4. Razoável duração do processo como direito ou garantia fundamental
Se até aqui se discutiu a possibilidade de resultados práticos para o princípio constitucional da razoável duração do processo, tal questão restará em aberto, até que sejam sedimentadas as bases compreensivas do que vem a ser o direito à razoável duração. Como sugere o título desse artigo, pode ser entendido como direito fundamental? E como garantia processual constitucional?
Só a partir do debate teórico, do amadurecimento da experiência constitucional e, por fim, da atuação interpretativa das cortes, poder-se-á extrair as lições fundamentais sobre a dimensão positiva do tema em questão.
Há autores que preferem desprezar a distinção epistemológica entre direito fundamental e garantia processual [36].
Embora não seja o intuito do presente estudo, é preciso aclarar os dois sentidos suscitados.
4.1. Breves incursões na teoria geral dos direitos fundamentais
Há certo desconforto em se definir direitos fundamentais, pois assim como ocorre com a expressão "direitos do homem", a maior parte das tentativas resulta em definições tautológicas [37]. Costuma-se referir, dogmaticamente, aos direitos fundamentais, como uma questão essencial que se confunde com a própria noção de Estado Constitucional, na medida em que assim assinala a disposição da Declaração Francesa de 1789 que afirma que "toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não possui Constituição". [38]
Nessa dimensão, cumprem o papel de legitimação do poder estatal, traduzidos em "funções estruturais de suma importância para os princípios conformadores da Constituição", como salienta Segado, após remeter à opinião de Hans-Peter Schneider, de que aqueles constituem "conditio sine qua non" do Estado Constitucional Democrático5 [39]. Gilmar Mendes, referindo-se ao pensamento de Konrad Hesse, afirma que pelos direitos fundamentais não são apenas assegurados direitos subjetivos, mas também os princípios objetivos da ordem constitucional e democrática [40].
Esse pensamento se coaduna à observação de que, no caso do nosso direito (constitucional) positivo, os princípios e normas constantes do Título II da Constituição Federal de 1988 ("Dos Direitos e Garantias Fundamentais"), apresentam uma interdependência para com aqueles princípios estruturantes do Título I do texto constitucional ("Dos Princípios Fundamentais") [41].
Como conteúdo, os direitos fundamentais expressam os valores considerados principiais da nossa cultura [42], tendo como significação mais próxima, a própria dignidade humana [43]. Assim correspondem ao continuum de direitos às condições mínimas de existência humana digna, que não podem ser objeto de intervenção do Estado, mas que, simultaneamente, demandam prestações estatais positivas [44]. Nessa perspectiva, os direitos fundamentais possuem a característica de direitos públicos subjetivos, ou seja, posições jurídicas ocupadas por seu titular perante o Estado [45].
A concepção de uma área intangível de direitos, que caracteriza as liberdades públicas negativas de limitação da atuação do Estado, provém, solenemente (e, de maneira prospectiva, constitucionalizada), da citada Declaração de direitos [46], e corresponde a uma primeira vertente de direitos fundamentais. São os chamados de direitos de defesa.
Por seu turno, a segunda concepção diz respeito ao clamor da intervenção estatal, por meio de prestações assistenciais fulcradas nas necessidades da coletividade, com apoio nos ventos socialistas do Século XIX [47]. São, por assim dizer, mecanismos de imposição de prestação, por parte do Poder Público, de providências de índole social.
Na segunda metade do século XX, cunhou-se uma terceira etapa de desenvolvimento na concepção dos direitos fundamentais, associando-os aos direitos humanos, como atributos inerentes a toda humanidade.
Dessa maneira, são identificadas três dimensões de direitos fundamentais, confiadas de acordo com a etapa de positivação nas esferas constitucional e internacional [48]:
a)direitos de primeira dimensão, correspondentes aos direitos de defesa do indivíduo frente ao Estado, de cunho negativo, pois demarcam uma zona de não-intervenção do Estado;
b)direitos de segunda dimensão, atinentes aos direitos econômicos, sociais e culturais, vertidos à prestações assistenciais positivas outorgadas ao indivíduo, por parte do Estado, caracterizando liberdades positivas, e, também, "liberdades sociais", como, por exemplo, a liberdade de sindicalização e o direito de greve, entre outros;
c)direitos de terceira dimensão, formulados como direitos de solidariedade e fraternidade, que se depreendem da figura do homem-indivíduo como seu titular, e transferindo essa titularidade à proteção de grupos humanos, enquadram-se como direitos coletivos e difusos (meio ambiente, relações de consumo etc). Vinculam-se, pois à proteção da dignidade humana.
