Capa da publicação Notas comerciais e financiamento empresarial (Lei nº 14.195/21)
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Notas comerciais.

O reflexo da Lei nº 14.195/21 sobre esses instrumentos no Brasil

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14/03/2025 às 08:18
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Com a Lei nº 14.195/21, as notas comerciais tornaram-se alternativa acessível de financiamento empresarial. Quais os impactos na flexibilidade e na segurança jurídica?

1. INTRODUÇÃO

As Notas Comerciais têm ganhado destaque significativo no cenário econômico brasileiro nos últimos anos, tornando-se um instrumento cada vez mais utilizado e relevante para o mercado de capitais do país. Embora sua primeira utilização em território brasileiro tenha ocorrido em 1961, a emissão foi interrompida pelo Governo brasileiro da época1. Foi apenas em 1990, quase três décadas depois, que as Notas Comerciais começaram a ser efetivamente mencionadas nas regulamentações. Ao longo do tempo, esses instrumentos passaram por diversas transformações jurídicas, conquistando um regime jurídico próprio apenas recentemente, em 2021, com a implementação de uma nova legislação no ordenamento jurídico brasileiro.

As Notas Comerciais se destacam por suas características atrativas, como sua emissão simplificada e seu baixo custo associado, fatores que têm impulsionado seu uso nos últimos anos, não só por startups, mas por grandes empresas, como a Petrobras. Esse crescimento é reflexo da busca das empresas brasileiras por alternativas mais flexíveis e eficientes para a captação de recursos.

Além disso, é importante ressaltar que as Notas Comerciais são moldadas por uma intensa regulação administrativa e pelas práticas comerciais vigentes, que desempenham um papel crucial na orientação e resolução de eventuais controvérsias envolvendo esses títulos. Esse conjunto normativo e prático fornece uma base sólida, embora recente, para que as Notas Comerciais sejam utilizadas de maneira eficiente no mercado. No entanto, ainda é necessária maior regulação sobre o assunto.

Neste contexto, este trabalho explorará as Notas Comerciais, abordando sua evolução histórica, principais características, inovações introduzidas pelo regime jurídico proposto pela Lei 14.195/21 e benefícios e riscos associados a esses instrumentos. A análise evidenciará como as Notas Comerciais contribuem para a diversificação e a dinamização do mercado financeiro brasileiro, oferecendo uma opção viável e flexível o suficiente para se adaptar às necessidades de financiamento das empresas.


2. CONCEITO

Primeiramente, compreender os elementos essenciais da conceituação é um passo fundamental na determinação do objeto de estudo, pois fornece a base necessária para um entendimento aprofundado e preciso do tema em questão. A partir da definição clara desses elementos, torna-se possível analisar suas características e utilidades, podendo-se avaliar o impacto e as implicações práticas de cada uma delas. Dessa forma, a conceituação inicial não é apenas uma etapa preparatória, mas um componente central que permeia e sustenta todo o processo investigativo.

2.1. CONCEITUAÇÃO DAS NOTAS COMERCIAIS

Para compreender adequadamente os elementos conceituais das Notas Comerciais, é fundamental tomar como ponto de partida a definição estabelecida pela Lei 14.195/21, promulgada em 26 de agosto de 2021. Essa legislação resultou da conversão em lei ordinária da Medida Provisória 1.040/21, também conhecida como Lei de Ambiente de Negócios, e visou simplificar a abertura de empresas e desburocratizar o ambiente empresarial, com impactos significativos nos campos do Direitos Empresarial, Civil e Processual Civil.

Entre as diversas inovações introduzidas, destaca-se a criação de um regime jurídico específico para as Notas Comerciais, definidas pelo artigo 45 da seguinte forma:

“Art. 45. A nota comercial, valor mobiliário de que trata o inciso VI do caput do art. 2º da Lei 6.385, de 7 de dezembro de 1976, é título de crédito não conversível em ações, de livre negociação, representativo de promessa de pagamento em dinheiro, emitido exclusivamente sob a forma escritural por meio de instituições autorizadas a prestar o serviço de escrituração pela Comissão de Valores Mobiliários.”

Essa definição estabelece parâmetros fundamentais das Notas Comerciais, destacados por Sérgio Campinho que afirma: “As notas comerciais, com efeito, consistem em títulos de crédito não conversíveis em ações, de livre negociação, representativos de promessa de pagamento em dinheiro”2. Assim, a princípio, podem-se destacar 4 características essenciais: (i) não conversibilidade em ações; (ii) possibilidade de livre negociação, abrangendo tanto distribuição pública quanto privada; (iii) representação de promessa de pagamento e (iv) pagamento em dinheiro.

Ainda, a partir dos itens (iii) e (iv), pode-se dizer que as Notas Comerciais são uma forma de financiamento das sociedades emitentes3, pois as Notas Comerciais são representativas de promessa de pagamento em dinheiro, na qual, por meio de sua emissão, a sociedade emitente adquire um empréstimo junto ao público tomador do título, permitindo que a sociedade consiga se capitalizar. Como consequência, são conferidos àqueles que subscreveram a Nota Comercial o direito de receber a promessa de pagamento feita pela emitente.

Fábio Ulhoa Coelho amplia a definição ao destacar outras características relevantes das Notas Comerciais:

“[...] é um valor mobiliário que pode ser emitido não somente por sociedades anônimas, mas também por cooperativas e limitadas (Lei nº 19.145/21, art. 46). Ela pode ser admitida à negociação em MVM (distribuição pública) ou não (distribuição particular). Quando é destinada à distribuição pública, deve ser atendida a regulamentação da CVM [...]. Conhecido por Commercial Paper, [...]”4.

Dessa forma, outras considerações importantes para a conceituação das Notas Comerciais são observadas, como a forma escritural (com registro eletrônico), os agentes emissores (sociedades anônimas, cooperativas e limitadas) e a determinação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) como responsável por regular a emissão desses instrumentos quando distribuídos publicamente.

Fábio Ulhoa Coelho também afirma que as Notas Comerciais podem ser conhecidas por Commercial Papers, no entanto, é preciso ter atenção a esse ponto. A denominação "Commercial Papers” é derivada da origem dessa modalidade representativa de promessa de pagamento, que surgiu nos Estados Unidos. Logo, ao trazer as Notas Comerciais para o Brasil, muitos mantiveram sua denominação na língua inglesa, existindo doutrinadores que as chamam de Notas Comerciais, Commercial Papers ou até Notas Promissórias Comerciais. Entretanto, não se pode confundir as Notas Comerciais com os Commercial Papers estadunidenses, pois apresentam diferenças em suas características e emissões, refletindo as particularidades de cada legislação nacional.

2.2. CATEGORIZAÇÃO: TÍTULO DE CRÉDITO OU VALOR MOBILIÁRIO

A partir das definições expostas anteriormente, é possível identificar a aparente existência de um impasse na categorização das Notas Comerciais, seja como título de crédito ou valor mobiliário. Autores como Fábio Ulhoa as definiam como valores mobiliários, enquanto outros, como Sérgio Campinho, as consideravam títulos de crédito. Ainda, a própria legislação contribui para essa incerteza. A Lei 10.303/01 incluiu as Notas Comerciais no rol de valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei 6.385/76. O mesmo faz a Lei 14.195/21, que, por meio de seu artigo 45, apresenta a definição de Notas Comerciais, afirmando em aposto explicativo que elas são “valores mobiliários de que trata o inciso VI, do caput do artigo 2º, da Lei 6.385/76”. Entretanto, o mencionado artigo 45 segue dispondo que esses instrumentos são títulos de crédito, como pode ser visto a seguir:

“Art. 45. A nota comercial, valor mobiliário de que trata o inciso VI do caput do art. 2º da Lei 6.385, de 7 de dezembro de 1976, é título de crédito não conversível em ações, de livre negociação, representativo de promessa de pagamento em dinheiro, emitido exclusivamente sob a forma escritural por meio de instituições autorizadas a prestar o serviço de escrituração pela Comissão de Valores Mobiliários.” (grifo nosso)

Essa ambiguidade pode ter implicações significativas para o mercado de capitais, pois se as Notas Comerciais forem classificadas como valores mobiliários, estarão sujeitas as regulamentações mais rigorosas e ao controle da CVM, oferecendo maior proteção aos investidores:

“De fato, a noção de valores mobiliários é basicamente instrumental, já que tem como finalidade demarcar a regulação estatal do mercado de capitais. Em outras palavras, o conceito de valor mobiliário é de grande importância no contexto do Direito Societário, pois delimita o âmbito de aplicação da Lei 6.385/1976 e da regulamentação administrativa editada pela CVM.

Nesse sentido, o legislador brasileiro acompanhou orientação de outros sistemas legislativos estrangeiros, que optaram por instituir órgãos específicos ou determinar a criação de agências reguladoras especializadas e independentes para regular o mercado de capitais, assim como por editar normas legais especiais sobre a matéria.”5

Por outro lado, caso sejam consideradas títulos de crédito, a emissão e a negociação deverão respeitar as legislações específicas e/ou o Código Civil, podendo haver menor supervisão regulatória. Diante disso, é crucial haver uma definição clara e consistente sobre a natureza das Notas Comerciais para garantir a segurança jurídica necessária aos instrumentos, emitentes e investidores.

Para dar início a essa discussão, é essencial destacar os conceitos de títulos de crédito e de valores mobiliários, a fim de compreender os significados desses termos. Com base nessa compreensão, pode-se apontar as diferenças entre ambos e como eles se relacionam, traçando um paralelo com as Notas Comerciais.

2.2.1. Conceito de Títulos de Crédito e Valores Mobiliários

O Código Civil brasileiro, no artigo 887, define título de crédito como “documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei”. Este conceito foi inspirado na definição trazida pelo Direito italiano, formulada por Cesare Vivante, um comercialista italiano do século XIX. Vivante definia o título de crédito como um “documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”6. A partir dessa definição, podia-se abstrair a cartularidade, a literalidade e a autonomia como características fundamentais desses instrumentos. No entanto, com a revolução da informática e a possibilidade de títulos de crédito escriturais (por meios eletrônicos), esse conceito ficou ultrapassado.

Diante desse cenário, Fábio Ulhoa Coelho apresenta um novo conceito, definindo o título de crédito como o “registro das informações que, em conformidade com a lei, individualizam um crédito passível de cobrança por execução forçada, na qual exceções pessoais não podem ser opostas a terceiro de boa-fé”7. Assim, podem-se destacar cinco características principais dos títulos de crédito: (i) esses instrumentos tratam de um crédito, concedido pelo credor ao devedor; (ii) as informações sobre o crédito devem estar em conformidade com a lei, ou seja, a legislação brasileira define suas características, que precisam ser respeitadas para que o documento tenha eficácia jurídica de título de crédito; (iii) os títulos de crédito devem individualizar um determinado crédito, especificando informações como valor, vencimento, garantias, sujeitos, etc.; (iv) esses instrumentos são títulos executivos extrajudiciais, permitindo ao credor mover execução judicial em face do devedor, em caso de inadimplemento, independentemente de uma ação prévia de conhecimento; e (v) as exceções pessoais são inoponíveis a terceiros de boa-fé, o que significa que o devedor não pode usar essas exceções como defesa no caso de ser judicialmente impelido a fazer o pagamento por terceiro de boa-fé adquirente do título (característica exclusiva dos títulos de crédito)8.

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A respeito dos valores mobiliários, seu conceito foi amplamente debatido por estudiosos do Direito em todo mundo, resultando, tradicionalmente, em dois sistemas distintos de conceituação. Em alguns países, como nos Estados Unidos, adotou-se um conceito mais abrangente de valores mobiliários, enquanto outros países, como França e Portugal, preferiram uma acepção mais restrita, considerando valores mobiliários apenas aqueles documentos expressamente previstos em lei9. Até 1998, o legislador brasileiro não havia definido os valores mobiliários de forma ampla, adotando o segundo sistema mencionado e optando por enumerar todos os documentos considerados valores mobiliários, por meio da Lei 6.385/7610.

A Medida Provisória 1.637/1998, posteriormente convertida na Lei 10.198/01, representou um marco ao conferir conceito abrangente aos valores mobiliários no Brasil. Inspirada no conceito de “security” do Direito estadunidense, a mencionada lei estabeleceu o seguinte:

“Art. 1o Constituem valores mobiliários, sujeitos ao regime da Lei no 6.385, de 7 de dezembro de 1976, quando ofertados publicamente, os títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.”

Com essa definição, qualquer contrato de investimento coletivo oferecido publicamente, que gere lucro proveniente do esforço do empreendedor ou de terceiros, passou a ser classificado como valor mobiliário, ampliando consideravelmente o alcance da legislação anterior.

Em 2001, em complementação às reformas promovidas na legislação das sociedades por ações, editou-se a Lei 10.303/01, que modificou a Lei 6.385/76. Essa modificação não apenas sistematizou um novo rol de valores mobiliários, mas também manteve o conceito mais abrangente introduzido pela Lei 10.198/01. Como resultado, o artigo 2º da Lei 6.385/76 permanece vigente com a seguinte redação:

“Art. 2o São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:

I - as ações, debêntures e bônus de subscrição;

II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;

III - os certificados de depósito de valores mobiliários;

IV - as cédulas de debêntures;

V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;

VI - as notas comerciais;

VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;

VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e

IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.” (grifo nosso)

Logo, além da adoção de conceito mais amplo, o legislador também apresentou um rol exaustivo de títulos e contratos considerados como valores mobiliários, promovendo uma fusão dos dois sistemas tradicionais de conceituação desses instrumentos. Observa-se que as Notas Comerciais estão inclusas nesse novo rol legislativo. No entanto, como já explicitado anteriormente, a legislação brasileira parece apresentar contradições a respeito de sua classificação.

2.2.2. Diferenças e Relações entre Títulos de Crédito e Valores Mobiliários

A partir dos conceitos apresentados de títulos de crédito e de valores mobiliários, é possível compreender o motivo pelo qual esses instrumentos são frequentemente confundidos, pois ambos representam um direito de crédito e visam facilitar a mobilização desse. Além disso, essa confusão é exacerbada pelo fato de que, antes da reestruturação do mercado financeiro em 1976, a doutrina comercialista classificava os valores mobiliários como uma espécie de título de crédito. Por exemplo, o jurista Philomeno J. da Costa chegou a conceituar valor mobiliário como “título de crédito negociável, representativo de direito de sócio ou de mútuo a termo longo, chamado também de título de bolsa”11.

No entanto, com a evolução do conceito de valores mobiliários, percebeu-se que esses instrumentos não se submetiam aos princípios do direito cambiário. Portanto, os doutrinadores passaram a tratá-los como institutos independentes, próprios e distintos12. Não há conexão lógica entre os conceitos de ambos os instrumentos, são dois sistemas distintos. O que define um papel como título de crédito é completamente diverso daquilo que o caracteriza, eventualmente, como valor mobiliário13.

Muitos autores tentaram definir o ponto principal de distinção entre os títulos de crédito e os valores mobiliários. Nesse sentido, Ary Oswaldo Mattos Filho destacou quatro pontos comumente mencionados pelos doutrinadores nessas tentativas: (i) volume de emissão (em massa ou individualizada); (ii) prazo entre emissão e resgate; (iii) fungibilidade; e (iv) função econômica. Mattos Filho argumenta contra o uso dos pontos (i) e (ii) para distinguir os títulos de crédito e os valores mobiliários:

“Ora, as debêntures, que pela doutrina brasileira são caracterizadas como títulos de crédito, podem ser emitidas a prazos variáveis. De outro lado, quando a Comissão de Valores Mobiliários pensou em permitir a emissão de commercial papers pelas sociedades anônimas, estava possibilitando a emissão de títulos a curto prazo. Ou seja, o prazo é irrelevante para qualquer classificação, visto que depende da vontade dos emitentes e tomadores.

Também é inservível a distinção feita entre os títulos de massa e os singulares, segundo a qual os primeiros se caracterizariam pela emissão de muitos títulos, sujeitos a uma regulamentação comum e emitidos em uma única operação. Primeiro, porque "muitos", segundo a expressão utilizada por Túlio Ascarelli, não é reveladora. Segundo, porque um comprador pode emitir "muitas" notas promissórias a um mesmo vendedor, com a cláusula de impossibilidade de desconto das mesmas; neste caso, embora muitos títulos de crédito tenham sido emitidos, não se criou um título de massa. Isto porque título de massa deve levar em consideração a massa de tomadores e não o volume de títulos emitidos.”14

Com relação ao ponto (iii), os doutrinadores afirmam que os valores mobiliários apresentam a característica de fungibilidade, condição que não se aplica aos títulos de crédito. Segundo essa visão, todos os instrumentos fungíveis seriam considerados valores mobiliários, enquanto os infungíveis, seriam classificados como títulos de crédito. Mattos Filho também aborda essa questão, afirmando:

“Aceito que a fungibilidade é o elemento caracterizador, temos que a debênture classicamente catalogada como título de crédito poderá passar à categoria dos valores mobiliários; e as ações ao portador, não-custodiadas, sejam consideradas títulos de crédito, se não dotadas da característica da fungibilidade. Parece, entretanto, que a fungibilidade pode ser um dos critérios, mas não o critério que distinga o valor mobiliário de outra categoria de bens, visto ser a fungibilidade uma categoria funcional que aproveita a outros valores que não somente os mobiliários.”15

O ponto (iv) parece ser o mais adequado para distinguir facilmente ambos os instrumentos, devido à distinção funcional evidente entre títulos de crédito e valores mobiliários. Os títulos de crédito surgiram como instrumentos de pagamento ou de prestação, no sentido obrigacional, criados para viabilizar e facilitar transferências seguras e rápidas. Por outro lado, os valores mobiliários são instrumentos de investimento ou representam o exercício do poder de controle empresarial, representando uma dívida16. Além disso, os valores mobiliários também são considerados títulos negociáveis e societários (emitidos por sociedades).

Após diferenciar ambos os instrumentos, é de suma importância, para essa discussão, destacar que os títulos de crédito e os valores mobiliários são figuras jurídicas que podem se sobrepor. