3. As primeiras filósofas de nossas vidas
As mulheres de minha vida infantojuvenil eram genuínas filósofas, embora não soubessem o conceito de filosofia. Mas se é certo que a palavra filosofia deriva do grego e tem origem na junção de dois termos: philos, que significa amigo; e sophia, que significa sabedoria, elas estavam inseridas no seleto mundo da filosofia. Destarte, o filósofo é, por acepção etimológica da palavra, o amigo da sabedoria.
As mulheres a que me refiro tinham essa sabedoria popular inata por intuição; elas nunca frequentaram uma escola, nem eram letradas. Na realidade, o letramento envolve uma dinamicidade mais ampla do que a própria alfabetização, porque concentra, ao mesmo tempo, a ideia pluralista da escrita e da leitura na sociedade.
Mas nem por isso impede pessoas ágrafas ou iletradas de desenvolverem talentos culturais, posto que esta prática é resultante da criação mental do indivíduo que possui um dom que independe da escolarização, da articulação oral, do mutismo, da cegueira, do acesso à leitura, do conhecimento da língua, do domínio da escrita ou da sua posição social.
Assim sendo, reafirmo que minhas primitivas aulas de filosofia não foram ministradas na escola, nem poderiam ser; aprendi as primeiras máximas de experiência no lar doméstico, ouvindo histórias contadas por mulheres que conheci na infância que tive na minha família. Nenhuma delas estudou, outras nem ler e escrever sabiam, mas eram sábias. Algumas simplesmente nem sabiam assinar o nome, mas tinham a sapiência do vitalismo.
Suas lições diárias eram ensinadas durante os trabalhos inerentes ao sexo feminino. Contudo, sempre estavam envolvidas em tarefas coletivas na lavoura, como era o caso, por exemplo, do trabalho comunitário de extração da mandioca para fazer farinha na casa de forno, lugar onde homens e mulheres interagiam, imbuídos do propósito de finalizar a produção da safra agrícola.
Era nesse ambiente comunitário, constituído, na maioria das vezes, por pessoas da mesma família, que os mais jovens aprendiam, notadamente com as mulheres, a arte milenar da preparação do pão que vem da terra, entre cantigas, adágios populares e muitas preleções que serviriam para o resto da vida.
Certamente o leitor já deve ter ouvido alguns ditados populares que combinam perfeitamente com situações corriqueiras do dia-a-dia, dentre os quais podemos enumerar: “Me dizes com quem andas, que te direi quem tu és”; ou em outra fórmula: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”; ou finalmente: “Casa de ferreiro, espeto de pau”.
Esses provérbios, ainda hoje vigentes, divulgados em família, são pronunciados oralmente por pessoas que nem sempre se dão conta de que um dia eles foram ensinados por mulheres que se ocupavam dos afazeres domésticos e, para melhor fixação da advertência feita ao filho, a algum parente ou amigo próximo, concluíam a conversa com um adágio representativo de uma norma social de cunho ético ou moral.
Essas heroínas do conhecimento filosófico, da sabedoria popular e do pensamento humano, ensinavam, como já dissemos inúmeras vezes, em família, contando histórias com a paciência hierática e o juramento solene da apologia ao amor materno. Como bem lembra Laura Picozzi27:
“A família é o lugar da transmissão, é onde se comunica um estilo, onde as narrações são escutadas, onde os valores são compartilhados. Nos contos familiares existem palavras que marcaram a nossa origem, que nos acolheram quando nascemos e que nos seguiram – às vezes perseguiram – até a idade adulta.”
Essas notáveis mulheres, filósofas de nossa vida familiar, prudentes e cautelosas missionárias da catequese doméstica, permanecem anônimas, porque nada escreveram. E também porque não podiam disputar lugares, nem ter direito a fala nas escalas ou ambientes sociais dominados à época pelos homens. Mas seus ensinamentos vivem em nossas irremovíveis lembranças.