Pode ser referida, ainda, uma quarta dimensão de direitos fundamentais, por enquanto não consagrada definitivamente, que, no dizer de Ingo Sarlet, corresponde à conjugação entre a idéia de direitos fundamentais globalizados, tendenciais à democracia direta, à informação e ao pluralismo, defendida por Paulo Bonavides. Inclui-se na pauta de discussão dessa nova visão, o chamado biodireito, onde se destacam as posições de direitos relacionados à manipulação genética, a mudança de sexo, entre outros [49].
Em um só esforço, os direitos fundamentais podem ser conceituados como normas jurídicas legitimadoras da ordem constitucional e de sublevação de direitos subjetivos, cujo escopo maior é a preservação da dignidade humana [50].
Esse é, no entanto, o paradigma básico de uma abordagem teorética dos direitos fundamentais. Um approach mais amplo e qualificado demanda a adoção de certos modelos referenciais formulados pela doutrina, onde têm espaço, várias perspectivas de focalização, dentre elas, a filosófica, a histórica, a ética, a jurídica e a política, como aponta Bobbio [51]. Ao passo em que a opção pela visão da dogmática jurídica é a solução mais funcional para a abordagem do assunto, decerto, outros pormenores, oriundos de campos de formulação diversos, serão empregados na busca de uma contextualização que tornem aptos os resultados, ao final, pretendidos.
Com efeito, alerta-se, ainda, para o fato de que os limites objetivos da pesquisa não comportam um cabedal de informações suficientemente profundo para esgotar os pontos e contrapontos aqui centrados, não raras vezes, afeiçoados de imensa complexidade, a qual inviabilizaria, inclusive fisicamente, o seu exaurimento temático, até mesmo em obras que cuidam, exclusivamente, do assunto, como é o caso confessional, do magistral e multicitado trabalho de Ingo Wolfgang Sarlet [52].
4.2. Direitos fundamentais de caráter processual
As implicações do primado da rule of law e da noção do devido processo encerram a necessidade de proteção judicial a um leque de direitos que não se restringem a proclamarem direitos subjetivos, mas dirigem, outrossim, a efetivá-los.
No sentir de Gilmar Mendes, Paulo Gonet e Inocêncio Mártires Coelho, esses direitos seriam designados como direitos fundamentais de caráter judicial e garantias constitucionais processuais, expressões análogas àquela empregada pela doutrina alemã ("Justizgrundrechte"). [53]
É preferível, no entanto, falar-se em direitos fundamentais de caráter processual ou em garantias constitucionais processuais, por restarem aplicáveis, de igual sorte, no processo administrativo, como bem ressalvam os autores citados.
Certo é que o sistema de garantias constitucionais consagrado pela Constituição de 1988, transcende o âmbito de proteção judicial, englobando quatro grandes grupos: i) as garantias materiais; ii) as garantias jurisdicionais; iii) as garantias processuais; e iv) as garantias tributárias.
Nos interessa de mais perto os três primeiros grupos, os quais serão identificados por exemplificativos.
4.2.1. Direitos fundamentais consistentes em garantias materiais
Dentre as garantias materiais, podemos articular os princípios da anterioridade e da reserva da lei penal, corolários do próprio primado da segurança jurídica. Nesse grupo de garantias, inscrevem-se, ainda o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, o princípio da personalização da pena e o princípio da individualização da pena.
Constitui, também, garantia constitucional material a proibição das seguintes penas: de morte, salvo em caso de guerra declarada; de caráter perpétuo; de trabalhos forçados; de banimento; e as consideradas cruéis.
Também, em matéria de pena, constituem garantias os princípios relativos à execução da pena privativa da liberdade, em que o Estado deve zelar pela elaboração de políticas penitenciárias que visem, além do caráter retributivo da pena, a ressocialização do preso. Podemos apontar as seguintes garantias decorrentes: cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; o respeito à integridade física e moral e o direito das presidiárias de permanecerem com os seus filhos durante o período de amamentação.Por fim, as restrições à extradição de nacionais e estrangeiros e a proibição da prisão civil por dívidas, salvo no caso de devedor de pensão alimentícia ou do depositário infiel, são outros exemplos de garantias materiais constitucionais.
4.2.2. Direitos fundamentais consistentes em garantias jurisdicionais
A proteção judicial efetiva corresponde à base principiológica da atuação do Judiciário independente. São exemplos de garantias constitucionais jurisdicionais: o princípio da inafastabilidade ou do controle do Poder Judiciário; a proibição dos tribunais de exceção; o julgamento pelo Tribunal do Júri em crimes dolosos contra a vida; o princípio do juiz natural ou do juiz competente; o princípio do promotor natural; e o dever de motivação das decisões judiciais.
4.2.3. Direitos fundamentais consistentes em garantias tipicamente processuais
Esse grupo de garantias abrange não apenas o processo judicial, mas também os atos da Administração Pública. Em sentido genérico, estão diretamente associados ao princípio do devido processo legal e podem ser elencados como princípios, tais como: do contraditório e da ampla defesa; da proibição de prova ilícita; da presunção de não culpabilidade; da publicidade dos atos processuais; e garantias da legalidade e da comunicabilidade das prisões.
4.3. Dimensões do direito à razoável duração do processo
Com respeito às tipologias apresentadas, podemos afirmar que o princípio da razoável duração do processo pode ser identificado em várias perspectivas.
Em primeiro lugar, como direito fundamental propriamente dito, a observância à razoável duração do processo legitima a atuação constitucional dos órgãos do Estado [54] e possibilita a elevação do direito à efetiva tutela jurisdicional a um patamar de respeito à dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, já afirmara Dürig, que a "submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o principio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana" [55].
Inscreve-se, portanto, a razoável duração do processo, como já dito, no círculo conceitual da proteção judicial efetiva, sedimentada no Texto Constitucional, no art. 5º, XXXV. Nesse sentido, ao se reconhecer "um direito subjetivo a um processo célere – ou com duração razoável – impõe ao Poder Público em geral e ao Poder Judiciário, em particular, a adoção de medidas destinadas a realizar esse objetivo". [56]
É ao mesmo tempo, garantia jurisdicional do cidadão, ínsita à noção de proteção judicial efetiva, e garantia tipicamente processual, em decorrência do regime do devido processo assegurado constitucionalmente.
No âmbito do processo penal, há demasiada importância para o reconhecimento da dimensão garantia do direito fundamental à razoável duração do processo, existindo, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, construção jurisprudencial que concedem habeas corpus em razão do excesso de prazo da prisão cautelar, conforme lembra Gilmar Ferreira Mendes:
O Tribunal tem entendido que o excesso de prazo, quando não atribuível pela à defesa, mesmo tratando-se de delito hediondo, afronta princípios constitucionais, especialmente o da dignidade humana (art. 1º, III, da CF/88); devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF/88); presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF/88); e razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/88), impondo-se, nesse caso ao Poder Judiciário, o imediato relaxamento da prisão cautelar do indiciado ou do réu. [57]
Assim, a percepção da importância real da nova cláusula constitucional está apenas a caminho. Novas construções jurisprudências serão certamente laboradas, de sorte a evitar o perecimento da eficácia dos direitos, e ignorar, ainda uma vez, o problema da efetividade do processo, que ainda remete o jurisdicionado ao drama de Kafka, de uma justiça incompreensível.
5. Em tempo de concluir
Em desfecho, poderíamos reperguntar, assim como iniciamos esse artigo, se o direito é criado pelo texto normativo. Partindo de uma compreensão estrutural, o dispositivo alusivo à razoável duração do processo é, assim como o próprio sistema de garantias constitucionais, precipitação lingüística e normativa da possibilidade de se assegurar que a duração do processo não se torne desmesurada, pois pior do que as dificuldades já impostas aos litigantes é a indefinição de quando (e se) terão uma resposta ou conclusão de seus dramas pessoais.
Seguindo a posição de Denise Oliveira, não se pode entender que o legislador constituinte promoveu mudança inócua ao texto constitucional, pois o sentido atribuído ao setuagésimo inciso do art. 5º afigura-se relevante critério de legitimação do papel do Judiciário, que deve densificar sua compreensão mesma sobre os direitos fundamentais e o próprio sentido do que vem a ser proteção judicial efetiva [58].
Com isso, é de se esperar que novos contributos críticos e posicionamentos por parte da magistratura nacional alavanquem, juntamente com outros mecanismos, a busca pela celeridade processual e pelo reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais.