2. Sustentabilidade e patrimônio cultural imaterial na Amazônia: conexões entre os aspectos ambiental, social e econômico
Hodiernamente, considera-se que o conceito de sustentabilidade integra as dimensões social, econômica e ambiental, reconhecendo que o equilíbrio entre essas esferas é essencial para a preservação da vida e o desenvolvimento das sociedades.
Conforme definido pelo “Relatório Brundtland”, também intitulado “Nosso futuro comum”, elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento [1987] / (1991), o desenvolvimento sustentável “é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades.” Esse conceito ampliou-se para abranger três dimensões interdependentes: ambiental, mediante a conservação dos recursos naturais, biodiversidade e mitigação dos impactos das atividades humanas no ecossistema; social, com o objetivo de promover equidade, inclusão e fortalecimento das comunidades; e econômica, visando a estimular práticas que gerem crescimento sem prejudicar o meio ambiente.
Segundo Édis Milaré (2016):
Somos responsáveis pela propagação da espécie, não somente do ponto de vista biológico, mas, ainda, de vários outros pontos de vista (histórico, cultural, econômico etc.). Incumbe, pois, à sociedade construir, mais do que o seu mundo atual, o mundo do amanhã. Por isso, quando se estabelece o princípio de que “todos têm o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado”, esse equilíbrio ecológico traz no bojo as condições indispensáveis ao planeta Terra e as condições favoráveis para as gerações futuras. Mais uma vez a gramática nos socorre: tomemos a expressão usufruir corretamente dos recursos ambientais: o verbo usufruir traduz um direito, o advérbio corretamente conota um dever: direito e dever são fatores recíprocos e complementares.
A manutenção do ambiente saudável é fator integrante do processo de desenvolvimento sustentável. Mas esse processo, que tem na sociedade um grande contingente de atores e de agentes ambientais, depende da própria comunidade para desencadear-se e prosseguir.
No contexto amazônico, essa relação se torna ainda mais evidente, dado que a floresta abriga não apenas uma biodiversidade inigualável, mas também uma rica diversidade cultural, incluindo práticas e saberes tradicionais que compõem o patrimônio cultural imaterial das populações locais.
A sustentabilidade social e ambiental na Amazônia está profundamente vinculada à preservação do patrimônio cultural imaterial. As práticas culturais e rituais das populações amazônicas, como danças, celebrações e mitologias, reforçam a identidade coletiva e promovem a coesão social. Essas tradições, muitas vezes ligadas à relação simbiótica com a floresta, são fundamentais para a resiliência comunitária diante de ameaças como o desmatamento, a mineração ilegal e a exploração comercial.
Sobre o tema, é imperativo transcrever excertos de julgados do Supremo Tribunal Federal, que, por diversas vezes, já reconheceu essa relação intrínseca entre a cultura dos povos tradicionais e a preservação do meio ambiente, notadamente em casos relativos a conflitos fundiários:
No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica.
[Pet 3.388, rel. min. Ayres Britto, j. 19-3-2009, P, DJE de 1º-7-2010.]
Revela-se de importância ímpar a promoção de regularização fundiária nas terras ocupadas de domínio da União na Amazônia Legal, de modo a assegurar a inclusão social das comunidades que ali vivem, por meio da concessão de títulos de propriedade ou concessão de direito real de uso às áreas habitadas, redução da pobreza, acesso aos programas sociais de incentivo à produção sustentável, bem como melhorando as condições de fiscalização ambiental e responsabilização pelas lesões causadas à Floresta Amazônica. O artigo 4º, §2º da Lei nº 11.952/2009 vai de encontro à proteção adequada das terras dos remanescentes de comunidades quilombolas e das demais comunidades tradicionais amazônicas, ao permitir interpretação que possibilite a regularização dessas áreas em desfavor do modo de apropriação de território por esses grupos, sendo necessária interpretação conforme aos artigos 216, I da Constituição e 68 do ADCT, para assegurar a relação específica entre comunidade, identidade e terra que caracteriza os povos tradicionais. Exige interpretação conforme à Constituição a previsão do artigo 13 da Lei nº 11.952/2009, ao dispensar a vistoria prévia nos imóveis rurais de até quatro módulos fiscais, a fim de que essa medida de desburocratização do procedimento seja somada à utilização de todos os meios eficazes de fiscalização do meio ambiente, como forma de tutela à biodiversidade e inclusão social dos pequenos proprietários que exercem cultura efetiva na área.
[ADI 4.269, rel. min. Edson Fachin, j. 18-10-2017, P, DJE de 1º-2-2019.]
Impugnado o art. 3º, § 2º, da Lei nº 12.910/2013 do Estado da Bahia, que impõe prazo à regularização fundiária das terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades de fundo e fecho de pasto mediante a concessão de uso (...). Dada a íntima relação entre a posse das terras coletivas e a reprodução física e cultural das comunidades tradicionais, os direitos territoriais resultam abrangidos pelo direito fundamental à cultura (art. 215, CF), em particular no que diz com a proteção dos grupos participantes do processo civilizatório nacional (§ 1º). Suas diferentes formas de expressão e modos de criar, fazer e viver integram o patrimônio cultural brasileiro (art. 216, I e II, CF) e devem ser objeto de tutela legislativa, administrativa e jurisdicional efetiva e adequada. (...) Negar a garantia às terras tradicionalmente ocupadas é negar a própria identidade, o reconhecimento da comunidade tradicional na sua singularidade cultural. É condenar o grupo culturalmente diferenciado, centrado na particular relação com o local que estrutura as suas formas de criar, fazer e viver, ao desaparecimento. É impor-lhe a assimilação à sociedade envolvente e violar a dignidade da pessoa humana em sua expressão comunitária (art. 1º, III, CF), com a anulação cultural e até mesmo física da comunidade. Negar a garantia às terras tradicionalmente ocupadas é negar a própria identidade, o reconhecimento da comunidade tradicional na sua singularidade cultural. É condenar o grupo culturalmente diferenciado, centrado na particular relação com o local que estrutura as suas formas de criar, fazer e viver, ao desaparecimento. É impor-lhe a assimilação à sociedade envolvente e violar a dignidade da pessoa humana em sua expressão comunitária (art. 1º, III, CF), com a anulação cultural e até mesmo física da comunidade. (...) Violação dos arts. 1º, III, 5º, XXII, 215, § 1º, 216, I e § 1º, da Constituição. O direito fundamental à propriedade (art. 5º, XXII), compreendido à luz do direito fundamental à cultura e do direito humano à propriedade e à posse coletivas, traduz moldura normativa que abriga a proteção das formas tradicionais de pertencimento.
[ADI 5.783, rel. min. Rosa Weber, j. 6-9-2023, P, DJE de 14-11-2023.]
A relação entre sustentabilidade social e o patrimônio cultural imaterial reside no reconhecimento de que práticas culturais são fundamentais para a resiliência comunitária. A proteção e valorização de práticas culturais imateriais fortalecem o capital social, promovem o empoderamento das comunidades locais e asseguram a transmissão de conhecimentos ancestrais, essenciais para enfrentar desafios contemporâneos como mudanças climáticas e crises econômicas.
Um exemplo significativo é o papel das festas populares e rituais no fortalecimento dos vínculos sociais. Em muitas comunidades, essas celebrações não apenas expressam valores tradicionais, mas também criam oportunidades de geração de renda e inclusão social, contribuindo para a redução das desigualdades.
Como exemplo, é possível citar o impacto que as festividades do Círio de Nazaré, que ocorrem em Belém do Pará, têm na economia local. Em 2024, esperava-se que o evento movimentasse cerca de R$ 189.000.000,00 (cento e oitenta e nove milhões de reais), em apenas um mês.2
Além disso, o patrimônio cultural imaterial também desempenha um papel crítico no reconhecimento da diversidade cultural como elemento-chave para sociedades sustentáveis. A Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável (ONU, 2015), particularmente no Objetivo 11 (tornar as cidades e assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis), reconhece a necessidade de “11.4 Fortalecer esforços para proteger e salvaguardar o patrimônio cultural e natural do mundo”.
Contudo, para o cumprimento de tal objetivo, torna-se necessária a busca por mecanismos capazes de enfrentar os desafios já existentes,
3. Desafios e perspectivas
Apesar de sua inestimável relevância, o patrimônio cultural imaterial amazônico enfrenta desafios consideráveis para sua preservação, devido às transformações econômicas, sociais e ambientais que a região enfrenta.
Dentre tais desafios, talvez o maior deles seja o desmatamento. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) (BRASIL, 2024), a região perdeu mais de 13.000 km2 (treze mil quilômetros quadrados) de floresta apenas em 2021. Essa perda impacta diretamente as comunidades que dependem da floresta para sustentar suas práticas culturais, como o uso de materiais naturais em rituais, artesanato e medicinas tradicionais.
