na disputa pelo trono de Tebas.

A expressão de Antígona, como mulher, constitui “o primeiro grito de protesto contra a onipotência dos governantes e a prepotência dos adultos... e a heroína simboliza o dever de dar ouvidos à própria consciência.18

O debate travado entre o rei Creonte e Antígona, retratado na célebre tragédia de autoria de Sófocles, representa, de acordo com Mário da Gama Kury19, sem a mínima dúvida:

“O único exemplo em que o tema central de um drama grego é um problema prático de conduta, envolvendo aspectos morais e políticos, que poderiam ser discutidos, com fundamentos e interesses idênticos, em qualquer época ou país.”

Filósofos, juristas e historiadores, desde Aristóteles em sua clássica obra “Retórica”, têm citado o modelo dessa mulher chamada Antígona como alguém que abdica do próprio direito de viver em defesa da obediência das leis naturais contra o edito estatal.

Existe um rol extenso de mulheres filósofas dentro e fora de nossas casas. Contudo, destacaremos aquelas que eternizaram seus ensinamentos por meio de suas obras perante as antigas civilizações, sem descurar de registrar, aqui e acolá, as máximas de experiência e de sabedoria popular que legaram aos nossos parentes e amigos próximos que, por sua vez, nos transmitiram.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Entretanto, pesquisas recentes apontam que antes da Grécia, civilizações antigas, como a egípcia20, apenas para exemplificar, foram berço do pensamento filosófico, cujo nascimento se verificou no lugar “Kemet”, assim denominado por seus próprios habitantes. Nesse local teve início o pensamento filosófico no Egito, com a chamada filosofia kemética, “a mais de dois milênios antes da filosofia grega21.”

Daí porque alguns historiadores e filósofos defendem ser controverso afirmar que a filosofia tem como “certidão de nascimento” as antigas colônias gregas da Ásia Menor e que o fazer filosófico era coisa somente para homens.

É que agora sabemos que o pensamento humano tinha também como protagonista a mulher que, embora não tivesse “um lugar de fala” e aceitasse passivamente a brutalidade ofensiva de ilustres varões, se pronunciava através dos filósofos que aprenderam com elas, deixando claro que a filosofia não é algo universal, mas pluriversal; que é processo mental de cunho crítico, reflexivo e racional, que vai além do gênero humano homem/mulher como amigos da sabedoria.

Por essa razão não é demasiado acrescentar que os filósofos mais conhecidos da antiga Grécia: Sócrates22, Platão23 e Aristóteles24, conviveram com mulheres que influenciaram muito suas vidas ascendentes e enriqueceram seus estudos filosóficos. Portanto, além de suas esposas, com as quais muito aprenderam, outras mulheres também foram suas mestras como, por exemplo, Aspásia de Mileto, a hetera que ensinou Péricles, o grande político Ateniense, a discursar. Foi ela, na unânime informação dos biógrafos, que também ensinou a Sócrates, o grande mestre da filosofia da Grécia antiga, a arte da eloquência e da retórica.

Na pesquisa que realizamos encontramos também a figura de Hipárquia de Maroneia. Essa mulher fez parte da escola cínica, que consistia numa corrente helenística fundada por Antístenes e tornou-se famosa pela distinção do filósofo Diógenes de Sinope. Nas suas manifestações, Hipárquia reivindicava um lugar de destaque para as mulheres perante a sociedade ateniense nos eventos que participava e “que costumavam ser apenas para homens e se destacava em disputas verbais com outros pensadores.25

Várias mulheres, conhecidas como neopitagóricas e platônicas, frequentaram a Academia de Platão. Embora não fosse casado, este filósofo teve como suas colaboradoras e alunas de destaque duas mulheres, uma delas chamada Axioteia de Filos e a outra Lastênia de Mantineia, as quais muito contribuíram em suas pesquisas filosóficas. Axioteia frequentava a Academia platônica com vestes e aparência masculinas. Isto ocorria porque ela era estrangeira e para evitar escândalos nas reuniões entre os círculos masculinos, ambiente em que queria ser admitida.

Agora sabemos que a legião de filósofos que opulentavam seus nomes com os títulos honoríficos dos próceres das arcadas, que exibem a nobreza nobiliárquica do conhecimento, não podem, sozinhos, hastear o pendão do autocrata excelso, porque à parceria deles estavam egrégias mulheres, mantidas em submisso anonimato, a ministrar-lhes ensinamentos que os consagrariam como beneméritos varonis conhecedores da sabedoria.