A discriminação misógina que era imposta à mulher na antiguidade, com reflexos ainda hoje em alguns países, chegava ao absurdo de defender data maxima venia a alforria do escravo, mas não a liberdade da mulher, a qual carregava um sentimento de culpa causado por uma espécie de senso moral coletivo, que lhe impunha uma sigilosa justiça domiciliar para preservar a suprema autoridade patriarcal, circunstância que provocava a perda da identidade feminina e a capacidade de reação. A mulher vítima desses desmandos ignóbeis mantinha-se inerte e inerme para salvaguardar a sua família e não ser considerada mentalmente desequilibrada.
Apesar de terem vivido esse calvário histórico, essas mulheres filósofas de nossa convivência não estão silenciadas em suas aulas de filosofia, porque jamais serão apagadas de nossas memórias afetivas. Este é o lugar no qual elas, nossas mestras e preceptoras, com sua ancestralidade plural, sempre estarão guardadas e preservadas para serem lembradas ad aeternum.
4. O lugar da mulher na história da filosofia universal
É recente a descoberta da mulher com o título de filósofa nas civilizações de antanho, especialmente na Grécia antiga, considerada o berço da filosofia, onde prevalecia a ideia da sociedade binária e o conceito de “gênero” não estava separado do de sexo biológico.
Mas falar de “mulher filósofa” não deve representar apenas o reconhecimento do pensamento feminista, mas a existência de doutrinas que envolvem questões de gênero, sob inúmeros aspectos, e cujo grito ecoa para além do papel onde foram impressas suas teorias e palavras em busca de uma igualdade social.
Ser mulher filósofa! Eis a grande questão, independentemente da diversidade de gênero ou do grupo para o qual compartilha suas ideias. Nessa perspectiva não interessa unicamente investigar o que essas mulheres pensam, mas como elas podem e devem manifestar o seu dizer filosófico, considerando que ninguém tem como desejo ser oprimido e violentado. Ser vista e ouvida é uma forma de as mulheres livrarem-se das amarras do patriarcado egocêntrico que lhes impediu de ocupar o espaço que era delas.
Mas o que essas mulheres têm a nos dizer atualmente? Creio que muitas coisas que os saberes clássicos concentraram nas vozes masculinas, embora saibamos não sejam eles a única forma de revelar o pensamento filosófico ou divisar a dimensão humana numa sociedade plural onde, atualmente, as interpretações não se vinculam mais às teorias biológicas e as atenções estão voltadas não apenas para o masculino e o feminino, mas também para outros gêneros.
O importante nessa proposta cognitiva é a expressão do sentimento da vida, do viver filosófico, ainda que a felicidade ceda lugar a eventuais momentos de tristeza. Neste salutar acaso simbiótico, o fundamental é manter a felicidade como contraponto da razão, pois, conforme o comediógrafo grego Menandro28, “uma pequena gota de felicidade é melhor que uma tonelada de razão.”
Pode parecer espantoso, mas a vida tem seus parêntesis. Para o filósofo, qualquer sentimento é útil porque o ensina a fazer algo, considerando que o sentir é introspectivo, recôndito; e o fazer é manifesto; ostensivo, ou seja, é revelado.
Preferimos a alegria, sinônimo de uma festa, à tristeza, atributo da rejeição. A alegria é sempre bem-vinda; a tristeza é evitada, mas os dois sentimentos são benéficos à sabedoria humana. Estar alegre é um convite eterno ao regozijo; estar triste é fazer uma viagem ao mais profundo declínio de nossa euforia.
Daí porque não é inexata a pretensão de asseverar que sentir ensina, molda, renova, acrescenta e eleva a alma, porque é um verbo que se conjuga para dentro de nós mesmos; ao contrário de fazer, que é declamado para fora. Portanto, triste é não sentir nada.
Assim sendo, o que não podemos é admitir dizeres ou raciocínios fracionados ou incompletos retirados de parte de um contexto. A frase ou a ideia não pode ser reticente, parentética ou deturpada, a exemplo do que tem sido feito com o texto de Simone de Beauvoir29. Como respeitável filósofa, ela nasceu mulher; não tornou-se mulher. Ela era inteiramente mulher, porque cumpriu todos os requisitos da feminilidade.
Como é de sabença geral, o campo filosófico nem sempre foi aberto para as mulheres. Embora exista uma enorme fertilidade cultural feminina, a discrepância com o masculino, ligado ao padrão do sexo biológico, é evidente com reflexos no próprio ambiente da filosofia feminina.
Por essa razão, Liria Ângela Andrioli30 enfatiza que “ao realizar um resgate sobre a presença das mulheres na história da filosofia, percebe-se que a figura do feminino é discutida por meio de um sujeito que não é o que a representa, mas sim outro sujeito: o sujeito masculino. Mesmo assim, este discurso é sempre evitado no campo filosófico.”
Nesse particular, observam-se disparidades no próprio movimento feminista entre mulheres brancas, negras, indígenas, latinas, europeias, etc, que suscitam privilégios, discriminações, racismos, opressões e uma série de preconceitos raciais, sociais e políticos que criam divergências, quando não rivalidades de cunho científico ou ontológico, considerando que a mulher, desde a antiguidade grega, carregava um rótulo aviltante de cruel submissão e era definida pelos filósofos “com características e atribuições negativas, como a figura que detém o mal, com atitudes capciosas, um ser incompleto. 31 ”
Esses erros de interpretações, baseados especialmente em padrões biológicos, possibilitaram a descoberta de equívocos históricos e o resgate, na atualidade, de uma identidade do feminino que vai além do masculino e de outros gêneros, possibilitando o afastamento da antiga visão deturpada32 e a conquista pela mulher filósofa do espaço que era seu de direito desde as antigas civilizações, como a egípcia e a grega.
Muito embora a mulher tenha sido impedida de participar amplamente da vida pública, filósofos pré-socráticos, como Pitágoras e Tales de Mileto, receberam ensinamentos de mulheres, dentre elas Teano de Crotona 33 e Temistocleia de Delfos. Sobre a primeira, consta que teria apresentado a Pitágoras uma teoria que tornou-se famosa sobre a metempsicose, a qual consiste na imortalidade da alma. Essa teoria foi absorvida pela filosofia platônica. Sobre a segunda mulher, sabe-se que foi a fonte da maior parte das doutrinas morais e éticas de Pitágoras, que “incluem a ideia de superioridade da natureza intelectual sobre a natureza sensorial, a noção de cosmos harmônico e até mesmo essa importante teoria da metempsicose. 34 ”
Nesse pormenor, destaco também a figura de outras mulheres como Diotima de Mantineia, conhecida como a “Mestra do Mestre” por haver sido professora de Sócrates e ensinado a ele tudo sobre Eros35. Por essa razão, exercia um status de autoridade intelectual sobre Sócrates, o filósofo do método dialético36 e da maiêutica.
Com efeito, é de autoria de Sócrates a seguinte frase:“deve-se temer mais o amor de uma mulher, do que o ódio de um homem”. Dificilmente um homem, mesmo sendo um renomado filósofo, pensaria numa frase tão incisiva sobre a cólera feminina, como esta de autoria do grande filósofo Sócrates, se não tivesse convivido e aprendido tudo sobre o amor com uma mulher.
O enunciado de Sócrates, ensinado por Diotima de Mantineia, configura a pulsação do descontrole emocional e a invisível força perturbadora de Eros. Propõe, de forma taxativa, um diálogo incoerente entre o amor e a paixão, cuja inflexibilidade pode desafiar, para um definitivo e trágico duelo, a vida e a morte, pela ingerência de um consórcio ambíguo, contraditório, paradoxal e polêmico entre a razão e a emoção.
No sentido filosófico, médico, terapêutico ou psicopedagogo não é equivocado afirmar que a emoção é um fator mais acentuado na mulher, porque “o útero é o principal receptor das emoções femininas. É como se ele fosse o coração da mulher 37 ”. Vale acrescentar também que no útero está contida a pulsação da vida, porque ele representa a potência da mulher. É como se um outro coração conexo aí se encontre batendo bem mais forte do que o existente no tórax.