Estudos indicam que, desde 1970, aproximadamente 20% da floresta amazônica original foi desmatada, comprometendo a biodiversidade e afetando as comunidades locais.3
O desmatamento na Amazônia tem consequências significativas, incluindo a perda de biodiversidade, o aquecimento global e prejuízos econômicos. Além disso, a destruição contínua de ecossistemas naturais cria um ambiente propício para o surgimento de doenças zoonóticas, que podem evoluir para epidemias e pandemias, resultando em desequilíbrio ambiental e perdas generalizadas para a sociedade.4
Outrossim, a exploração comercial e o turismo predatório na Amazônia têm sido temas de crescente preocupação, dados os impactos negativos sobre o meio ambiente e as comunidades locais.
O modelo de desenvolvimento adotado na região muitas vezes prioriza grandes projetos de infraestrutura e atividades econômicas que desconsideram a natureza e a cultura dos povos amazônicos. Exemplos incluem a construção de ferrovias, a expansão do agronegócio e o desenvolvimento de atividades turísticas em áreas de proteção ambiental, sem as devidas cautelas, em detrimento do meio ambiente e das comunidades tradicionais.5
As mudanças climáticas na Amazônia também são motivo de crescente preocupação, especialmente devido ao aumento da frequência de eventos climáticos extremos, como enchentes e secas, que alteram ecossistemas e prejudicam práticas culturais ligadas a ciclos naturais.
Projeções indicam que, até 2050, a região amazônica poderá enfrentar um aumento significativo na temperatura média. Estudos sugerem que, se o limite de 2 °C for atingido, limiares críticos para a saúde humana e a agricultura serão ultrapassados com mais frequência, afetando diretamente a disponibilidade de recursos como a água e alterando padrões sazonais.6
Além disso, o aumento da temperatura média no Brasil, que já supera a média global, pode levar a uma perda significativa da cobertura florestal na Amazônia, estimada em cerca de 50% até 2050, devido à combinação de desmatamento, condições mais secas e aumento dos incêndios.7
Essas alterações climáticas podem acarretar grave prejuízo às tradições culturais das comunidades amazônicas, que dependem de ciclos naturais para a realização de suas práticas e rituais. A mudança nos padrões sazonais e a escassez de recursos naturais podem inviabilizar a continuidade dessas tradições, comprometendo a identidade cultural e o modo de vida dessas populações.
Igualmente, de acordo com Stuart Hall (1997), a globalização tem levado ao enfraquecimento de práticas culturais locais, especialmente entre os jovens. A exposição massiva a valores culturais externos através da mídia e das tecnologias digitais pode resultar no abandono de tradições em favor de práticas mais modernas. Além disso, a ausência de infraestrutura educacional que valorize a cultura local contribui para a perda acelerada do patrimônio cultural imaterial.
Apesar dos desafios, iniciativas podem ser implementadas para proteger e preservar o patrimônio cultural imaterial na Amazônia, a exemplo das seguintes:
-
Políticas públicas e financiamento, mediante a criação de inventários do patrimônio cultural imaterial com participação comunitária; garantia de financiamentos consistentes para projetos de educação patrimonial e valorização cultural; implementação de mecanismos normativos que protejam o uso de conhecimentos tradicionais de exploração indevida por corporações; e fortalecimento da fiscalização de ameaças ao patrimônio cultural imaterial.
-
Educação e sensibilização da sociedade, com a introdução de conteúdos sobre o patrimônio cultural imaterial em currículos escolares; realização de campanhas que enfatizem a importância do patrimônio cultural imaterial para a identidade cultural; e incentivo de parcerias entre universidades e comunidades locais para registrar, estudar e desenvolver projetos de extensão, visando ao fortalecimento de práticas culturais.
-
Turismo sustentável, a partir da promoção de modelos que garantam remuneração justa e respeitem as práticas culturais; criação de certificações para assegurar a autenticidade e sustentabilidade das experiências culturais; e o estabelecimento de zonas de turismo controlado que preservem áreas sagradas e sensíveis.
-
Adoção de novas tecnologias, para o desenvolvimento de plataformas digitais com o objetivo de documentar e divulgar o patrimônio cultural imaterial; incentivo do uso de mídias audiovisuais para contar as histórias das comunidades; e criação e difusão de bancos de dados acessíveis para preservar registros históricos e culturais.
-
Integração com a sustentabilidade ambiental, de modo a reconhecer os conhecimentos tradicionais como aliados em iniciativas de conservação ambiental; implementar programas de manejo ambiental que considerem as perspectivas culturais locais; e desenvolver parcerias entre comunidades e cientistas para criar soluções sustentáveis baseadas em saberes locais.
Tais medidas, dentre outras, poderiam contribuir fortemente com a proteção e a preservação do patrimônio cultural imaterial na Amazônia e, consequentemente, com o desenvolvimento sustentável na região.