As dignificações terrestres auferidas por esses filósofos ofuscavam a capacidade de dividirem o mérito de suas conquistas com as mulheres que lhes ministravam gratuitamente conhecimentos incomparáveis. Eles as mantinham rebuçadas, sem visibilidade; deixavam-nas ocultas como sacerdotisas reclusas num casulo, para nunca serem notadas e visíveis durante o dia ou à noite, ainda que vestissem sempre roupas ou manifestassem ideias que possuíssem a luminosidade do sol.

Era como se a presença da mulher filósofa colocasse o homem daqueles tempos gregos num beco sem saída. Aliás, a escritora Nawal el Saadawi26 afirma que, dentre os autores, do passado ou do presente, que teve a oportunidade de ler, todos de alguma forma enxergam a mulher como um ser perigoso. Porém verificou que “o pânico que Freud experimentava ao se defrontar com uma mulher” representa o medo masculino da marca que a mulher tem deixado no pensamento científico.

Se prestarmos bem atenção aos fatos, descobriremos que é comum ao ser humano ocultar a origem de sua sabedoria. Veja-se o exemplo do mágico que não se deixa desvendar e cujas mãos ligeiras são capazes de iludir o espectador mais atento. O filósofo é um prestidigitador do pensamento racional; usa a sabedoria para disseminar conhecimento em favor do desenvolvimento humano, a partir de argumentação com rigor metodológico para forçar o leitor ou o ouvinte irresoluto a elaborar novos questionamentos.

Com exceção de Sócrates, foi o orgulho e a vaidade machista que impediram os demais filósofos da antiguidade grega de confessarem sua imodéstia e que receberam muitas lições de mulheres filósofas, as quais permaneceram por longos anos invisíveis e anônimas, ou seja, silenciadas e apagadas da história do pensamento filosófico da humanidade.

3. As primeiras filósofas de nossas vidas

As mulheres de minha vida infantojuvenil eram genuínas filósofas, embora não soubessem o conceito de filosofia. Mas se é certo que a palavra filosofia deriva do grego e tem origem na junção de dois termos: philos, que significa amigo; e sophia, que significa sabedoria, elas estavam inseridas no seleto mundo da filosofia. Destarte, o filósofo é, por acepção etimológica da palavra, o amigo da sabedoria.

As mulheres a que me refiro tinham essa sabedoria popular inata por intuição; elas nunca frequentaram uma escola, nem eram letradas. Na realidade, o letramento envolve uma dinamicidade mais ampla do que a própria alfabetização, porque concentra, ao mesmo tempo, a ideia pluralista da escrita e da leitura na sociedade.

Mas nem por isso impede pessoas ágrafas ou iletradas de desenvolverem talentos culturais, posto que esta prática é resultante da criação mental do indivíduo que possui um dom que independe da escolarização, da articulação oral, do mutismo, da cegueira, do acesso à leitura, do conhecimento da língua, do domínio da escrita ou da sua posição social.

Assim sendo, reafirmo que minhas primitivas aulas de filosofia não foram ministradas na escola, nem poderiam ser; aprendi as primeiras máximas de experiência no lar doméstico, ouvindo histórias contadas por mulheres que conheci na infância que tive na minha família. Nenhuma delas estudou, outras nem ler e escrever sabiam, mas eram sábias. Algumas simplesmente nem sabiam assinar o nome, mas tinham a sapiência do vitalismo.

Suas lições diárias eram ensinadas durante os trabalhos inerentes ao sexo feminino. Contudo, sempre estavam envolvidas em tarefas coletivas na lavoura, como era o caso, por exemplo, do trabalho comunitário de extração da mandioca para fazer farinha na casa de forno, lugar onde homens e mulheres interagiam, imbuídos do propósito de finalizar a produção da safra agrícola.

Era nesse ambiente comunitário, constituído, na maioria das vezes, por pessoas da mesma família, que os mais jovens aprendiam, notadamente com as mulheres, a arte milenar da preparação do pão que vem da terra, entre cantigas, adágios populares e muitas preleções que serviriam para o resto da vida.

Certamente o leitor já deve ter ouvido alguns ditados populares que combinam perfeitamente com situações corriqueiras do dia-a-dia, dentre os quais podemos enumerar: “Me dizes com quem andas, que te direi quem tu és”; ou em outra fórmula: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”; ou finalmente: “Casa de ferreiro, espeto de pau”.

Esses provérbios, ainda hoje vigentes, divulgados em família, são pronunciados oralmente por pessoas que nem sempre se dão conta de que um dia eles foram ensinados por mulheres que se ocupavam dos afazeres domésticos e, para melhor fixação da advertência feita ao filho, a algum parente ou amigo próximo, concluíam a conversa com um adágio representativo de uma norma social de cunho ético ou moral.

