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A Fazenda Pública na recuperação judicial e falência.

Análise da jurisprudência do STJ sobre o rito processual e a dúplice garantia

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21/01/2025 às 15:50
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A nova jurisprudência do STJ e a Lei n. 14.112/20 redefinem a atuação da Fazenda Pública em falências e recuperações judiciais. Como a Fazenda Pública deve adaptar suas estratégias frente à vedação da garantia dúplice e à suspensão das execuções fiscais em incidentes falimentares?

Resumo: O presente artigo visa analisar as implicações da nova jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a atuação da Fazenda Pública em processos de recuperação judicial e falência. Tradicionalmente, a Fazenda Pública ostentava prioridade na cobrança de seus créditos tributários, podendo realizar a execução fiscal independentemente da habilitação desses créditos no processo falimentar. A jurisprudência oscilava acerca da dúplice garantia e após as inovações trazidas pela Lei n. 14.112/20 parece ter ocorrida uma solução jurídico-procedimental para a questão. Este estudo propõe-se a examinar essa mudança, comparando as decisões das diferentes turmas do STJ e sugerindo estratégias para a atuação da Fazenda Pública diante dessa nova realidade jurídica.

Palavras-chave: Fazenda Pública, Recuperação Judicial, Falência, Execução Fiscal, Jurisprudência.

Sumário: 1. Introdução. 2. A prioridade do crédito tributário na recuperação judicial e falência: arcabouço legal. 3. Histórico jurisprudencial do STJ – Análise de caso. 4. Impactos para a Fazenda Pública e estratégias de atuação. 5. Conclusão. Referências Bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO

A recuperação judicial e a falência são mecanismos legais essenciais no direito empresarial brasileiro, destinados a proporcionar alternativas para a reorganização de empresas em dificuldades financeiras ou para a liquidação ordenada de seus ativos na falência. No entanto, a atuação da Fazenda Pública nesses processos tem gerado debates jurídicos, especialmente no que diz respeito à preferência dos créditos tributários e à utilização de mecanismos de cobrança como a execução fiscal.

A problemática central deste artigo concentra-se nas mudanças legislativas e acompanhamento jurisprudencial do E. Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto à atuação da Fazenda Pública em processos de recuperação judicial e falência.

Historicamente, a Fazenda Pública, respaldada pelo Código Tributário Nacional (Lei n. 5172/66 - CTN) e pela Lei de Execuções Fiscais (Lei n. 6.830/80 - LEF), podia prosseguir com a execução fiscal independentemente da habilitação de seus créditos no processo falimentar. Contudo, na prática, por vezes o Fisco era impedido dessa missiva, tendo uma ou outra (quando não ambas) as situações extintas (execução fiscal e/ou pedido de habilitação de crédito).

O objetivo deste estudo é analisar essa situação jurídica, à luz das inovações trazidas pela Lei n. 14.112/20, explorando os impactos da orientação jurisprudencial e as estratégias que a Fazenda Pública deve adotar para assegurar a efetividade da cobrança de seus créditos. Busca verificar, ainda, se é possível ou não a adoção da dúplice garantia pelo Fisco. Para tanto, serão comparadas as decisões das diferentes turmas do STJ, com foco nas divergências e convergências jurisprudenciais, inclusive com análise de caso concreto.


2. A PRIORIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL E NA FALÊNCIA: ARCABOUÇO LEGAL.

O crédito tributário goza de uma posição privilegiada no ordenamento jurídico brasileiro. Segundo o art. 186. do CTN1, ele prefere a qualquer outro crédito, exceto os decorrentes da legislação trabalhista ou de acidente de trabalho. Essa preferência está diretamente relacionada à indisponibilidade do crédito público, uma vez que este é essencial para a manutenção das funções do Estado e para o financiamento de políticas públicas.

No entanto, a regra geral de preferência dos créditos tributários foi, no âmbito da falência, mitigada. Conforme se lê no art. 186. do CTN, alterado por meio da Lei Complementar 118/05, o crédito tributário não prefere aos créditos extraconcursais ou às importâncias passíveis de restituição, nos termos da lei falimentar, nem aos créditos com garantia real, até o limite do bem gravado. Ainda em relação à falência, as multas tributárias são relegadas a um patamar ainda mais inferior, por se entender que somente o crédito tributário principal é que goza da preferência, já que as multas são encargos acessórios ao principal.

De acordo com a justificativa do projeto de Lei Complementar n. 118/05 apresentado à Câmara de Deputados2, o fato de os créditos tributários gozarem de preferência em relação a quaisquer outros fazia com que nada ou quase nada restassem aos demais credores após o término de um processo de recuperação ou falência das empresas. Assim, entendeu o legislador por bem relegar, na falência, o crédito tributário a um terceiro plano, colocando-o depois dos créditos trabalhistas e daqueles com garantia real.

Apesar disso, caso o crédito tributário decorra de fato gerador ocorrido no curso do processo de falência ou da recuperação judicial, este serão de natureza extraconcursal3, ou seja, são aqueles que são pagos com precedência sobre os demais (trabalhistas, com garantia real, quirografários, subordinados etc)4.

A Lei n. 6.830/80 (LEF), que regula a execução fiscal, reforça essa preferência ao estabelecer, em seus arts. 5º5 e 296, que a execução fiscal não se sujeita à habilitação prévia ou posterior no processo falimentar. Na mesma linha dispõe o art. 187, do CTN7. Isso significa que a Fazenda Pública poderia, simultaneamente, ajuizar uma execução fiscal para cobrar seus créditos e habilitá-los no processo falimentar, aumentando assim as chances de recuperação dos valores devidos.

A recuperação judicial foi uma novidade inserida no nosso ordenamento jurídico tão somente com o advento da Lei n. 11.101/05. Antes disso, junto à falência, vigia, no nosso ordenamento, o instituto da concordata, que não se confundia com a recuperação judicial.

Tanto a recuperação judicial8 quanto a falência9 estão inseridas em um contexto de crise da empresa. Juntamente com a promulgação da Lei n. 11.101/05 foi promulgada a Lei Complementar n. 118/05, que promoveu uma série de alterações no CTN.

Na linha do que foi exposto até aqui, o art. 6º, § 7º, da Lei n. 11.101/0510, até o ano de 2020 (eis que revogado posteriormente), expressamente previa que as execuções fiscais, diferentemente de outras execuções, não seriam suspensas em virtude do processo de recuperação. A independência da cobrança dos créditos fiscais também ficava patente em face do disposto no art. 76, da mesma Lei11.

Assim, por expressa disposição legal, os créditos tributários não se sujeitavam ao juízo da recuperação judicial, seja na Lei de Recuperação de Empresa, seja no CTN. Ou seja, o crédito tributário poderia ser executado autonomamente em relação ao processo de recuperação judicial, não se submetendo a suas diretrizes ou concorrendo com os demais credores.

Segundo doutrinadores como Hugo de Brito Machado (2005), essa prerrogativa era justificada pela natureza essencial do crédito tributário para a sustentação da máquina estatal. Ele argumenta que "a preferência do crédito tributário é uma manifestação do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, refletindo a importância do tributo para a manutenção do Estado".

Por outro lado, o art. 191-A, do CTN12, dispõe que a concessão de recuperação judicial depende de apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observadas eventuais causas suspensivas de exigibilidade de crédito tributário, mediante certidões negativas e certidões positivas com efeito de negativas.

No entanto, após o ano de 2020, a Lei n. 14.112/20 trouxe mudanças na Lei n. 11.101/05. Dentre elas, a menção expressa no art. 6º, de que com a falência ou recuperação judicial ficam proibidos quaisquer atos de constrição sobre os bens do devedor (novo inciso III):

Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:

I - suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor sujeitas ao regime desta Lei;

II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência;

III - proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência.

Outra mudança legislativa foi o acréscimo dos §§ 7º-B e 11, ao art. 6º, em que as execuções fiscais não ficam suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, no entanto, se o ato de constrição recair sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial, seria o juízo da recuperação judicial que poderia fazer a sua substituição:

Art. 6º [...].

§ 7º-B. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica às execuções fiscais, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69. da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805. do referido Código.

[...].

§ 11. O disposto no § 7º-B deste artigo aplica-se, no que couber, às execuções fiscais e às execuções de ofício que se enquadrem respectivamente nos incisos VII e VIII do caput do art. 114. da Constituição Federal , vedados a expedição de certidão de crédito e o arquivamento das execuções para efeito de habilitação na recuperação judicial ou na falência.

Depreende-se que as execuções fiscais não ficam suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, como já era antes. Contudo, a única mudança recaiu sobre o fundamento jurídico: não mais o § 7º, mas sim o § 7º-B do art. 6º.

Quanto à competência para decretar os atos expropriatórios, antes da reforma, todos os atos expropriatórios deveriam ser submetidos ao juízo da recuperação judicial. Após a reforma de 2020, o juízo da recuperação judicial passou a ter competência apenas para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial. Assim, em regra, os atos expropriatórios são determinados pelo próprio juízo da execução fiscal. Se o ato de constrição eventualmente recair sobre um bem de capital essencial à manutenção da atividade empresarial, então, neste caso, a competência para fazer a substituição será do juízo da recuperação judicial.

Por fim, especialmente quanto ao rito da falência e às execuções fiscais, a Lei n. 14.112/2020 criou um incidente de classificação de crédito público para que a Fazenda Pública informe ao juízo da falência a relação completa de seus créditos inscritos em dívida ativa:

Art. 7º-A. Na falência, após realizadas as intimações e publicado o edital, conforme previsto, respectivamente, no inciso XIII do caput e no § 1º do art. 99. desta Lei, o juiz instaurará, de ofício, para cada Fazenda Pública credora, incidente de classificação de crédito público e determinará a sua intimação eletrônica para que, no prazo de 30 (trinta) dias, apresente diretamente ao administrador judicial ou em juízo, a depender do momento processual, a relação completa de seus créditos inscritos em dívida ativa, acompanhada dos cálculos, da classificação e das informações sobre a situação atual.

§ 1º Para efeito do disposto no caput deste artigo, considera-se Fazenda Pública credora aquela que conste da relação do edital previsto no § 1º do art. 99. desta Lei, ou que, após a intimação prevista no inciso XIII do caput do art. 99. desta Lei, alegue nos autos, no prazo de 15 (quinze) dias, possuir crédito contra o falido.

§ 2º Os créditos não definitivamente constituídos, não inscritos em dívida ativa ou com exigibilidade suspensa poderão ser informados em momento posterior.

§ 3º Encerrado o prazo de que trata o caput deste artigo:

I - o falido, os demais credores e o administrador judicial disporão do prazo de 15 (quinze) dias para manifestar objeções, limitadamente, sobre os cálculos e a classificação para os fins desta Lei;

II - a Fazenda Pública, ultrapassado o prazo de que trata o inciso I deste parágrafo, será intimada para prestar, no prazo de 10 (dez) dias, eventuais esclarecimentos a respeito das manifestações previstas no referido inciso;

III - os créditos serão objeto de reserva integral até o julgamento definitivo quando rejeitados os argumentos apresentados de acordo com o inciso II deste parágrafo;

IV - os créditos incontroversos, desde que exigíveis, serão imediatamente incluídos no quadro-geral de credores, observada a sua classificação;

V - o juiz, anteriormente à homologação do quadro-geral de credores, concederá prazo comum de 10 (dez) dias para que o administrador judicial e a Fazenda Pública titular de crédito objeto de reserva manifestem-se sobre a situação atual desses créditos e, ao final do referido prazo, decidirá acerca da necessidade de mantê-la.

