Capa da publicação Mulheres filósofas: vozes silenciadas da Antiguidade
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A importância histórica da filosofia feminina

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5. A filosofia como história e felicidade humana

A história da filosofia é a nossa própria história. Estudamos a história da filosofia para entendermos a nossa própria existência como ser humano. Por essa razão, não é errado dizer que a vida deve ser vivida filosoficamente.

Existe uma lógica nessa assertiva, porque a história da filosofia é inquestionavelmente a história do pensamento, considerando que para filosofar é necessário ter existência humana e pensar – cogito, ergo sum 43.

Quanto a mim, posso afirmar que quanto mais estudo e penso que aprendo sobre algum assunto, mais me convenço que menos eu sei. Contudo, somente podemos evoluir culturalmente a partir do aprendizado que vamos acumulando ao longo de nossa existência. Isto é que nos confere a chamada sabedoria.

Muito antes de Pitágoras dar nome ao que conhecemos como filosofia, o amor à sabedoria já existia. E não eram os denominados filósofos que ensinavam ou proclamavam essa sabedoria, visto que para ensinar não precisa ser doutor, mestre, especialista, sábio ou professor, mas apenas ser culto, ter conhecimentos, racionalidade, prudência e experiência de vida.

Talvez por isso muitas pessoas, independentemente da época, da idade, da etnia, da cor, da origem, do sexo, do gênero, do lugar, veem na filosofia algo tão fascinante e enigmático, posto que sua atemporalidade nos convoca sempre a adotar novos paradigmas mediante o rompimento de conceitos clássicos ou a editar novas concepções a partir de ideias já superadas e preconcebidas.

Muitas pessoas têm ideias equivocadas sobre o que seja filosofia. Imaginam que a filosofia é um pensamento abstrato, ilusório e irreal, em resumo, algo totalmente alheio às coisas da vida. Assim, atribuem à filosofia uma sequência de palavras enigmáticas, de difícil compreensão, que fogem à realidade palpável, vale dizer, algo como um emaranhado de pensamentos desconexos que nada têm a ver com a realidade que se vive.

Mas enganam-se os que assim pensam. A filosofia possui metodologia própria, embora, por vezes, se apegue a conceitos abstratos. Ela está diretamente ligada a nossa existência prática da vida, pois viver é filosofar. Portanto, ninguém precisa ser um pontífice de virtudes para ser filósofo. A corrente helenística de filosofia conhecida, na antiga Grécia, como cinismo, que teve o inconveniente filósofo Diógenes, como um dos grandes luminares, é um belo exemplo disso.

Por isso é que muitos indivíduos, embora não tenham frequentado nenhuma faculdade para obter o grau de filósofo, conseguem filosofar, pois a filosofia é uma atividade que revela, dentre outras coisas, os saberes adquiridos pela própria experiência de vida, a partir da sabedoria que o ser humano vai acumulando, ao longo da sua existência, independentemente do conhecimento da doutrina.

Isto se dá pela capacidade de as pessoas se sentirem livre para professar seus pensamentos, os quais, após revelados, passam a integrar o domínio público. Por essa razão, comungamos com Baron D’holbach44 ao afirmar que “El filósofo no es propietario de sus ideas.”

É óbvio que um filósofo teria que publicar trabalhos para tornar pública suas ideias. Mas, em épocas remotas, nem sempre o verdadeiro autor do texto assumia sua autoria com receio de sofrer grave censura, discriminação ou punição. O medo contribuía para “que la mayoría de los trabajos se publicaban anónimos, con pseudónimos y siempre com grandes riesgos 45 .”

As mulheres que nos ensinaram o que é filosofia dentro de nossas casas, embora aparentemente submissas ao patriarcalismo radical, nunca se sentiam tristes, nem tinham a escrita como forma de compartilhar seus ensinamentos, porque não eram baseados na cultura grafocêntrica. Por isso mesmo, conseguiam lecionar diariamente, aplicando seus escólios verbais e ágrafos, enquanto exerciam atividades domésticas sem se preocuparem em difundir seus conhecimentos na forma escrita, simplesmente porque a maioria delas era iletrada.

Como tudo que é belo não pode ser aprisionado, as mulheres a que me refiro, as quais não podem ser chamadas de escritoras, deixaram seus legados com a essência da simplicidade, considerando que a beleza e a sabedoria são naturais e não precisam de leis escritas, nem de ordens legais para afirmarem-se perante o mundo.

Talvez seja por essa razão que os provérbios criados por essas mulheres incógnitas, que não foram ouvidas, nem enxergadas em suas épocas, são mais populares do que os apotegmas filosóficos e mais fáceis de assimilação por conta da prática cultural e costumeira das expressões, notadamente por grupos de pessoas que vivem em comunidades ou territórios remotos e perpetuam memórias afetivas longínquas.

Essa riqueza filosófica revela sentimento multissecular e configura a maior beleza humana exatamente porque, assim como um pássaro que canta e encanta livre na natureza, não pertence a ninguém, ela é de uso comum; não está nos livros, nem nas obras dos maiores filósofos da humanidade. E somente resiste até nossos dias e continuará existindo para a posteridade porque, a exemplo do canto do pássaro livre que gorjeia todas as manhãs, no jardim ou na janela de nossas casas, acordando-nos para um novo dia, o tempo não a apagará, porque é propagada diariamente às novas gerações de forma verbal como história e sabedoria de vida.

Quem vive filosofa e quem filosofa vive. Isto não é um trocadilho de palavras, mas uma inequívoca realidade. Na verdade significa apenas que é no ato de viver que se filosofa e que todo ato de filosofar é um ato da nossa vida. Não é à toa que os antigos romanos, com muita sabedoria, diziam “primo vivere, deind philosophari”, ou seja, primeiro viver, depois filosofar.

Na praticidade romana se colocava o filosofar como um segundo passo, como uma sequência do viver; mas ao estarmos vivendo estamos filosofando, porque estamos sempre procurando raciocinar com sabedoria. Esta precedência a que os romanos se referem significa apenas que o ato de filosofar pressupõe e antecede o ato de viver, o estar vivo como ser pensante, o levar a sério a vida com todos os seus desafios e com todas as suas consequências. Em suma: nos sentirmos felizes. Por isso, com justa razão, o filósofo Baron D’holbach46 preconiza que “la filosofia debe estar al servicio de la felicidad.”

Com efeito, pelo fato de passar o dia inteiro filosofando nos espaços públicos, o célebre filósofo Sócrates era conhecido como “mosca de Atenas”, haja vista ser tachado pelos cidadãos como alguém que incomodava ou molestava os transeuntes com o seu método dialético conhecido como maiêutica, o qual consistia em indagar continuamente as pessoas sobre diversas questões que permeiam a existência humana e o sentido das coisas em face dos saberes que vamos acumulando ao longo da vida.

De volta à sua casa, tinha sempre à sua espera a esposa Xantipa, uma mulher de gênio irascível e invejável capacidade persuasiva, que, numa intrépida e sanguínea eloquência, causava apositia ao célebre filósofo. Os gritos estridentes e altissonantes de Xantipa provocavam, ao mesmo tempo, horror e satisfação a Sócrates, visto que ela, fugindo à imposição misógina, exaltava-se num discurso rebelde de insubmissão feminina, impingindo-lhe flagelos e uma espécie de código de terrores. Enquanto isso, o criador da maiêutica, num contragolpe silencioso de inocência, observava toda a cena, a fim de resgatá-la para o exercício de suas próximas aulas sobre retórica, autodomínio, autoconhecimento e virtudes nas ruas e praças de Atenas.

O exemplo de Xantipa traduz a prova de que o homem filósofo evitava o confronto com a mulher filósofa para não ser excluído ou derrotado no debate. Ele temia a ausência de sobriedade feminina no torneio dialético durante a tentativa de arrancar-lhe uma confissão expressa sobre a incompatibilidade da tese exposta em relação a uma verdade cuja negação é impossível. Era como se o pânico freudiano ameaçasse a tranquilidade socrática.


6. Conclusão

Não foi e não será minha pretensão, com este modesto estudo, revolver o passado como apanágio de um ser humano que tenha permanecido preso a uma distante e prolongada infância da qual não deseja se libertar.

Apenas posso dizer que quando o prazer de lembrar coisas boas do passado é igual a um laço difícil de desamarrar, o homem sempre retorna o pensamento para as paisagens reluzentes onde lampeja o clarão adamantino que, necessariamente, manterá atado o nó desse elo inquebrantável para o fim de alcançar uma das metas da felicidade, principalmente quando parece ser útil para o seu bem-estar e para sua memória afetiva.

