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A sogra ímproba e o cinismo do governador

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Já é público e notório o episódio em que se envolveu o Governador do Ceará, Cid Gomes, que levou sua esposa e sua sogra para passear na Europa em avião fretado para missão oficial do Governo cearense. Queremos, então, aproveitar o episódio para refletir sobre o cinismo de nossos representantes políticos, que se valem do desconhecimento do povo para arrogantemente posar de bons moços e pobres vítimas.

Antes do mais, lembremos resumidamente os fatos, tal como narrados pela imprensa, bem como da "explicação" (confissão?) dada pelo Governador Cid Gomes. Versão da imprensa: Cid Gomes, em viagem oficial à Europa, fretou, com recursos públicos, um avião que serviu de transporte à comitiva do Estado do Ceará, levando junto, de carona, sua senhora e sua sogra (que não integravam – óbvio – a comitiva oficial). Explicação de Cid Gomes: o preço pago pelo aluguel do jatinho teve por base não o número de passageiros, mas a distância a ser percorrida, de modo que a inclusão de sua senhora e de sua sogra não gerou nenhum ônus aos Cofres Públicos.

Vamos aceitar, então, como verdade a versão que nos dá Governador do Ceará. Vamos aceitar, assim, que o preço pago pelo avião seria o mesmo para qualquer número de passageiros e que, sendo assim, sua esposa e sogra não geraram despesas à Fazenda Pública com o vôo internacional. Dessa explicação de Cid Gomes se depreende, pois, a seguinte opinião: sendo o preço do transporte aéreo fixo, na visão do Governador não haveria qualquer problema em levar seus ilustres convidados particulares nesse vôo – afinal, o preço seria pago de todo modo!

Exatamente aí está, portanto, o cinismo, o deboche, a vilania do Governador Cearense, que manipula o discurso, jogando com a desinformação da opinião pública. Cid Gomes tenta, com sua defesa, fazer-nos crer que, se o Estado não gastou nada diretamente com sua esposa e sogra, nenhum ato ilegal poderia lhe ser atribuído. Entretanto, a verdade é que, mesmo se aceitarmos, sem novas investigações, apenas os fatos apresentados pelo próprio Cid Gomes, ainda assim estaremos diante de caso clássico de Improbidade Administrativa, na forma da Lei 8.429/92

Analisemos, portanto, o caso à luz do Ordenamento Jurídico. De início, vamos lembrar que a Carta Republicana traz, no caput de seu art. 37, a legalidade, a publicidade, a eficiência, a moralidade e a IMPESSOALIDADE como princípios da Administração Pública. Além disso, como sabemos, a Lei 8.429/92 trouxe três grupos de atos de Improbidade Administrativa: os atos que importam enriquecimento ilícito (art. 9º), os atos que causam prejuízo ao erário (art. 10) e os atos que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). Vamos lembrar, pois, o seguinte texto:

Art. 11 Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições (...)

Ora, "impessoalidade" (princípio constitucional) é atributo de quem age sem ter por motivo o benefício específico desse ou daquele indivíduo. Já "imparcialidade" (princípio da Lei 8.473/92), é agir de modo equânime, sem beneficiar ninguém exclusivamente em razão de suas condições pessoais. Ao contrário do que determinado pelo Ordenamento Jurídico, portanto, no caso da sogra de Cid Gomes, o que houve foi nítida "pessoalidade" e "parcialidade", ferindo às claras os citados princípios que regem a Administração.

A conclusão indiscutível desse episódio é que a sogra e a esposa do Governador do Ceará (além das demais esposas de outros integrantes da comitiva) tiveram um claro e óbvio benefício econômico (vôo gratuito para a Europa), às custas do erário, apenas em razão de sua condição PESSOAL de possuírem laços matrimoniais com o Chefe do Executivo cearense.

Para tal conclusão, basta fazer o óbvio raciocínio inverso: todos os "comuns mortais", que não tinham laços familiares com o Governador Cid Gomes, se quisessem viajar para a Europa, teriam que desembolsar de suas próprias contas bancárias o valor de suas passagens, além de se submeter à fila de embarque e desembarque, e de terem que viajar sem os confortos de um jatinho exclusivo.

Portanto, mesmo que não tenha sido desembolsado dinheiro público com a senhora e a sogra de Cid Gomes (conforme alega), é evidente que elas foram indevidamente beneficiadas ao receberem do Estado uma carona para a Europa – benefício que não esteve disposto indistintamente à toda população, mas apenas às duas senhoras, pela exclusiva razão de terem laços pessoais com o senhor Governador. Devem, assim, ser punidas por terem aceitado esse benefício, vez que a Lei 8.429/92 equipara ao agente público o particular que se beneficia do ato de improbidade (art. 3º).

Assim, com sua "explicação", o máximo que Cid Gomes conseguirá (se tanto...) é afastar a incidência dos artigos 9º e 10 da Lei 8.429/92. Mas inescapável será a subsunção do ato praticado ao art. 11 desse mesmo diploma, fazendo incidir, para ele, sua senhora e sua sogra, as conseqüências impostas pelo art. 12, III, dessa lei:

Art. 12 Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações:

III – na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebido pelo agente (...).

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Por fim, o episódio nos serve para refletirmos (mais uma vez) sobre o comportamento de nossas elites. É impossível imaginar honestamente que Cid Gomes, sua esposa e sua sogra não pudessem arcar com o custo de passagens aéreas para a Europa. Mas, diante dessa verdade, resta a pergunta: por que esses distintos personagens tiveram a infeliz (ridícula, até) idéia de viajar às custas do erário, exatamente num momento de escândalos com cartões corporativos e outras malversações do patrimônio público?

A resposta que parece ser mais razoável é que, no Brasil, nossos representantes políticos acreditam que a Administração existe para servir-lhes; acreditam que o povo existe para sustentar seus privilégios – todos decorrentes de estarem no controle da Administração. Nesse contexto sócio-político, esses senhores, ao assumirem cargos públicos, principalmente os cargos políticos, sentem-se e agem como verdadeiros senhores feudais, enxergando a coisa pública como um patrimônio sobre o qual detém o usufruto.

O mesmo se pode dizer da esposa e da sogra, que, embora sem haverem sido eleitas pelo povo, foram "eleitas" pelo próprio Governador. Essas senhoras devem se sentir, por terem "laços" com o Poder, algo distintas dos "comuns mortais". Devem achar, sem dúvida, que podem ir daqui à Europa num vôo oficial, mesmo sem integrarem a comitiva oficial, haja vista que, a final de contas, têm laços familiares com o próprio "chefe" (ou será o "dono"?) do Executivo.

Mas a sociedade brasileira (acreditem!) avançou nesses últimos 20 anos. Se, por um lado, nossas personalidades políticas ainda pensam ser detentores de títulos de nobreza, valendo-se da soberania Estatal em benefício próprio, por outro lado a República de 1988 criou instituições que já concluíram seu processo de amadurecimento e solidificação. É por meio delas, então, que a sociedade pode e deve buscar a punição exemplar para todo e qualquer episódio de uso particular de recursos públicos.

Assim, o "caso da sogra de Cid Gomes" está a merecer tratamento rigoroso por parte do Ministério Público, que deve enquadrar todos os envolvidos nos rigores da Lei 8.429/92. Afinal, cumpre sempre lembrarmos da lição de Hiering, para quem a Luta pelo Direito constitui não apenas um dever para conosco, mas para com toda a sociedade, pois estaremos, nesse ato de luta, fazendo frente ao arbítrio e ao desmando.

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Sobre o autor
Marcus Vinícius Silva Martins

Mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília Professor de Direito Administrativo no Centro Universitário Unieuro. Membro do Núcleo Docente Estruturante (NDE) do Centro Universitário Unieuro. Advogado em Brasília - DF. Membro da Comissão do Terceiro Setor da OAB/DF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Marcus Vinícius Silva. A sogra ímproba e o cinismo do governador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1771, 7 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11247. Acesso em: 4 mai. 2024.

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