O útero da mulher é, portanto, a nossa primeira morada, nosso primitivo abrigo e nosso sustento antes do nascimento. Pode-se dizer que o útero é um coração matriz que abriga dentro de si outro coração que pulsa.
Esse órgão indolor que se localiza na parte baixa da barriga é uma benção e fonte de energia feminina porque, apesar de os ovários serem responsáveis pela produção dos hormônios, compete ao útero não apenas gestar filhos, mas também amores, paixões, ódios e cóleras. É, portanto, através do útero que a mulher manifesta as contrações vagínicas de seus desejos, anseios e contrariedades. Por isso, o útero pode ser doce, agridoce e amargo quando as emoções femininas explodem.
Na verdade, o ser humano é movido por sentimentos, dentre os quais as emoções que, no dizer de Nevita Luna38, “são forças animais desprovidas de pensamento.” Portanto, como as emoções são forças estranhas ao pensamento e alheias à razão, a mesma autora39 obtempera que essa inconciliação “está ligada à ideia de que a emoção seria ‘fêmea’ (mais próxima do extinto animalesco, mais imergida no corpo) e a razão, ‘macho’.”
E já que estamos também falando de instinto animalesco, não seria de todo irrazoável apostilar, com todas as vênias, que a emoção é um sentimento resultante das contrações vagínicas e uterinas dos mamíferos40.
Mas não foi somente Diotima de Mantineia quem muito ensinou a Sócrates sobre o amor e a sabedoria. Uma outra mulher chamada Aspásia de Mileto, célebre pela sua admirável habilidade política e a capacidade de discursar em público, ensinou retórica para Sócrates. A dialética socrática pode ter sido resultante da convivência com essa extraordinária mulher que, além de possuir habilidades como música, canto e dança, tornou-se preceptora e amante de Péricles (administrador de Atenas), ensinando-lhe tudo sobre política.
Não há dúvidas de que existem muitos ensinamentos e textos escritos por mulheres que mantiveram-se anônimas por muitos séculos. Isto não é um preconceito somente vivenciado nos primórdios dos tempos. Temos registro, no próprio século XX, de mulheres que contribuíram para os trabalhos de homens de ciência, como a esposa de Albert Einstein41, que exerceu decisiva influência nas pesquisas dele e apresentou valorosa contribuição sobre a teoria da relatividade, cuja autoria é atribuída a esse grande pesquisador e cientista.
Seja essa história real ou fantasiosa, controversa ou incontroversa, o certo é que, parodiando Gagnon42, “apagar da história da ciência mulheres brilhantes como Mileva não ajuda no trabalho de demonstrar que nós mulheres somos tão capazes quanto os homens.”
Por essa razão, o que importa é resgatar o nome dessas notáveis mulheres que sofreram na obliquidade soberba dos homens que se aproveitaram do conhecimento delas, mantendo-as no completo anonimato sem direito a reivindicarem qualquer crédito sobre a cooperação que deram para o progresso da ciência, visto que a regra era a preservação da hegemonia masculina.
Cansada de assistir suas ideias serem indevidamente apropriadas por varões, a mulher passou a usar sua própria linguagem para, sem a conotação viril e insolente do homem, expressar - ela mesma - a sabedoria que promana de sua verve feminina, sem se preocupar com o estilo exaltado que caracteriza a valentia misógina.
A mulher filósofa, com esse perfil elegante, outorgou a si mesma o atestado que lhe garantiu a autonomia para ombrear-se ao homem filósofo ou superá-lo, sem precisar esconder-se atrás de pseudônimos ou de símbolos por temor a hostilidades, muito menos críticas ou sabatinas masculinas dos que outrora, comparsas e propagadores de suas ideias geniais, bebiam dos conhecimentos que escorriam de suas mentes brilhantes, contudo as menosprezavam e subjugavam.