Resumo
A Amazônia é reconhecida por sua biodiversidade e pela riqueza de seu patrimônio cultural imaterial, que inclui conhecimentos tradicionais, práticas sociais, festas, rituais e expressões artísticas transmitidos entre gerações. Este artigo analisa os desafios e as oportunidades para a proteção e preservação do patrimônio cultural imaterial na região amazônica, com ênfase em sua relação com a sustentabilidade. A pesquisa explora como a proteção e a preservação do patrimônio cultural imaterial podem promover o desenvolvimento sustentável ao integrar dimensões sociais, culturais e ambientais. Também são discutidos os impactos de fatores como o desmatamento, a globalização e as transformações socioeconômicas na continuidade das práticas culturais. O estudo destaca a necessidade de políticas públicas eficazes, educação patrimonial, tecnologias digitais e modelos de turismo sustentável como instrumentos essenciais para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, a fim de garantir a preservação das culturas locais e a manutenção dos recursos naturais na Amazônia.
Palavras-chave: patrimônio cultural imaterial; Amazônia; sustentabilidade; tradições; meio ambiente.
Abstract
The Amazon is renowned for its biodiversity and the richness of its intangible cultural heritage, which includes traditional knowledge, social practices, festivals, rituals, and artistic expressions passed down through generations. This article analyzes the challenges and opportunities for the protection and preservation of intangible cultural heritage in the Amazon region, with an emphasis on its relationship with sustainability. The research explores how the protection and preservation of intangible cultural heritage can promote sustainable development by integrating social, cultural, and environmental dimensions. It also discusses the impacts of factors such as deforestation, globalization, and socioeconomic transformations on the continuity of cultural practices. The study highlights the need for effective public policies, heritage education, digital technologies, and sustainable tourism models as essential tools for safeguarding intangible cultural heritage, ensuring the preservation of local cultures and the maintenance of natural resources in the Amazon.
Keywords: intangible cultural heritage; Amazon; sustainability; traditions; environment.
Introdução
A proteção e preservação do patrimônio cultural imaterial exercem uma função crítica na realização da sustentabilidade, especialmente em áreas de alta diversidade cultural e ambiental como a Amazônia. Esse patrimônio cultural é vital para a promoção da coesão social e a manutenção de identidades e práticas sustentáveis desenvolvidas por comunidades tradicionais ao longo dos séculos.
A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO (2003) define esta espécie de patrimônio como:
[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas — junto com os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais associados — que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável.
O conceito de cultura, fundamental para a compreensão do patrimônio imaterial, é descrito por Edward Tylor (apud LARAIA, 2001) como “todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade".
Para Freud [1930] / (2010), em “O mal-estar na civilização”:
[...] Vemos como culturais todas as atividades e valores que são úteis para o ser humano, colocando a terra a seu serviço, protegendo-o da violência das forças naturais etc. Sobre esse aspecto do que é cultural não parece haver dúvida. [...]
[...]
Portanto, reconhecemos o alto nível cultural de um país quando vemos que nele se cultiva e adequadamente se providencia tudo o que serve para a exploração da Terra pelo homem e para a proteção dele frente às forças da natureza; em suma, tudo o que lhe é proveitoso.
A definição de Freud enfatiza a relação simbiótica entre cultura e meio ambiente, destacando o papel da cultura como mediadora das interações humanas e da sustentabilidade.
Na Amazônia, o patrimônio imaterial reflete uma relação íntima entre as comunidades tradicionais e a biodiversidade. Conforme destacou Ailton Krenak [1987] / (BRASIL, 1988), em célebre discurso realizado, no Plenário do Congresso Nacional:
O povo indígena tem um jeito de pensar, tem um jeito de viver, tem condições fundamentais para a sua existência e para a manifestação da sua tradição, da sua vida, da sua cultura, que não coloca em risco e nunca colocaram a existência, sequer, dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas, quanto mais de outros seres humanos. Creio que nenhum dos senhores poderia jamais apontar atos, atitudes da gente indígena do Brasil que colocaram em risco, seja a vida, seja o patrimônio de qualquer pessoa, de qualquer grupo humano neste País. Hoje somos alvo de uma agressão que pretende atingir, na essência, a nossa fé, a nossa confiança. Ainda existe dignidade, ainda é possível construir uma sociedade que saiba respeitar os mais fracos, que saiba respeitar aqueles que não têm dinheiro, mas mesmo assim, mantêm uma campanha incessante de difamação. Um povo que sempre viveu à revelia de todas as riquezas, um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser de forma nenhuma contra os interesses do Brasil ou que coloca em risco qualquer desenvolvimento. [...]
Tal relação é amplamente reconhecida. Segundo Thomas Lovejoy (WBG, 2019), os povos indígenas desempenham um papel crucial na proteção da biodiversidade e no combate às mudanças climáticas. Eles possuem vastos conhecimentos sobre a fauna e flora locais e têm um estilo de vida sustentável, atuando como guardiães da floresta. Atualmente, cuidam de cerca de um quarto da Amazônia, e a perda de habitats é mais lenta nos territórios que administram. Ao evitar o desmatamento, contribuem significativamente para a conservação da biodiversidade e para a luta global contra as mudanças climáticas.
Além disso, Mitja e Marchand (2019) ressaltam que as populações rurais da Amazônia incorporam essa diversidade em seu cotidiano, utilizando-a como fonte de alimento, remédio e renda. As plantas e os animais também servem de suporte para a transmissão de técnicas, saberes, lendas e mitos de uma geração para outra. O uso e o acesso à biodiversidade são elementos centrais na vida dessas comunidades, reforçando a interdependência entre as populações tradicionais e o meio ambiente.
No mesmo sentido, Diegues (2000):
[...] a biodiversidade pertence tanto ao domínio do natural e do cultural, mas é a cultura como conhecimento que permite que as populações tradicionais possam entendê-la, representá-la mentalmente, manuseá-la e, freqüentemente, enriquecê-la, como se viu anteriormente.
Nesse sentido, os seres vivos, em sua diversidade, participam de alguma forma do espaço, se não domesticado, pelo menos identificado ou conhecido. Eles pertencem a um lugar, um território como locus em que se produzem as relações sociais e simbólicas.
Entretanto, a preservação desse patrimônio enfrenta desafios crescentes. Giddens (2009) observa que:
A globalização não se restringe aos grandes sistemas globais. O seu impacto reflecte-se nas nossas vidas pessoais, na maneira como pensamos acerca de nós próprios e nas nossas relações com os outros. As forças globalizantes penetram nos nossos contextos locais e nas nossas vidas pessoais, seja através de fontes impessoais como os meios de comunicação e a Internet, seja através de contactos pessoais com pessoas de outros países e culturas.
Esse cenário é agravado por pressões externas, como a urbanização acelerada, a exploração predatória dos recursos naturais e as mudanças climáticas, que colocam em risco não apenas os sistemas culturais, mas também os ecossistemas dos quais eles dependem.
Diante disso, este artigo busca explorar a importância de proteger e valorizar o patrimônio cultural imaterial na região amazônica, destacando seu papel como pilar fundamental para o desenvolvimento sustentável, de modo a oferecer caminhos inovadores para enfrentar os desafios contemporâneos, promovendo um equilíbrio entre as dimensões cultural, social e ambiental da sustentabilidade.
1. O surgimento da noção de patrimônio cultural imaterial e sua proteção no contexto internacional e brasileiro
O conceito de patrimônio cultural imaterial emergiu no cenário internacional como uma ampliação da compreensão de patrimônio cultural, tradicionalmente focado em bens materiais, tendo sido formalmente introduzido com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO, de 2003, devidamente ratificada pelo Estado brasileiro.
Os dispositivos do tratado internacional em comento refletem a percepção de que o patrimônio não se limita a aspectos materiais, mas inclui elementos intangíveis fundamentais para a identidade cultural, em especial tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; expressões artísticas; práticas sociais, rituais e atos festivos; conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e técnicas artesanais tradicionais.
Segundo o texto convencional (UNESCO, 2003), a salvaguarda consiste em:
[...] medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não-formal – e revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos.
O Art. 15 da Convenção ainda enfatiza o dever dos Estados de assegurar participação ativa e ampla das comunidades, grupos e indivíduos “que criam, mantém e transmitem esse patrimônio e associá-los ativamente à gestão do mesmo.”
No Brasil, a Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seus Arts. 215 e 216, garante o pleno exercício dos direitos culturais e inclui explicitamente as manifestações culturais como parte do patrimônio cultural brasileiro, atribuindo ao Poder Público, com a colaboração da comunidade, sua promoção e proteção:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
[...]
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
[...]
Pesquisadores como Antonio Augusto Arantes (2010) ressaltam que a proteção jurídico-constitucional do patrimônio imaterial é essencial para a preservação de todas as espécies de manifestação cultural. Segundo o autor:
A Constituição Federal em vigor no Brasil, promulgada em 1988, portanto há 20 anos, tem sido um marco de importância fundamental para a consolidação da democracia no país. No que se refere ao patrimônio e aos direitos culturais, uma das principais reivindicações encaminhadas pelos debates e audiências públicas ocorridos durante o processo de reforma constitucional decorria da visão de que a prática da preservação deveria ser alargada. Na retomada do processo democrático, era de consenso que ela deveria contemplar a pluralidade étnica e social que se manifestava nos movimentos sociais emergentes. Da mesma forma, prevalecia a concepção de que deveriam ser valorizados os aspectos da produção cultural em que as camadas populares tinham e têm uma participação inquestionavelmente visível e efetiva, como é o caso das festas e celebrações, danças, músicas, conhecimentos tradicionais, formação de lugares sagrados, entre outros.
Em âmbito infraconstitucional, o Decreto nº 3.551/2000 (BRASIL, 2000), que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências, estabelece diretrizes para a identificação, documentação e salvaguarda desses bens.
O Art. 1º do Decreto mencionado indica que o registro se fará em livros, a partir de critérios objetivos:
Art. 1o Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro.
§ 1o Esse registro se fará em um dos seguintes livros:
I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;
II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;
III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;
IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas.
§ 2o A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.
§ 3o Outros livros de registro poderão ser abertos para a inscrição de bens culturais de natureza imaterial que constituam patrimônio cultural brasileiro e não se enquadrem nos livros definidos no parágrafo primeiro deste artigo.
Sobre sua importância, ensina Lourenço (2015):
O registro corresponde a uma forma de reconhecimento do bem cultural, que se diferencia e se destaca das demais práticas sociais. São de grande importância para o fortalecimento da autoestima dos grupos detentores de conhecimentos tradicionais.
Dessa forma, consoante dados obtidos junto à plataforma Visão3, disponibilizados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura (Minc), 49 (quarenta e nove) bens imateriais foram registrados em todo o território nacional, dos quais 11 (onze) estão localizados ou são característicos da região amazônica, com abrangência estadual ou regional, em conformidade com a tabela abaixo:
Nome do bem |
Estados(s) |
Livro e data de registro |
|
---|---|---|---|
1. |
Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajápi |
Amapá (AP) |
Livro das Formas de Expressão (dezembro 20, 2002) |
2. |
Círio de Nossa Senhora de Nazaré |
Pará (PA) |
Livro das Celebrações (outubro 5, 2004) |
3. |
Cachoeira de Iauaretê – Lugar Sagrado dos povos indígenas dos Rios Uaupés e Papuri |
Amazonas (AM) |
Livro dos Lugares (agosto 10, 2006) |
4. |
Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro |
Amazonas (AM) |
Livro dos Saberes (novembro 5, 2010) |
5. |
Ritxòkò: Expressão Artística e Cosmológica do Povo Karajá |
Goiás (GO); Mato Grosso (MT); Pará (PA); e Tocantins (TO) |
Livro das Formas de Expressão (janeiro 25, 2012) |
6. |
Saberes e Práticas Associados ao modo de fazer Bonecas Karajá |
Goiás (GO); Mato Grosso (MT); Pará (PA); e Tocantins (TO) |
Livro dos Saberes (janeiro 25, 2012) |
7. |
Festividades do Glorioso São Sebastião na região do Marajó |
Pará (PA) |
Livro das Celebrações (novembro 27, 2013) |
8. |
Carimbó |
Pará (PA) |
Livro das Formas de Expressão (setembro 11, 2014) |
9. |
Modos de Fazer Cuias do Baixo Amazonas |
Pará (PA) |
Livro dos Saberes (junho 11, 2015) |
10. |
Marabaixo |
Amapá (AP) |
Livro das Formas de Expressão (novembro 8, 2018) |
11. |
Complexo Cultural do Boi Bumbá do Médio Amazonas e Parintins |
Amazonas (AM) |
Livro das Celebrações (novembro 8, 2018) |
Fonte: Elaborada pelos autores, com dados extraídos do sítio eletrônico do Ministério da Cultura (2024)
Além dos bens listados acima, por meio das Leis nº 14.960, 14.961 e 14.997, todas de 2024, o Estado brasileiro reconheceu, respectivamente, o Festival Folclórico de Parintins e os Bois Garantido e Caprichoso (Amazonas); o Arraial do Pavulagem (Pará); e a Festa do Sairé (Pará) como manifestações da cultura nacional.
Não obstante, outros bens imateriais oriundos da região amazônica estão em processo de instrução para registro junto ao Iphan. São eles:
Nome do bem |
Estados(s) |
Processo |
|
---|---|---|---|
1. |
Pesca com Arpão do Pirarucu |
Amapá (AP) |
01450.014905/2010-10 |
2. |
Ofício de Tacacazeira na Região Norte |
Acre (AC), Amapá (AP), Amazonas (AM), Pará (PA), Rondônia (RO) e Roraima (RR) |
01450.014958/2010-22 |
3. |
Marujada de São Benedito |
Pará (PA) |
01492.000120/2011-46 |
4. |
Areruya |
Roraima (RR) |
01450.000719/2013-38 |
5. |
Kenê Kui, Grafismos do Povo Indígena Huni Kui (Kaxinawá) |
Acre (AC) |
01450.012643/2013-93 |
Fonte: Elaborada pelos autores, com dados extraídos do sítio eletrônico do Iphan (2024)
Sendo assim, embora se trate de trabalho árduo e contínuo, a integração da noção de patrimônio cultural imaterial em normas internacionais e nacionais representa um avanço significativo na promoção da diversidade cultural e na valorização das tradições. No Brasil, a ampla previsão constitucional, complementada por leis e decretos, reflete o compromisso do Estado e da sociedade com a salvaguarda desses bens, assegurando sua continuidade para as futuras gerações.