Essas heroínas do conhecimento filosófico, da sabedoria popular e do pensamento humano, ensinavam, como já dissemos inúmeras vezes, em família, contando histórias com a paciência hierática e o juramento solene da apologia ao amor materno. Como bem lembra Laura Picozzi27:

“A família é o lugar da transmissão, é onde se comunica um estilo, onde as narrações são escutadas, onde os valores são compartilhados. Nos contos familiares existem palavras que marcaram a nossa origem, que nos acolheram quando nascemos e que nos seguiram – às vezes perseguiram – até a idade adulta.”

Essas notáveis mulheres, filósofas de nossa vida familiar, prudentes e cautelosas missionárias da catequese doméstica, permanecem anônimas, porque nada escreveram. E também porque não podiam disputar lugares, nem ter direito a fala nas escalas ou ambientes sociais dominados à época pelos homens. Mas seus ensinamentos vivem em nossas irremovíveis lembranças.

A discriminação misógina que era imposta à mulher na antiguidade, com reflexos ainda hoje em alguns países, chegava ao absurdo de defender data maxima venia a alforria do escravo, mas não a liberdade da mulher, a qual carregava um sentimento de culpa causado por uma espécie de senso moral coletivo, que lhe impunha uma sigilosa justiça domiciliar para preservar a suprema autoridade patriarcal, circunstância que provocava a perda da identidade feminina e a capacidade de reação. A mulher vítima desses desmandos ignóbeis mantinha-se inerte e inerme para salvaguardar a sua família e não ser considerada mentalmente desequilibrada.

Apesar de terem vivido esse calvário histórico, essas mulheres filósofas de nossa convivência não estão silenciadas em suas aulas de filosofia, porque jamais serão apagadas de nossas memórias afetivas. Este é o lugar no qual elas, nossas mestras e preceptoras, com sua ancestralidade plural, sempre estarão guardadas e preservadas para serem lembradas ad aeternum.

4. O lugar da mulher na história da filosofia universal

É recente a descoberta da mulher com o título de filósofa nas civilizações de antanho, especialmente na Grécia antiga, considerada o berço da filosofia, onde prevalecia a ideia da sociedade binária e o conceito de “gênero” não estava separado do de sexo biológico.

Mas falar de “mulher filósofa” não deve representar apenas o reconhecimento do pensamento feminista, mas a existência de doutrinas que envolvem questões de gênero, sob inúmeros aspectos, e cujo grito ecoa para além do papel onde foram impressas suas teorias e palavras em busca de uma igualdade social.

Ser mulher filósofa! Eis a grande questão, independentemente da diversidade de gênero ou do grupo para o qual compartilha suas ideias. Nessa perspectiva não interessa unicamente investigar o que essas mulheres pensam, mas como elas podem e devem manifestar o seu dizer filosófico, considerando que ninguém tem como desejo ser oprimido e violentado. Ser vista e ouvida é uma forma de as mulheres livrarem-se das amarras do patriarcado egocêntrico que lhes impediu de ocupar o espaço que era delas.

Mas o que essas mulheres têm a nos dizer atualmente? Creio que muitas coisas que os saberes clássicos concentraram nas vozes masculinas, embora saibamos não sejam eles a única forma de revelar o pensamento filosófico ou divisar a dimensão humana numa sociedade plural onde, atualmente, as interpretações não se vinculam mais às teorias biológicas e as atenções estão voltadas não apenas para o masculino e o feminino, mas também para outros gêneros.

O importante nessa proposta cognitiva é a expressão do sentimento da vida, do viver filosófico, ainda que a felicidade ceda lugar a eventuais momentos de tristeza. Neste salutar acaso simbiótico, o fundamental é manter a felicidade como contraponto da razão, pois, conforme o comediógrafo grego Menandro28, “uma pequena gota de felicidade é melhor que uma tonelada de razão.”

Pode parecer espantoso, mas a vida tem seus parêntesis. Para o filósofo, qualquer sentimento é útil porque o ensina a fazer algo, considerando que o sentir é introspectivo, recôndito; e o fazer é manifesto; ostensivo, ou seja, é revelado.

Preferimos a alegria, sinônimo de uma festa, à tristeza, atributo da rejeição. A alegria é sempre bem-vinda; a tristeza é evitada, mas os dois sentimentos são benéficos à sabedoria humana. Estar alegre é um convite eterno ao regozijo; estar triste é fazer uma viagem ao mais profundo declínio de nossa euforia.

Daí porque não é inexata a pretensão de asseverar que sentir ensina, molda, renova, acrescenta e eleva a alma, porque é um verbo que se conjuga para dentro de nós mesmos; ao contrário de fazer, que é declamado para fora. Portanto, triste é não sentir nada.

Assim sendo, o que não podemos é admitir dizeres ou raciocínios fracionados ou incompletos retirados de parte de um contexto. A frase ou a ideia não pode ser reticente, parentética ou deturpada, a exemplo do que tem sido feito com o texto de Simone de Beauvoir29. Como respeitável filósofa, ela nasceu mulher; não tornou-se mulher. Ela era inteiramente mulher, porque cumpriu todos os requisitos da feminilidade.

Como é de sabença geral, o campo filosófico nem sempre foi aberto para as mulheres. Embora exista uma enorme fertilidade cultural feminina, a discrepância com o masculino, ligado ao padrão do sexo biológico, é evidente com reflexos no próprio ambiente da filosofia feminina.

Por essa razão, Liria Ângela Andrioli30 enfatiza que “ao realizar um resgate sobre a presença das mulheres na história da filosofia, percebe-se que a figura do feminino é discutida por meio de um sujeito que não é o que a representa, mas sim outro sujeito: o sujeito masculino. Mesmo assim, este discurso é sempre evitado no campo filosófico.”

Nesse particular, observam-se disparidades no próprio movimento feminista entre mulheres brancas, negras, indígenas, latinas, europeias, etc, que suscitam privilégios, discriminações, racismos, opressões e uma série de preconceitos raciais, sociais e políticos que criam divergências, quando não rivalidades de cunho científico ou ontológico, considerando que a mulher, desde a antiguidade grega, carregava um rótulo aviltante de cruel submissão e era definida pelos filósofos “com características e atribuições negativas, como a figura que detém o mal, com atitudes capciosas, um ser incompleto.31

Esses erros de interpretações, baseados especialmente em padrões biológicos, possibilitaram a descoberta de equívocos históricos e o resgate, na atualidade, de uma identidade do feminino que vai além do masculino e de outros gêneros, possibilitando o afastamento da antiga visão deturpada32 e a conquista pela mulher filósofa do espaço que era seu de direito desde as antigas civilizações, como a egípcia e a grega.

Muito embora a mulher tenha sido impedida de participar amplamente da vida pública, filósofos pré-socráticos, como Pitágoras e Tales de Mileto, receberam ensinamentos de mulheres, dentre elas Teano de Crotona33 e Temistocleia de Delfos. Sobre a primeira, consta que teria apresentado a Pitágoras uma teoria que tornou-se famosa sobre a metempsicose, a qual consiste na imortalidade da alma. Essa teoria foi absorvida pela filosofia platônica. Sobre a segunda mulher, sabe-se que foi a fonte da maior parte das doutrinas morais e éticas de Pitágoras, que “incluem a ideia de superioridade da natureza intelectual sobre a natureza sensorial, a noção de cosmos harmônico e até mesmo essa importante teoria da metempsicose.34

Nesse pormenor, destaco também a figura de outras mulheres como Diotima de Mantineia, conhecida como a “Mestra do Mestre” por haver sido professora de Sócrates e ensinado a ele tudo sobre Eros35. Por essa razão, exercia um status de autoridade intelectual sobre Sócrates, o filósofo do método dialético36 e da maiêutica.

Com efeito, é de autoria de Sócrates a seguinte frase:“deve-se temer mais o amor de uma mulher, do que o ódio de um homem”. Dificilmente um homem, mesmo sendo um renomado filósofo, pensaria numa frase tão incisiva sobre a cólera feminina, como esta de autoria do grande filósofo Sócrates, se não tivesse convivido e aprendido tudo sobre o amor com uma mulher.

O enunciado de Sócrates, ensinado por Diotima de Mantineia, configura a pulsação do descontrole emocional e a invisível força perturbadora de Eros. Propõe, de forma taxativa, um diálogo incoerente entre o amor e a paixão, cuja inflexibilidade pode desafiar, para um definitivo e trágico duelo, a vida e a morte, pela ingerência de um consórcio ambíguo, contraditório, paradoxal e polêmico entre a razão e a emoção.

No sentido filosófico, médico, terapêutico ou psicopedagogo não é equivocado afirmar que a emoção é um fator mais acentuado na mulher, porque “o útero é o principal receptor das emoções femininas. É como se ele fosse o coração da mulher37”. Vale acrescentar também que no útero está contida a pulsação da vida, porque ele representa a potência da mulher. É como se um outro coração conexo aí se encontre batendo bem mais forte do que o existente no tórax.

O útero da mulher é, portanto, a nossa primeira morada, nosso primitivo abrigo e nosso sustento antes do nascimento. Pode-se dizer que o útero é um coração matriz que abriga dentro de si outro coração que pulsa.

