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Adicional de insalubridade e vinculação ao salário mínimo

07/05/2008 às 00:00
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No julgamento do Recurso Extraordinário nº 565.714, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, em 30.4.2008, o Supremo Tribunal Federal fixou o entendimento de que o salário-mínimo não pode servir de base para o cálculo de nenhuma parcela remuneratória.

Contudo, ao negar provimento ao recurso dos servidores públicos pertencentes ao quadro da Polícia Militar do Estado de São Paulo, o STF acabou por preservar os efeitos da Lei Complementar Estadual nº 432/85, mantendo a vinculação ao salário mínimo, enquanto não for editada lei específica que preveja nova forma de cálculo do adicional.

O julgamento mostra-se paradigmático sob vários aspectos.

Em primeiro lugar, por ser o primeiro recurso extraordinário com repercussão geral julgado pelo Tribunal. A orientação fixada pelo STF servirá de parâmetro para o julgamento de outros 580 (quinhentos e oitenta) processos já remetidos para o STF e em mais de 2.400 (dois mil e quatrocentos) processos em andamento no Tribunal Superior do Trabalho – TST [01]. O julgamento desses processos se dará a partir das premissas lançadas no julgamento do RE, em conformidade com a 4ª súmula vinculante aprovada, que possui o seguinte enunciado:

"Salvo os casos previstos na Constituição Federal, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial." (destaques atuais)

O verbete da súmula aprovada assenta a impossibilidade da utilização do salário mínimo como indexador de base de cálculo de vantagem remuneratória, em razão de sua manifesta inconstitucionalidade. Contudo, a parte final da súmula deixa o juiz de mãos atadas, ao impedir, de igual modo, a substituição de base de calculo declarada inconstitucional por outra, instituindo uma hipótese de impossibilidade jurídica do pedido.

O segundo aspecto de grande relevo diz respeito ao tema enfrentado pelo STF: a impossibilidade de vinculação do salário mínimo. A parte final do inciso IV do artigo 7 da Constituição Federal prevê:

"salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim." (destaques atuais)

Em magistral voto, a Ministra Cármen Lúcia desvendou o tema ao fazer um pormenorizado inventário da jurisprudência do STF, para fixar o sentido da vedação constitucional: impedir que o mínimo nacional sirva de fator de indexação da economia.

Em outras palavras, ao vedar a vinculação do salário mínimo, o Poder Constituinte busca garantir a autonomia da política de fixação do piso remuneratório dos trabalhadores, evitando a ocorrência de reajustes ou aumentos em cascata.

Falaram pela improcedência do recurso a Procuradoria do Estado de São Paulo (Estado que editou a norma impugnada) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI), admitida como amicus curiae. Ninguém falou pelo provimento do recurso.

Em seu voto, a Ministra Cármen Lúcia trouxe um levantamento exaustivo da jurisprudência do Supremo acerca da impossibilidade de vinculação do salário mínimo, dentre os quais citamos: piso salarial de qualquer categoria profissional; indenização por dano moral; pensão especial; multa administrativa; quadro salarial; alíquotas de contribuição social e, por fim, o adicional de insalubridade.

Segundo a Ministra Cármen Lúcia, na jurisprudência da Corte, a vinculação do salário mínimo se mostrava possível apenas para fixação de parâmetro inicial de valores, sem nenhuma repercussão automática de atualização (gatilho). Nesse sentido citou-se: a possibilidade de adoção do mínimo como parâmetro de hiposuficiência econômica para efeitos de inscrição gratuita em concurso público e a fixação de valor inicial de indenização, sujeito a atualizações e correções distintas do parâmetro inicial. Em suas razões de decidir a Ministra não se olvidou de assentar a não recepção do artigo 192 da Consolidação das Leis Trabalhistas - CLT pela Constituição Federal, sendo inconstitucional, a vinculação ao mínimo, do adicional de insalubridade ali previsto.

Especificamente acerca da impossibilidade de utilização do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, a Ministra Cármen Lúcia ressaltou que havia julgados do STF em sentidos diametralmente opostos: precedentes que julgavam ser inconstitucional a utilização do salário mínimo como base de cálculo do adicional e outros tantos admitindo essa vinculação.

A Ministra Cármen Lúcia perfilhou o posicionamento daqueles que julgavam inconstitucional a vinculação do salário mínimo para efeitos de cálculo do adicional de insalubridade, declarando a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei Complementar nº 432/85 do Estado de São Paulo. Esse entendimento, em maior ou menor intensidade, foi seguido por todos os Ministros presentes.