§ 4º Com relação à aplicação do disposto neste artigo, serão observadas as seguintes disposições:

I - a decisão sobre os cálculos e a classificação dos créditos para os fins do disposto nesta Lei, bem como sobre a arrecadação dos bens, a realização do ativo e o pagamento aos credores, competirá ao juízo falimentar;

II - a decisão sobre a existência, a exigibilidade e o valor do crédito, observado o disposto no inciso II do caput do art. 9º desta Lei e as demais regras do processo de falência, bem como sobre o eventual prosseguimento da cobrança contra os corresponsáveis, competirá ao juízo da execução fiscal;

III - a ressalva prevista no art. 76. desta Lei, ainda que o crédito reconhecido não esteja em cobrança judicial mediante execução fiscal, aplicar-se-á, no que couber, ao disposto no inciso II deste parágrafo;

IV - o administrador judicial e o juízo falimentar deverão respeitar a presunção de certeza e liquidez de que trata o art. 3º da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, sem prejuízo do disposto nos incisos II e III deste parágrafo;

V - as execuções fiscais permanecerão suspensas até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis;

VI - a restituição em dinheiro e a compensação serão preservadas, nos termos dos arts. 86. e 122 desta Lei; e

VII - o disposto no art. 10. desta Lei será aplicado, no que couber, aos créditos retardatários.

§ 5º Na hipótese de não apresentação da relação referida no caput deste artigo no prazo nele estipulado, o incidente será arquivado e a Fazenda Pública credora poderá requerer o desarquivamento, observado, no que couber, o disposto no art. 10. desta Lei.

§ 6º As disposições deste artigo aplicam-se, no que couber, às execuções fiscais e às execuções de ofício que se enquadrem no disposto nos incisos VII e VIII do caput do art. 114. da Constituição Federal.

§ 7º O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, aos créditos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

§ 8º Não haverá condenação em honorários de sucumbência no incidente de que trata este artigo.

Em resumo, a Fazenda Pública não é obrigada a habilitar seus créditos fiscais no processo falimentar ou de recuperação judicial. Isso porque o CTN e a Lei nº 6.830/80 afirmam que o crédito tributário não é sujeito a concurso de credores. Ela tem a liberdade de optar pelo prosseguimento da execução fiscal, garantindo a alienação de bens do devedor, ou pela habilitação de seus créditos na falência, assegurando sua preferência no rateio dos ativos da massa falida.

Segundo a doutrina, embora seja o único credor:

"que não participa da Assembleia Geral de Credores e não se submete ao plano de recuperação, o Fisco colabora com a recuperação da empresa mediante o parcelamento dos créditos tributários [...] Dessa forma, a contribuição do Fisco acontecerá de forma automática, estabelecendo dilatação dos prazos para pagamento, aliviando as necessidades de fluxo de caixa das empresas e propiciando a regularização de sua situação fiscal" (PAIVA, 2005, pp. 52-53)

Contudo, a doutrina também esclarece que essa prerrogativa não pode violar o caráter concursal do processo falimentar:

“A autorização para cobrança judicial dos créditos fiscais, independentemente do processo falimentar, não pode desconsiderar seu caráter concursal. O processo de cobrança tributária pode evoluir em juízo próprio até a fase de excussão, mas os resultados da alienação ou do pagamento a qualquer título devem ser levados ao juízo falimentar para rateio, sob pena de violação da ordem de prioridade reconhecida tanto na Lei 11.101/2005 como no CTN” (SATIRO, 2007, p. 366).

E elucida sobre o procedimento, antes e depois da decretação de quebra:

“Na prática, o que ocorre é a promoção ou a continuidade da execução fiscal, com a penhora do crédito fazendário no rosto dos autos do processo falimentar, devendo o administrador judicial, devidamente citado, levá-lo em consideração quando da ordenação do quadro geral de credores e do pagamento dos credores, respeitando a ordem estabelecida no art. 83. da LREF. Embora a execução fiscal prossiga normalmente, será considerado inválido qualquer ato de constrição - penhora judicial - posteriormente à decretação da quebra. Se a penhora ocorreu antes da decretação da quebra do executado, é possível alienar judicialmente tais bens no juízo executivo, devendo, todavia, o produto de tal alienação ser revertido para o juízo falimentar para o pagamento preferencial dos credores que estão à frente do fisco na classificação dos créditos” (SCALZILLI, 2017, p. 798).

Demonstrado o arcabouço legal que circunda o tema, passa-se a análise jurisprudencial.


3. HISTÓRICO JURISPRUDENCIAL DO STJ – ANÁLISE DE CASO.

A jurisprudência do STJ sempre reconheceu a importância da proteção ao crédito tributário, permitindo que a Fazenda Pública utilizasse mecanismos de cobrança simultâneos. No Conflito de Competência 114.987/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, julgado em 14 de março de 2011, a Segunda Seção do STJ decidiu que a execução fiscal poderia prosseguir até a alienação dos bens do devedor, mas que o produto da venda deveria ser revertido em favor da massa falida:

“Apesar de a execução fiscal não se suspender em face do deferimento do pedido de recuperação judicial (art. 6º, §7º, da LF n. 11.101/05, art. 187. do CTN e art. 29. da LF n. 6.830/80), submetem-se ao crivo do juízo universal os atos de alienação voltados contra o patrimônio social das sociedades empresárias em recuperação, em homenagem ao princípio da preservação da empresa”.

De forma similar, no RESP 1.729.249/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, julgado em 3 de maio de 2018, a Segunda Turma do STJ reiterou que a Fazenda Pública não estava obrigada a habilitar seus créditos no processo falimentar e poderia, portanto, optar pelo prosseguimento da execução fiscal. Esse entendimento visava proteger a Fazenda Pública de eventuais prejuízos decorrentes da falência do devedor, assegurando-lhe uma via adicional para a cobrança de seus créditos. Cita-se da ementa:

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“3. A necessidade de aguardar o término da ação de falência para eventual satisfação do seu crédito não retira da credora/exequente a faculdade de optar por ambas as vias de cobrança: habilitação no processo falimentar e ajuizamento da execução fiscal.

4. A tentativa de resguardar o interesse público subjacente à cobrança de tal espécie de crédito, através do ajuizamento da execução fiscal e de habilitação no processo falimentar, não encontra óbice na legislação aplicável. Inteligência dos arts. 187. do CTN e 29 da Lei 6.830/1980.

5. Em caso da existência de processo falimentar, eventual produto da alienação judicial dos bens penhorados deve ser repassado ao juízo universal da falência”.

Essa mesma orientação seguiu-se nos anos subsequentes, a exemplo do AgInt no CC 158.712/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 25/09/2019 e do AgInt no CC 152.714/PE, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 17/09/2019. Inclusive existia a Tese 7, da edição 37, do Jurisprudência em Teses do STJ (recuperação judicial – II):

Tese 7: O deferimento da recuperação judicial não suspende a execução fiscal, mas os atos que importem em constrição ou alienação do patrimônio da recuperanda devem se submeter ao juízo universal.

No ano de 2021 o STJ cancelou o Tema Repetitivo n. 987, que continha a seguinte questão jurídica: “Possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária” 13 .

O Ministro Relator do processo ressaltou que caberia ao juízo da recuperação judicial verificar a viabilidade da constrição efetuada em sede de execução fiscal, observando as regras do pedido de cooperação jurisdicional (art. 69, do CPC), podendo determinar eventual substituição, a fim de que não fique inviabilizado o plano de recuperação judicial (REsp 1.694.261).

Essa desafetação do tema ocorreu após a alteração legislativa de 2020, que acrescentou o § 7º-B, ao art. 6º, da Lei n. 11.101/05.

Outro caso que remete ao ano de 2021 é o AgInt no REsp nº 1.872.153 – SP, em um caso que a Fazenda Pública tinha postulado a habilitação de crédito em processo falimentar, mas o juízo de primeiro grau julgou extinto o feito, sem resolução de mérito, “uma vez que não comprovada a desistência da execução fiscal, configurando-se 'bis in idem'”.

Entendeu que não poderia haver duas ações simultâneas: a habilitação de crédito na falência e a concomitância da execução fiscal. Embora a Fazenda Pública pudesse escolher qual rito seguir, não poderia seguir com ambas ao mesmo tempo.

Ocorre que o caso concreto trazia uma situação peculiar: quando a Fazenda Pública iniciou a execução fiscal ainda não havia sido decretada a falência da parte executada, de modo que não ocorreu uma “opção” do Fisco por um ou outro rito, mas da adoção do único procedimento possível naquele momento - ajuizamento da execução fiscal. A decretação da falência ocorreu apenas quando já em curso a execução fiscal.

Com a decretação da falência e a habilitação dos créditos do fisco no juízo falimentar, a execução fiscal restou arquivada, aguardando o desfecho do processo falimentar. A extinção do feito da Fazenda Pública pelo juízo falimentar causou uma situação curiosa, em que o Fisco não pôde nem seguir pelo rito da execução fiscal, nem pelo rito falimentar. E essa situação foi analisada pelo E. STJ.

No julgamento do citado Agravo Interno, o voto do Ministro Luis Felipe Salomão entendeu que a Fazenda Pública não poderia utilizar simultaneamente a execução fiscal e a habilitação de créditos no processo falimentar para garantir a cobrança do mesmo crédito tributário, sob pena de configuração de uma "dúplice garantia". Extrai-se da ementa:

AGRAVO INTERNO. EMPRESARIAL. FALÊNCIA. PEDIDO DE HABILITAÇÃO DE CRÉDITO OBJETO DE EXECUÇÃO FISCAL EM CURSO. IMPOSSIBILIDADE. DESCABIMENTO DA DÚPLICE GARANTIA.

1. É firme a jurisprudência do STJ, no sentido de que "malgrado a prerrogativa de cobrança do crédito tributário via execução fiscal, inexiste óbice para que o Fisco (no exercício de juízo de conveniência e oportunidade) venha a requerer a habilitação de seus créditos nos autos do procedimento falimentar, submetendo-se à ordem de pagamento prevista na Lei 11.101/2005, o que implicará renúncia a utilizar-se do rito previsto na Lei 6.830/80, ante o descabimento de garantia dúplice" (REsp 1466200/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/12/2018, Dje 12/02/2019).

2. Na hipótese, a habilitação de crédito deve ser julgada extinta sem a resolução de mérito, haja vista que não é cabível a dúplice garantia nem se comprovou a desistência da execução fiscal anteriormente ajuizada.

3. Agravo interno não provido.

Esse entendimento foi fundamentado no princípio da igualdade entre os credores e na necessidade de respeitar as regras específicas do processo falimentar, que visa ao tratamento equitativo dos credores. A decisão destacou que a possibilidade de utilizar dois mecanismos de cobrança simultâneos conferia à Fazenda Pública uma vantagem excessiva em relação aos demais credores, o que poderia comprometer a finalidade do processo de falência.

Entretanto, a Ministra Maria Isabel Gallotti proferiu voto-vista entendendo que:

"a habilitação do crédito no processo de falência ou recuperação judicial não deve acarretar a necessidade de renúncia à via da execução fiscal, notadamente em casos como o presente, em que a execução foi ajuizada antes da decretação da quebra e está suspensa, sem penhora de bens. Inexistente, portanto, dúplice garantia [...] A circunstância de haver execução judicial em tramitação - processo principal de cobrança da dívida fiscal - não acarreta, data maxima vênia, dúplice garantia, o que só ocorreria caso houvesse penhora nos autos da execução ou no rosto dos autos da falência".

Lembrou, ainda, que a situação vinha sendo decidida de forma diversa pelas Turmas da Primeira Seção, que permitia ao Fisco optar pela adoção de ambas as vias de cobrança: habilitação no processo falimentar e ajuizamento da execução fiscal14. Apontou que a Terceira Turma também vinha adotando a mesma linha da Primeira Seção15.

Destacou o voto do Ministro Franciulli Neto, no RESP 185.838-SP, ao ressaltar que a execução fiscal é o processo principal em relação ao pedido de habilitação de crédito na falência ou na concordata. Contestado o crédito (inclusive sobre prescrição), as partes são remetidas à respectiva discussão na execução fiscal, sendo possível a reserva de crédito na falência apenas caso não haja penhora garantindo o feito executivo. Havendo penhora, não caberia reserva de crédito na falência, o que configuraria dúplice garantia.

Ao final, a Ministra pediu venia ao Relator e entendeu que a habilitação do crédito no processo de falência ou recuperação judicial não deve acarretar a necessidade de renúncia à via da execução fiscal, notadamente em casos em que a execução foi ajuizada antes da decretação da quebra e está suspensa, sem penhora de bens. Inexistiria, portanto, dúplice garantia, o que só ocorreria caso houvesse penhora nos autos da execução ou no rosto dos autos da falência. Citou o voto da Ministra Regina Helena Costa no RESP 1.831.186:

“A garantia traduz-se, singelamente, na constrição de bens e direitos, na execução fiscal, por meio de penhora ou indisponibilidade. Desse modo, a tramitação da ação executiva fiscal não representa, por si só, uma garantia para o credor. [...].

Remarco a possibilidade de a Fazenda Pública optar pela habilitação de crédito em detrimento do pedido de constrição de bens em sede de execução fiscal, uma vez que obstar a coexistência da ação executiva fiscal e da habilitação de crédito no juízo falimentar malfere os arts. 187. do CTN, 5º e 29 da LEF, bem como os arts. 6º e 7º da Lei n. 11.101/2005. Tal arcabouço legislativo garante a autonomia do sistema da LEF em relação ao juízo universal falimentar, sem, contudo, comprometer, por si só, o princípio da preservação da empresa. Consoante a jurisprudência deste Tribunal Superior, entendimento diverso reduz o campo de atuação da Fazenda Pública no âmbito do processo falimentar, olvidando-se a possibilidade de o ente público exercer a fiscalização dos trâmites no juízo da quebra, por exemplo, quanto à ordem de classificação dos pagamentos a serem efetuados aos credores com direito de preferência (AgRg no CC n. 112.646/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, 1ª Seção, julgado em 11.05.2011, DJe 17.05.2011). [...].

Não há se falar, portanto, em renúncia à ação executiva fiscal diante de pedido de habilitação de crédito no juízo concursal, quando o feito executivo carece de constrição de bens. [...].

Logo, revela-se cabível a coexistência da habilitação de crédito em sede de juízo falimentar com a execução fiscal desprovida de garantia, desde que a Fazenda Nacional se abstenha de requerer a constrição de bens em relação ao executado que também figure no polo passivo da ação falimentar”

A mera tramitação de execução não significa existência de garantia. A garantia somente ocorreria em caso de penhora, medida de indisponibilidade de bens deferida ou reserva de crédito na falência.

Ponderou, em arremate, que:

"exigir a extinção da execução fiscal, por outro lado, prejudicaria a discussão sobre a existência e valor do crédito fiscal - a qual, reitero, não pode ocorrer no juízo falimentar - bem como traria entraves sem base legal ao direito da Fazenda de prosseguir na execução contra demais coobrigados, caso, no encerramento da falência, não consiga receber integralmente seus créditos e ficar caracterizada alguma hipótese de responsabilização dos sócios".

Em razão dessas considerações e da relevância do tema, o Ministro Relator tornou sem efeito a decisão anterior por ele proferida, para permitir que futuramente o recurso especial fosse incluído em pauta de julgamento, oportunizando-se às partes sustentação oral, para melhor debate da matéria.

O RESP foi julgado em 09/11/202116, após as alterações legislativas efetivadas pela Lei n. 14.112/20, cuja discussão recaiu em definir se era possível que o fisco se valesse de duas vias – garantia dúplice, ou seja, sobreposição de formas – para a satisfação do seu crédito na falência: a execução fiscal e a habilitação de crédito.

A resposta foi negativa, mas o Fisco teve a solução para o caso concreto.

O Ministro Relator Luis Felipe Salomão destacou os arts. 186, 187, do CTN e art. 76, da Lei 11.101/05 (crédito tributário não está sujeita a concurso de credores e o procedimento da Lei 11.105/05 não tem o condão de paralisar a execução fiscal), destacando, contudo, o entendimento sedimentado do STJ (até 2021) de que o dinheiro resultante da alienação de bens penhorados deveria ser entregue ao juízo da falência (REsp 188.148/RS; AgRg no AREsp 281.169/DF; EREsp 276.781/SP; AgInt no CC 177.164/SP).

Ressaltou-se que sempre foi firme a jurisprudência do STJ em reconhecer que a opção pela habilitação implicaria renúncia à utilização do rito previsto na Lei n. 6.830/80, não se admitindo uma garantia dúplice:

“2. Os arts. 187. e 29 da Lei 6.830/80 não representam um óbice à habilitação de créditos tributários no concurso de credores da falência; tratam, na verdade, de uma prerrogativa da entidade pública em poder optar entre o pagamento do crédito pelo rito da execução fiscal ou mediante habilitação do crédito. 3. Escolhendo um rito, ocorre a renúncia da utilização do outro, não se admitindo uma garantia dúplice. Precedentes” (REsp 1.103.405/MG, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 02.04.2009, DJe 27.04.2009)17.

A principal consequência relacionada à vedação da dúplice garantia está em trazer, seguindo os ditames constitucionais, eficiência ao processo de insolvência, evitando o prosseguimento de dispendiosas e inúteis execuções fiscais contra a massa falida, já que a existência de bens penhoráveis ou de numerários em nome da devedora serão, inevitavelmente, remetidos ao juízo da falência para, como dito, efetivar os rateios do produto da liquidação dos bens de acordo com a ordem legal de classificação dos créditos (LRE, arts. 83. e 84).

Citou doutrina no mesmo sentido da vedação à dúplice garantia: "materializa-se renúncia com relação à outra, inclusive no que se refere a eventual pedido de reserva de numerário no âmbito da falência, pois não se admite garantia dúplice para o fisco" (SCALZILLI, 2017, p. 798).

Ainda:

"como a Lei de Execução Fiscal determina que a competência para processar e julgar a execução da Dívida Ativa da Fazenda Pública exclui a competência do próprio juízo falimentar, a execução fiscal deverá prosseguir [...] O que não poderá ocorrer é o bis in idem, ou seja, serem escolhidas as duas vias para a satisfação do crédito. A habilitação de crédito ou impugnação judicial, caso apresentadas após o ajuizamento da execução fiscal, devem ser extintas, por falta de interesse de agir da habilitante ou impugnante, a menos que a execução fiscal tenha sido previamente suspensa. Isso porque não poderá ocorrer sobreposição de formas de satisfação" (SACRAMONE, 2021, p. 118).

Sua Excelência fundamentou, também, na reforma trazida pela Lei n. 14.112/20. A nova legislação estabeleceu procedimento específico, denominado de "incidente de classificação do crédito público", a ser instaurado de ofício pelo juízo falimentar, uma forma especial de habilitação dos créditos fiscais na falência, que enseja, conforme previsão expressa, a suspensão das execuções fiscais até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis.

Portanto, pelo novel diploma da insolvência, ficou autorizada a habilitação do crédito fiscal na falência, desde que, em contrapartida, tenha ocorrido a suspensão das execuções fiscais (que se dará automaticamente com a instauração do incidente de classificação de crédito público), exatamente para evitar a sobreposição de formas de satisfação e o óbice da dúplice garantia.

A decisão do recurso caminhou para o voto-vogal do Ministro Raul Araújo, que concluiu pela necessidade de utilização da dupla via pela Fazenda Pública e teceu críticas ao sistema legislativo/jurisprudencial:

“A Fazenda deve mesmo se valer das duas vias. Com a nova lei, agora está obrigada a pedir a suspensão da execução fiscal, mas não a extinção como exigido no v. acórdão embargado, do Tribunal de Justiça.

Assim, a apreciação que faço é a mesma, porém com um juízo crítico acerca da evolução normativa e jurisprudencial.

Tivemos uma evolução legislativa que não alterou muito o cenário assegurador dos privilégios do crédito tributário, mas, paralelamente, tivemos uma evolução jurisprudencial noutra direção, a qual marchou muito favorável à afirmação do princípio da recuperação da empresa e do prestígio do juízo universal, a ponto de praticamente ignorar os privilégios do crédito fazendário e reduzir sobremaneira a competência do Juízo da Execução Fiscal.

Os créditos tributários, na prática, por construção pretoriana, foram submetidos à recuperação judicial, ao contrário do que diz a lei.

A evolução jurisprudencial, na minha compreensão, não levou em conta a necessidade de a Fazenda Pública fazer prevalecer os créditos tributários, seus privilégios, valendo-se da execução fiscal. Subtraiu-se do Juízo da Execução Fiscal a autoridade para o momento principal de qualquer execução, que é a constrição de bens do devedor para resgate dos créditos do credor. Nesse momento, entendeu a Segunda Seção que deveria ficar a cargo do juízo universal a deliberação acerca da constrição.

Com isso, na minha maneira de compreender, forçamos a Fazenda Pública a usar as duas vias, a da execução fiscal e, posteriormente, a do juízo universal, pois houve mudança na compreensão jurisprudencial em função da superação do antigo Decreto-lei pela Lei n. 11.101/2005.

Assim, embora a Lei 11.101/2005 também consagre os privilégios do crédito tributário, nossa jurisprudência fez uma interpretação diferente acerca disso, nos termos acima referidos.

Certamente por isso, a meu ver, a nova Lei corrigiu toda a distorção criada por nossa jurisprudência e, inspirada nesta, trouxe agora uma solução positivada, permitindo expressamente a dupla via, desde que solicitada a suspensão da execução fiscal.

Acompanho a solução apresentada no voto do Relator, adotando fundamentação diferente”.

Para o Ministro, historicamente a jurisprudência foi mais favorável ao juízo universal, por vezes ignorando os próprios termos da lei. E justamente isso fez com que o Fisco tivesse que, realmente, se valer das duas vias para satisfação do seu crédito. Com a reforma, essa distorção foi corrigida, expressamente se autorizando a utilização da dupla via, mas com a suspensão da execução fiscal em determinado momento.

Por fim, a Ministra Isabel Gallotti proferiu sou voto, concordando com os fundamentos do Ministro Raul Araújo:

“Penso que, desde a jurisprudência anterior à inovação feita na Lei de Falência de dezembro de 2020, sempre se impôs o ajuizamento da execução fiscal como a principal ação para a Fazenda buscar os seus créditos e não era – como continua não sendo – vedada a via dupla de cobrança dos créditos fiscais, sendo que a principal delas ainda é a execução fiscal.

[...].

E síntese, a redação originária da lei de recuperação judicial já previa que a execução fiscal deveria correr sem sequer ser suspensa pela instauração da recuperação judicial. Foram acórdãos da Segunda Seção que determinaram que a execução poderia prosseguir, mas sem penhora e constrição de bens, o que, na prática, tornava infrutífero o prosseguimento de uma execução em que não podia haver constrição de bens.

Essa situação, a meu ver, foi tratada bem melhor pela alteração legislativa de dezembro de 2020, que criou procedimento, na falência, a ser instaurado de ofício pelo juízo, a saber, um incidente de classificação de crédito público. Com isso, organizou a cobrança da dívida tributária com intimação dos titulares de créditos contra o erário para apresentar os seus créditos, com possibilidade de vista às partes para questionar esses valores, ou seja, ficou organizada a cobrança do crédito tributário.

Essa lei nova deixou ainda mais clara, a meu ver, a necessidade de que houvesse uma execução fiscal ajuizada, mas também tornou claro que a execução fiscal deve permanecer suspensa até o encerramento da falência sem prejuízo da possibilidade de cobrança contra os corresponsáveis.

[...].

Penso, portanto, com a devida vênia, que é possível, e mais ainda, é necessária a dúplice via, mas que agora está claríssimo que a execução permanecerá suspensa e que eventuais controvérsias sobre a existência, exigibilidade e o valor do crédito continuam na alçada do juízo da execução fiscal e ficará na alçada do juízo falimentar a decisão sobre classificação dos créditos, arrecadação de bens, realização do ativo e pagamento dos credores. Ou seja, na prática, o que aconteceu foi tornar mais claro o que já ocorria na legislação anterior, tornando letra da lei, o que, a meu ver, já era a jurisprudência da Segunda Seção.”.

Verifica-se que a Ministra imputa ao próprio STJ a possibilidade de prosseguimento de uma execução fiscal infrutífera, mas que agora teria sido corrigida pela reforma legislativa, que teria organizado a cobrança da dívida tributária na falência.

No mesmo sentido do Ministro Raul Araújo, entendeu necessária a dúplice via, mas com a ressalva de que a execução deveria permanecer suspensa.

Em que pese essas considerações, no ponto, a decisão restou assim ementada:

“Na falência, é vedado que o fisco utilize duas vias processuais para satisfação de seu crédito – a denominada garantia dúplice: a execução fiscal e a habilitação de crédito –, sob pena de bis in idem, ressalvada a possibilidade de discussão, no juízo da execução fiscal, sobre a existência, a exigibilidade e o valor do crédito, assim como de eventual prosseguimento da cobrança contra os corresponsáveis (LREF, art. 7º-A, § 4º, II). A suspensão da execução, a que alude a mesma regra (inciso V), afasta a dupla garantia, a sobreposição de formas de satisfação do crédito, permitindo a habilitação do crédito na falência”.

Quanto ao caso concreto analisado pelo acórdão, o recurso especial da Fazenda Pública foi provido, permitindo-se a habilitação dos créditos na falência, mormente porque a execução fiscal estava arquivada (suspensa).

Em que pese o exposto, curiosamente, em 2024, a ​Segunda Seção do STJ entendeu que seria da competência do juízo da execução fiscal determinar o bloqueio de valores pertencentes a empresa em recuperação judicial (CC 196.553/PE).

O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator do processo, observou que, conforme o art. 6º, § 7º-B, da Lei n. 11.101/05, a competência do juízo da recuperação diante das execuções fiscais se limitaria a determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, indicando outros ativos que possam garantir a execução.

Segundo o relator, o termo "bens de capital" presente no dispositivo deve ser interpretado da mesma forma que o STJ interpretou o art. 49, § 3º, da Lei 11.101/05: são bens corpóreos, móveis ou imóveis, não perecíveis ou consumíveis, empregados no processo produtivo da empresa18.

Segundo o Ministro, os valores em dinheiro não constituem bem de capital, de modo que não foi inaugurada a competência do juízo da recuperação prevista no artigo 6º, § 7º-B, da LREF para determinar a substituição dos atos de constrição.

A decisão não foi unânime, cabendo, para fins de estudo, apontar os argumentos divergentes do voto-vista do Ministro Moura Ribeiro, que defendeu o juízo da recuperação judicial como o competente para dirimir sobre a constrição de valores em dinheiro:

“A questão, portanto, visa definir se dinheiro pode ser considerado bem de capital.

Penso que deve ser mantido o entendimento anterior de que os atos de constrição devem ser suspensos quanto aos bens essenciais, ficando ao crivo do juízo da recuperação a análise da essencialidade do bem. Se o bem for essencial para o exercício da atividade econômica da empresa não poderá sofrer ato de constrição.

Com efeito, o texto de lei se refere a bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial (art. 6º, § 7º-A), cabendo ao devedor demonstrar que se trata de bem com tal adjetivação.

Aliás, a redação do art. 49, § 3º, da lei já se referia a bens de capital essenciais, permitindo-se a interpretação de que foi adotada a teoria da essencialidade de bens na recuperação judicial, não devendo eles ser retirados da atividade empresarial, a ponto de paralisar ou tornar inviável o negócio.

[...].

Desse modo, mais uma vez, se mostra necessária a análise dos fatos pelo magistrado da recuperação, que deve realizar o controle quanto a essencialidade dos bens, sempre aplicando o bom senso e os princípios delineados pela lei recuperacional.

Não é possível retirar do magistrado a análise da essencialidade dos bens porque se mostra temerário fixar uma regra geral para todos os casos, baseando-se no entendimento de que bem de capital seria apenas e tão-somente o bem corpóreo (móvel ou imóvel), utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda”.

Para o voto vencido, caberia ao devedor demonstrar se o bem penhorado é essencial à atividade empresarial e competiria ao juízo da recuperação a análise e decisão quanto a essa adjetivação. Argumentou que esse já era o entendimento do E. STJ para casos semelhantes, a exemplo de créditos extraconcursais e alienação fiduciária:

“2. A 2ª Seção do STJ possui orientação jurisprudencial no sentido de que, mesmo quanto aos créditos extraconcursais, incumbe ao Juízo em que se processa a recuperação judicial, ciente de tal circunstância, analisar a melhor forma de pagamento do aludido crédito, deliberar sobre os atos expropriatórios, sopesar a essencialidade dos bens de propriedade da empresa passíveis de constrição, além da solidez do fluxo de caixa da empresa em recuperação. Precedentes.

3. A continuidade de atos expropriatórios em juízo diverso poderá implicar alienação judicial de bens indispensáveis ao regular desenvolvimento das atividades da sociedade, inviabilizando o cumprimento do plano e violando o princípio de preservação da empresa”

(AgInt no AREsp nº 1.910.636/DF, relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, j. 22/11/2021, DJe de 25/11/2021).

“1. Os atos expropriatórios, mesmo de créditos garantidos por alienação fiduciária, devem passar pelo crivo do juízo da recuperação judicial, que possui maior condição de avaliar se o bem gravado é ou não essencial à manutenção da atividade empresarial e, portanto, indispensável à realização do plano de recuperação judicial.

2. Impossibilidade de prosseguimento da ação de busca e apreensão sem que o juízo quanto à essencialidade do bem seja previamente exercitado pela autoridade judicial competente, ainda que ultrapassado o prazo de 180 (cento e oitenta dias) a que se refere o art. 6º, § 4º, da Lei n. 11.101/2005”

(AgInt no CC nº 161.997/AL, minha relatoria, Segunda Seção, j. 2/6/2020, DJe de 4/6/2020).

“1. Os atos de execução dos créditos individuais promovidos contra empresas falidas ou em recuperação judicial, tanto sob a égide do Decreto-Lei n. 7.661/45 quanto da Lei n. 11.101/2005, devem ser realizados pelo Juízo universal. Inteligência do art. 76. da Lei n. 11.101/2005.

2. Tal entendimento estende-se às hipóteses em que a penhora seja anterior à decretação da falência ou ao deferimento da recuperação judicial. Ainda que o crédito exequendo tenha sido constituído depois do deferimento do pedido de recuperação judicial (crédito extraconcursal), a jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que, também nesse caso, o controle dos atos de constrição patrimonial deve prosseguir no Juízo da recuperação. Precedentes”

(AgInt no CC nº 166.811/MA, relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Segunda Seção, j. 12/2/2020, DJe de 18/2/2020).

Contudo, conforme já adiantado, esses argumentos não prevaleceram, cabendo ao juízo da execução fiscal decidir sobre a penhora de valores em dinheiro.

A reforma buscou equalizar o tratamento do débito tributário, pois o princípio da preservação da empresa está fundado em salvaguardar a atividade econômica que gera empregos e recolhe impostos. Além disso, objetivou incentivar a adesão ao parcelamento do crédito tributário. Se o pagamento do crédito tributário com a apreensão de dinheiro – bem consumível – for dificultada, há o risco de a quantia desaparecer e o crédito ficar sem pagamento.

Pelo exposto, quanto ao procedimento da recuperação judicial, a execução fiscal pode prosseguir até a alienação dos bens do devedor, mas o produto da venda deve ser revertido em favor da massa falida, desde que se trate de bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial, nos termos (i) da Tese 7, da edição 37, do Jurisprudência em Teses do STJ (recuperação judicial – II), (ii) do art. 69, do CPC e (iii) do § 7º-B, do art. 6º, da Lei n. 11.101/05. Se não for bens de capital, os atos expropriatórios são determinados pelo próprio juízo da execução fiscal.

Já quanto ao procedimento da falência, revela-se cabível a coexistência da habilitação de crédito em sede de juízo falimentar com a execução fiscal desprovida de garantia, desde que o Fisco se abstenha de requerer a constrição de bens em relação ao executado que também figure no polo passivo da ação falimentar.

A mera tramitação de execução não significa existência de garantia. A garantia somente ocorreria em caso de penhora, medida de indisponibilidade de bens deferida ou reserva de crédito na falência, em que se mostraria indevida a dúplice garantia.

Pela reforma trazida pela Lei n. 14.112/20, estabeleceu-se procedimento específico, denominado de "incidente de classificação do crédito público", a ser instaurado de ofício pelo juízo falimentar, que enseja, conforme previsão expressa, a suspensão das execuções fiscais até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis.

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Sobre o autor
Rafael Schreiber

Procurador do Município de Joinville (SC), MBA em Direito da Economia e da Empresa pela FGV, Especialista em Direito Público pela LFG, formado em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau – FURB com habilitação em Direito Internacional. Advogado OAB/SC 21.750.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHREIBER, Rafael. A Fazenda Pública na recuperação judicial e falência.: Análise da jurisprudência do STJ sobre o rito processual e a dúplice garantia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7874, 21 jan. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/112516. Acesso em: 29 abr. 2025.

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