No entanto, por tudo que foi examinado, é imperioso concluir este estudo rendendo justa homenagem às mulheres, cuja cultura filosófica nos foi transmitida pela oralidade, assim como o fez Sócrates, que nada deixou registrado por escrito. Elas nos ensinaram, no estágio infantojuvenil de nossa vida domiciliar, com a blandícia das frases adverbiais e o pendor natural das preceptoras diligentes. Eram mestras de si mesmas e de todos nós, iluminadas pelo clarim da retórica e da improvisação dos hinos fabulosos que o prosaísmo das faxinas domésticas inspiravam.

Essas aulas diuturnas eram unificadas em saberes populares que resumiam todos os provérbios da vida humana numa só ideia: a de que a mulher, com sua vocação procriadora e educadora, se tornava a pessoa mais importante numa família, embora prevalecesse o mito de que o homem autoritário, como pater familiae, é quem exercia o papel de maior relevância na organização social e familiar.

Numa linguagem metafísica, sinto frequentemente a necessidade de lembrar daqueles tempos memoráveis como inesquecível sonho de uma noite infindável. Por ser pura realidade, não desejo recordar como um devaneio ou uma saudade dissimulada, mas como um quinhão que a vida me legou no rico inventário de minha existência.

Destarte, com absoluta precisão, “O Mestre Eckhart”47, citado por Philippe Julien48, vaticina que “a palavra mulher é a mais nobre que alguém possa atribuir à alma”. Concordo com a reflexão do referido mestre, porque a locução “mulher” reúne, num só vocábulo, uma série inesgotável de princípios e de valores inerentes ao gênero feminino.

Portanto, é chegada a hora de pedirmos desculpas às mulheres filósofas, sobretudo às que permaneceram incógnitas, anônimas ou encobertas a contragosto no passado, subjugadas pela imponderável hegemonia masculina de sua época, não obstante ensinassem, sem preferência de sexo ou de gênero, a homens e mulheres do seu tempo, o conhecimento que detinham com proficiência.

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Sem olvidar qualquer outra razão para, nós homens, merecermos esse sentimento indulgente, ocorre-me simplesmente a circunstância de que exaltar essas filósofas não se trata de mero louvor à mulher, dado que “o elogio é o abutre da alma 49 ”, mas de um indispensável tributo pelo fato de que “as desculpas são como um perfume sublime; elas podem transformar o momento mais desgostoso num presente maravilhoso. 50

Para concluir, manifesto aqui meu gesto de gratidão a todas as mulheres filósofas que conheci na minha infância, notadamente por ter sido educado numa espécie de estufa doméstica. E o faço na pessoa de uma admirável mulher que me gestou a vida intrauterina, no caso minha mãe51, também amiga da sabedoria. Dela recebi a primitiva bênção com beijo na mão e aprendi as primeiras orações, persignando-me genuflexo, na forma litúrgica, a cada gesto de contrição com Deus.

Convicto também estou de que ela me ensinou o alfabeto da vida, corrigindo-me a fonética e a ortografia do idioma, bem como a pronúncia da linguagem desde o “á-bê-cê”, como se me dissesse: “vais conhecer o mundo”, preparando-me para um dia sair da bolha onde recebi benfazejos cuidados angelicais e os primeiros escólios maternos.

Sei que isto é muito pouco para render graças a quem sou infinitamente devedor, mas honra-me fazer esse reconhecimento póstumo a quem me carregou, me amamentou, me embalou e me ensinou inúmeras vezes, considerando que ela não está mais entre nós para escutar minha voz, dizendo-lhe: Deus lhe pague minha mãe por todos os ensinamentos que recebi!


REFERÊNCIAS

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GOMES, Mariângela Gama de Magalhães; FALAVIGNO, Chiavelli Facenda; MATA, Jéssica da. (Org). Questões de Gênero: uma abordagem sob a ótica das ciências criminais. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2018.

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SAADAWI, Nawal el. A face oculta de Eva: as mulheres do mundo árabe. Tradução Sarah Giersztel Rubin, Therezinha Elbert Gomes e Elisabeth Mara Pow. São Paulo: Editora Global, 2002.

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Sobre o autor
José Eulálio Figueiredo de Almeida

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Desembargador do TJMA. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo. A importância histórica da filosofia feminina. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7997, 24 mai. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/111624. Acesso em: 5 dez. 2025.

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