Entretanto, ao dar a solução para o caso concreto, o Tribunal viu-se diante de um impasse na definição da técnica de decisão a ser utilizada.

É que os recorrentes pediam o provimento do recurso para declarar inconstitucional a norma estadual e, em substituição da base de cálculo legal (salário mínimo), definir-se judicialmente a remuneração como base de cálculo do adicional de insalubridade.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP, por sua vez, havia negado provimento à apelação dos recorrentes declarando constitucional a lei estadual.

O STF entendia que, ao declarar a inconstitucionalidade da base de calculo fixada pela lei paulista, não poderia acolher o pedido dos recorrentes e fixar nova base de cálculo (a remuneração), sob pena de atuar como legislador positivo, o que atrairia o óbice da súmula nº 339 do STF [02].

Dessa forma, em decisão inusitada, o STF negou provimento ao recurso extraordinário, mas sob fundamento diverso do TJSP: a impossibilidade de fixação jurisdicional de base de cálculo substitutiva para o adicional de insalubridade.

Com isso, em que pese a declaração de inconstitucionalidade da lei complementar estadual, os seus efeitos foram todos preservados, por intermédio de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que possui uma aparente contrariedade entre os seus fundamentos e sua parte decisória.

Em sede de controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado, a decisão que, em seus fundamentos, assenta a inconstitucionalidade da norma impugnada para, em sua parte dispositiva, preservar os efeitos dessa mesma norma, deixa de dar a tutela jurisdicional devida, na medida em que preserva o estado de inconstitucionalidade que o próprio ato jurisdicional decretou.

Acerca da impossibilidade de o Poder Judiciário atuar como legislador positivo vale ressaltar que a recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema é bastante heterodoxa.

Basta lembrar o leading case dos mandados de injunção do direito de greve dos servidores públicos (MIs nº 670, nº 708 e nº 712, Relator para os acórdãos [03] o Ministro Gilmar Mendes. No limite, esses precedentes promoveram a superação do dogma da impossibilidade do Poder Judiciário atuar como legislador positivo, no âmbito da jurisprudência da nossa Suprema Corte.

Diante de um quadro de persistente omissão legislativa, o Supremo adotou uma moderada sentença de perfil aditivo e fixou a norma no caso concreto. Norma que, ao contrário da lei específica exigida pela Constituição (inciso VII do artigo 37 da CF), seria a lei geral de greve (Lei nº 7.783/89).

Diante de um quadro de persistente inconstitucionalidade, não deveria o Tribunal adotar semelhante parâmetro decisório? Não deveria o STF afastar a inconstitucionalidade, promovendo a substituição judicial da base de calculo inconstitucional por outra, constitucionalmente adequada, ainda que provisoriamente?

A Lei Complementar nº 432 do Estado de São Paulo é de 1985 e vem sendo aplicada há 23 anos sem que nenhuma outra norma estadual constitucionalmente adequada tenha sido editada em seu lugar. O mesmo se diga acerca do artigo 192 da CLT [04], em face do qual o TST editou a súmula nº 228 [05], proclamando a constitucionalidade da norma celetista que atrela o cálculo do adicional de insalubridade ao salário mínimo.

Até que ponto o endosso da norma estadual, obliquamente viabilizado pelo STF, não contribuirá para a persistência do quadro de inconstitucionalidade, reforçando-o?

Em que medida a decisão do STF, ao negar provimento ao recurso dos servidores, contribui para que o Estado de São Paulo, exitoso em seu pleito, reveja sua norma inconstitucional?

As dúvidas se sobrepõem às certezas.

A bem da verdade, a técnica das sentenças aditivas, utilizada quando a omissão legislativa impõe ao juiz o dever de oferecer a única solução constitucionalmente aceita, não se confunde com as sentenças substitutivas ou manipuladoras.

Conforme observa García de Enterría, no contexto da interpretação conforme a Constituição e do princípio da conservação dos atos jurídicos, a sentença aditiva vai além da mera exegese declarativa, para aduzir um conteúdo integrativo com a finalidade de colmatar o texto legal validado [06].

Já as sentenças substitutivas introduzem componente normativo vital para a preservação da norma impugnada com a Constituição, a partir de declaração de inconstitucionalidade [07].

No presente caso, a técnica das sentenças substitutivas mostrar-se-ia apta a afastar a inconstitucionalidade da norma complementar estadual, na parte em que fixou o salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade. Ao mesmo tempo, oferecer-se-ia parâmetro constitucional substitutivo para o cálculo do adicional de insalubridade: a remuneração.

Com isso, ao invés de perpetuar o quadro de inconstitucionalidade mantido pelo Estado recorrido - que saiu vencedor na relação processual tida no RE nº 565.714 - estancar-se-ia a inconstitucionalidade sem malferir o direito ao adicional de insalubridade, extraindo-se da Norma Fundamental o seu imprescindível conteúdo concretizador.

Não se olvida que o STF, no julgamento da ADI nº 1.822-4/DF, Relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 10.12.1999, tenha rejeitado a técnica das sentenças substitutivas, conforme se infere do excerto infra-transcrito da ementa do referido acórdão:

"A declaração de inconstitucionalidade, se acolhida como foi requerida, modificará o sistema da Lei pela alteração do seu sentido, o que importa sua impossibilidade jurídica, uma vez que o Poder Judiciário, no controle de constitucionalidade dos atos normativos, só atua como legislador negativo e não como legislador positivo."

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Contudo, esse mesmo Supremo Tribunal Federal outrora refutou as sentenças aditivas, praticamente negando a natureza mandamental da ação injuntiva. Era o que se depreendia de toda a jurisprudência ultrapassada do STF acerca do mandado de injunção e sua natureza meramente declaratória. Cite-se como exemplo o MI nº 20, Relator o Ministro Celso de Mello, DJ de 22.11.1996. Com os Mandados de Injunção nº 670, nº 708 e nº 712, o STF reviu a sua jurisprudência, dando um passo além, no sentido da concretização das normas constitucional, produzindo a norma par ao caso concreto enquanto perdurasse a omissão legislativa.

Ultrapassada a questão acerca da técnica decisória, a remuneração do trabalhador mostra-se uma base de cálculo, mais do que congênere, estreitamente ajustada com a concretização do adicional de insalubridade previsto na Constituição.

Isso porque a própria Constituição, no inciso XXIII do seu artigo 7, estabelece o adicional de remuneração, dando a entender que esta, e apenas esta, oferece um cálculo consentâneo do plus remuneratório, devido em razão de condições penosas, insalubres ou perigosas. É o que se extrai da literalidade do dispositivo constitucional:

"Adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei".

Nos termos do enunciado transcrito, a base de cálculo do adicional já foi constitucionalmente fixada, a remuneração, deixando-se ao alvedrio do legislador apenas a forma em que se daria esse pagamento.

A declaração de inconstitucionalidade do Supremo deveria alcançar, tão somente, a base de cálculo (salário mínimo), preservando-se a forma de pagamento fixada na norma estadual (20%, 40% ou 60%) e atendendo-se ao dispositivo constitucional que fixa a remuneração como base de cálculo dos adicionais de insalubridade, periculosidade e penosidade.

Logo, conclui-se que a sentença de perfil substitutivo afigura-se como a única técnica decisória apta a afastar o quadro de inconstitucionalidade, sem vulnerar o direito constitucional ao adicional de insalubridade, promovendo a integridade do Texto Constitucional e a máxima eficácia dos direitos ali garantidos.


Notas

01 Segundo notícia "Supremo aprova a 4ª súmula vinculante", divulgada no site do STF: http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=88106, em acesso de 2.5.2008.

02 Súmula nº 339 do STF: "Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia."

03 Os acórdãos ainda estão pendentes de publicação, informações obtidas nos Informativos nº 480 e 485 do STF.

04 Art. 192 da CLT: "O exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo."

05 Súmula nº 228 do TST: "O percentual do adicional de insalubridade incide sobre o salário mínimo de que cogita o art. 76 da CLT, salvo as hipóteses previstas na Súmula nº 17."

06 ENTERRÍA, García de. La Constituición como norma y el tribunal constitucional, Madri: Civitas, 1994, p. 167/169.

07 BIN, Roberto; PITRUZZELA, Giovanni. Diritto Constituzionale, 3 ed. Turin: G. Giappichelli, 2002, p.425.

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Sobre a autora
Damares Medina

Advogada, mestre em Direito e professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDINA, Damares. Adicional de insalubridade e vinculação ao salário mínimo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1771, 7 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11248. Acesso em: 29 mar. 2024.

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