Esse órgão indolor que se localiza na parte baixa da barriga é uma benção e fonte de energia feminina porque, apesar de os ovários serem responsáveis pela produção dos hormônios, compete ao útero não apenas gestar filhos, mas também amores, paixões, ódios e cóleras. É, portanto, através do útero que a mulher manifesta as contrações vagínicas de seus desejos, anseios e contrariedades. Por isso, o útero pode ser doce, agridoce e amargo quando as emoções femininas explodem.

Na verdade, o ser humano é movido por sentimentos, dentre os quais as emoções que, no dizer de Nevita Luna38, “são forças animais desprovidas de pensamento.” Portanto, como as emoções são forças estranhas ao pensamento e alheias à razão, a mesma autora39 obtempera que essa inconciliação “está ligada à ideia de que a emoção seria ‘fêmea’ (mais próxima do extinto animalesco, mais imergida no corpo) e a razão, ‘macho’.”

E já que estamos também falando de instinto animalesco, não seria de todo irrazoável apostilar, com todas as vênias, que a emoção é um sentimento resultante das contrações vagínicas e uterinas dos mamíferos40.

Mas não foi somente Diotima de Mantineia quem muito ensinou a Sócrates sobre o amor e a sabedoria. Uma outra mulher chamada Aspásia de Mileto, célebre pela sua admirável habilidade política e a capacidade de discursar em público, ensinou retórica para Sócrates. A dialética socrática pode ter sido resultante da convivência com essa extraordinária mulher que, além de possuir habilidades como música, canto e dança, tornou-se preceptora e amante de Péricles (administrador de Atenas), ensinando-lhe tudo sobre política.

Não há dúvidas de que existem muitos ensinamentos e textos escritos por mulheres que mantiveram-se anônimas por muitos séculos. Isto não é um preconceito somente vivenciado nos primórdios dos tempos. Temos registro, no próprio século XX, de mulheres que contribuíram para os trabalhos de homens de ciência, como a esposa de Albert Einstein41, que exerceu decisiva influência nas pesquisas dele e apresentou valorosa contribuição sobre a teoria da relatividade, cuja autoria é atribuída a esse grande pesquisador e cientista.

Seja essa história real ou fantasiosa, controversa ou incontroversa, o certo é que, parodiando Gagnon42, “apagar da história da ciência mulheres brilhantes como Mileva não ajuda no trabalho de demonstrar que nós mulheres somos tão capazes quanto os homens.”

Por essa razão, o que importa é resgatar o nome dessas notáveis mulheres que sofreram na obliquidade soberba dos homens que se aproveitaram do conhecimento delas, mantendo-as no completo anonimato sem direito a reivindicarem qualquer crédito sobre a cooperação que deram para o progresso da ciência, visto que a regra era a preservação da hegemonia masculina.

Cansada de assistir suas ideias serem indevidamente apropriadas por varões, a mulher passou a usar sua própria linguagem para, sem a conotação viril e insolente do homem, expressar - ela mesma - a sabedoria que promana de sua verve feminina, sem se preocupar com o estilo exaltado que caracteriza a valentia misógina.

A mulher filósofa, com esse perfil elegante, outorgou a si mesma o atestado que lhe garantiu a autonomia para ombrear-se ao homem filósofo ou superá-lo, sem precisar esconder-se atrás de pseudônimos ou de símbolos por temor a hostilidades, muito menos críticas ou sabatinas masculinas dos que outrora, comparsas e propagadores de suas ideias geniais, bebiam dos conhecimentos que escorriam de suas mentes brilhantes, contudo as menosprezavam e subjugavam.

5. A filosofia como história e felicidade humana

A história da filosofia é a nossa própria história. Estudamos a história da filosofia para entendermos a nossa própria existência como ser humano. Por essa razão, não é errado dizer que a vida deve ser vivida filosoficamente.

Existe uma lógica nessa assertiva, porque a história da filosofia é inquestionavelmente a história do pensamento, considerando que para filosofar é necessário ter existência humana e pensar – cogito, ergo sum43.

Quanto a mim, posso afirmar que quanto mais estudo e penso que aprendo sobre algum assunto, mais me convenço que menos eu sei. Contudo, somente podemos evoluir culturalmente a partir do aprendizado que vamos acumulando ao longo de nossa existência. Isto é que nos confere a chamada sabedoria.

Muito antes de Pitágoras dar nome ao que conhecemos como filosofia, o amor à sabedoria já existia. E não eram os denominados filósofos que ensinavam ou proclamavam essa sabedoria, visto que para ensinar não precisa ser doutor, mestre, especialista, sábio ou professor, mas apenas ser culto, ter conhecimentos, racionalidade, prudência e experiência de vida.

Talvez por isso muitas pessoas, independentemente da época, da idade, da etnia, da cor, da origem, do sexo, do gênero, do lugar, veem na filosofia algo tão fascinante e enigmático, posto que sua atemporalidade nos convoca sempre a adotar novos paradigmas mediante o rompimento de conceitos clássicos ou a editar novas concepções a partir de ideias já superadas e preconcebidas.

Muitas pessoas têm ideias equivocadas sobre o que seja filosofia. Imaginam que a filosofia é um pensamento abstrato, ilusório e irreal, em resumo, algo totalmente alheio às coisas da vida. Assim, atribuem à filosofia uma sequência de palavras enigmáticas, de difícil compreensão, que fogem à realidade palpável, vale dizer, algo como um emaranhado de pensamentos desconexos que nada têm a ver com a realidade que se vive.

Mas enganam-se os que assim pensam. A filosofia possui metodologia própria, embora, por vezes, se apegue a conceitos abstratos. Ela está diretamente ligada a nossa existência prática da vida, pois viver é filosofar. Portanto, ninguém precisa ser um pontífice de virtudes para ser filósofo. A corrente helenística de filosofia conhecida, na antiga Grécia, como cinismo, que teve o inconveniente filósofo Diógenes, como um dos grandes luminares, é um belo exemplo disso.

Por isso é que muitos indivíduos, embora não tenham frequentado nenhuma faculdade para obter o grau de filósofo, conseguem filosofar, pois a filosofia é uma atividade que revela, dentre outras coisas, os saberes adquiridos pela própria experiência de vida, a partir da sabedoria que o ser humano vai acumulando, ao longo da sua existência, independentemente do conhecimento da doutrina.

Isto se dá pela capacidade de as pessoas se sentirem livre para professar seus pensamentos, os quais, após revelados, passam a integrar o domínio público. Por essa razão, comungamos com Baron D’holbach44 ao afirmar que “El filósofo no es propietario de sus ideas.”

É óbvio que um filósofo teria que publicar trabalhos para tornar pública suas ideias. Mas, em épocas remotas, nem sempre o verdadeiro autor do texto assumia sua autoria com receio de sofrer grave censura, discriminação ou punição. O medo contribuía para “que la mayoría de los trabajos se publicaban anónimos, con pseudónimos y siempre com grandes riesgos45.”

As mulheres que nos ensinaram o que é filosofia dentro de nossas casas, embora aparentemente submissas ao patriarcalismo radical, nunca se sentiam tristes, nem tinham a escrita como forma de compartilhar seus ensinamentos, porque não eram baseados na cultura grafocêntrica. Por isso mesmo, conseguiam lecionar diariamente, aplicando seus escólios verbais e ágrafos, enquanto exerciam atividades domésticas sem se preocuparem em difundir seus conhecimentos na forma escrita, simplesmente porque a maioria delas era iletrada.

Como tudo que é belo não pode ser aprisionado, as mulheres a que me refiro, as quais não podem ser chamadas de escritoras, deixaram seus legados com a essência da simplicidade, considerando que a beleza e a sabedoria são naturais e não precisam de leis escritas, nem de ordens legais para afirmarem-se perante o mundo.

Talvez seja por essa razão que os provérbios criados por essas mulheres incógnitas, que não foram ouvidas, nem enxergadas em suas épocas, são mais populares do que os apotegmas filosóficos e mais fáceis de assimilação por conta da prática cultural e costumeira das expressões, notadamente por grupos de pessoas que vivem em comunidades ou territórios remotos e perpetuam memórias afetivas longínquas.

Essa riqueza filosófica revela sentimento multissecular e configura a maior beleza humana exatamente porque, assim como um pássaro que canta e encanta livre na natureza, não pertence a ninguém, ela é de uso comum; não está nos livros, nem nas obras dos maiores filósofos da humanidade. E somente resiste até nossos dias e continuará existindo para a posteridade porque, a exemplo do canto do pássaro livre que gorjeia todas as manhãs, no jardim ou na janela de nossas casas, acordando-nos para um novo dia, o tempo não a apagará, porque é propagada diariamente às novas gerações de forma verbal como história e sabedoria de vida.

Quem vive filosofa e quem filosofa vive. Isto não é um trocadilho de palavras, mas uma inequívoca realidade. Na verdade significa apenas que é no ato de viver que se filosofa e que todo ato de filosofar é um ato da nossa vida. Não é à toa que os antigos romanos, com muita sabedoria, diziam “primo vivere, deind philosophari”, ou seja, primeiro viver, depois filosofar.

Na praticidade romana se colocava o filosofar como um segundo passo, como uma sequência do viver; mas ao estarmos vivendo estamos filosofando, porque estamos sempre procurando raciocinar com sabedoria. Esta precedência a que os romanos se referem significa apenas que o ato de filosofar pressupõe e antecede o ato de viver, o estar vivo como ser pensante, o levar a sério a vida com todos os seus desafios e com todas as suas consequências. Em suma: nos sentirmos felizes. Por isso, com justa razão, o filósofo Baron D’holbach46 preconiza que “la filosofia debe estar al servicio de la felicidad.”

Com efeito, pelo fato de passar o dia inteiro filosofando nos espaços públicos, o célebre filósofo Sócrates era conhecido como “mosca de Atenas”, haja vista ser tachado pelos cidadãos como alguém que incomodava ou molestava os transeuntes com o seu método dialético conhecido como maiêutica, o qual consistia em indagar continuamente as pessoas sobre diversas questões que permeiam a existência humana e o sentido das coisas em face dos saberes que vamos acumulando ao longo da vida.

De volta à sua casa, tinha sempre à sua espera a esposa Xantipa, uma mulher de gênio irascível e invejável capacidade persuasiva, que, numa intrépida e sanguínea eloquência, causava apositia ao célebre filósofo. Os gritos estridentes e altissonantes de Xantipa provocavam, ao mesmo tempo, horror e satisfação a Sócrates, visto que ela, fugindo à imposição misógina, exaltava-se num discurso rebelde de insubmissão feminina, impingindo-lhe flagelos e uma espécie de código de terrores. Enquanto isso, o criador da maiêutica, num contragolpe silencioso de inocência, observava toda a cena, a fim de resgatá-la para o exercício de suas próximas aulas sobre retórica, autodomínio, autoconhecimento e virtudes nas ruas e praças de Atenas.

O exemplo de Xantipa traduz a prova de que o homem filósofo evitava o confronto com a mulher filósofa para não ser excluído ou derrotado no debate. Ele temia a ausência de sobriedade feminina no torneio dialético durante a tentativa de arrancar-lhe uma confissão expressa sobre a incompatibilidade da tese exposta em relação a uma verdade cuja negação é impossível. Era como se o pânico freudiano ameaçasse a tranquilidade socrática.

6. Conclusão

Não foi e não será minha pretensão, com este modesto estudo, revolver o passado como apanágio de um ser humano que tenha permanecido preso a uma distante e prolongada infância da qual não deseja se libertar.

Apenas posso dizer que quando o prazer de lembrar coisas boas do passado é igual a um laço difícil de desamarrar, o homem sempre retorna o pensamento para as paisagens reluzentes onde lampeja o clarão adamantino que, necessariamente, manterá atado o nó desse elo inquebrantável para o fim de alcançar uma das metas da felicidade, principalmente quando parece ser útil para o seu bem-estar e para sua memória afetiva.

No entanto, por tudo que foi examinado, é imperioso concluir este estudo rendendo justa homenagem às mulheres, cuja cultura filosófica nos foi transmitida pela oralidade, assim como o fez Sócrates, que nada deixou registrado por escrito. Elas nos ensinaram, no estágio infantojuvenil de nossa vida domiciliar, com a blandícia das frases adverbiais e o pendor natural das preceptoras diligentes. Eram mestras de si mesmas e de todos nós, iluminadas pelo clarim da retórica e da improvisação dos hinos fabulosos que o prosaísmo das faxinas domésticas inspiravam.

Essas aulas diuturnas eram unificadas em saberes populares que resumiam todos os provérbios da vida humana numa só ideia: a de que a mulher, com sua vocação procriadora e educadora, se tornava a pessoa mais importante numa família, embora prevalecesse o mito de que o homem autoritário, como pater familiae, é quem exercia o papel de maior relevância na organização social e familiar.

Numa linguagem metafísica, sinto frequentemente a necessidade de lembrar daqueles tempos memoráveis como inesquecível sonho de uma noite infindável. Por ser pura realidade, não desejo recordar como um devaneio ou uma saudade dissimulada, mas como um quinhão que a vida me legou no rico inventário de minha existência.

Destarte, com absoluta precisão, “O Mestre Eckhart”47, citado por Philippe Julien48, vaticina que “a palavra mulher é a mais nobre que alguém possa atribuir à alma”. Concordo com a reflexão do referido mestre, porque a locução “mulher” reúne, num só vocábulo, uma série inesgotável de princípios e de valores inerentes ao gênero feminino.

Portanto, é chegada a hora de pedirmos desculpas às mulheres filósofas, sobretudo às que permaneceram incógnitas, anônimas ou encobertas a contragosto no passado, subjugadas pela imponderável hegemonia masculina de sua época, não obstante ensinassem, sem preferência de sexo ou de gênero, a homens e mulheres do seu tempo, o conhecimento que detinham com proficiência.

Sem olvidar qualquer outra razão para, nós homens, merecermos esse sentimento indulgente, ocorre-me simplesmente a circunstância de que exaltar essas filósofas não se trata de mero louvor à mulher, dado que “o elogio é o abutre da alma49”, mas de um indispensável tributo pelo fato de que “as desculpas são como um perfume sublime; elas podem transformar o momento mais desgostoso num presente maravilhoso.50

Para concluir, manifesto aqui meu gesto de gratidão a todas as mulheres filósofas que conheci na minha infância, notadamente por ter sido educado numa espécie de estufa doméstica. E o faço na pessoa de uma admirável mulher que me gestou a vida intrauterina, no caso minha mãe51, também amiga da sabedoria. Dela recebi a primitiva bênção com beijo na mão e aprendi as primeiras orações, persignando-me genuflexo, na forma litúrgica, a cada gesto de contrição com Deus.

Convicto também estou de que ela me ensinou o alfabeto da vida, corrigindo-me a fonética e a ortografia do idioma, bem como a pronúncia da linguagem desde o “á-bê-cê”, como se me dissesse: “vais conhecer o mundo”, preparando-me para um dia sair da bolha onde recebi benfazejos cuidados angelicais e os primeiros escólios maternos.

Sei que isto é muito pouco para render graças a quem sou infinitamente devedor, mas honra-me fazer esse reconhecimento póstumo a quem me carregou, me amamentou, me embalou e me ensinou inúmeras vezes, considerando que ela não está mais entre nós para escutar minha voz, dizendo-lhe: Deus lhe pague minha mãe por todos os ensinamentos que recebi!

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. O Mestre. São Paulo: Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda, 2000.

- A Cidade de Deus. Parte I e II. 4.ª e 5.ª ed. Petropólis: Editora Vozes, 2000/2001.

BAZZO, Ezio Flavio. As sutilezas do mau caratismo ou as engrenagens da miséria existencial. Brasília: LGE EDITORA, 2007.

- A Lógica dos Devassos – No circo da pedofilia e da crueldade. Brasília: LGE EDITORA, 2007.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. São Paulo: Nova Fronteira, 2019.

BUTLER, Judith. A Reivindicação de Antígona: o parentesco entre a vida e a morte; tradução Jamille Pinheiro Dias; revisão técnica de Carla Rodrigues. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022.

- Desfazendo Gênero. Coordenação da tradução por Carla Rodrigues. São Paulo: Editora Unesp, 2022.

CAMPOS, Marize Helena de. Senhoras Donas: economia, povoamento e vida material em terras maranhenses (1755/1822). São Luís: Café & Lápis – FAPEMA, 2010.

COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga.Tradução: Fernando de Aguiar. 4.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

D’OLBACH, Baron. Sistema de la Naturaleza. Madrid: Editora Nacional, 1982.

GOMES, Mariângela Gama de Magalhães; FALAVIGNO, Chiavelli Facenda; MATA, Jéssica da. (Org). Questões de Gênero: uma abordagem sob a ótica das ciências criminais. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2018.

GOMPERZ, Theodor. Os Pensadores da Grécia: história da filosofia antiga. Tomo III, 3.ª ed. São Paulo: Icone Editora, 2014.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 12.ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

HENNEMANN, Natasha. LESSA, Fabiana. Filósofas: o legado das mulheres na história do pensamento mundial. São Paulo: Maquinaria Editora, 2022.

JULIEN, Philippe. A feminilidade velada: aliança conjugal e modernidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud Editora, 1997.

LACAMBRA, Luis Legaz. El derecho y el amor. Barcelona: Casa editorial S/A, Urgel, 31 bis, 1976.

LUNA, Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca. Por uma erótica do direito: contradições, diálogos e perspectivas entre direito e emoção. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2019.

MARMION, Jean-François. A Psicologia da Estupidez. Tradução de Leonardo Castilhone. São Paulo: Faro Editorial, 2021.

PICOZZI, Laura. Meu filho me adora: filhos reféns e pais perfeitos. Tradução: Cláudia Souza. São Paulo: Buzz Editora, 2018.

SAADAWI, Nawal el. A face oculta de Eva: as mulheres do mundo árabe. Tradução Sarah Giersztel Rubin, Therezinha Elbert Gomes e Elisabeth Mara Pow. São Paulo: Editora Global, 2002.

Sobre o autor
José Eulálio Figueiredo de Almeida

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Juiz de Direito Titular da 8.ª Vara Cível em São Luís. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos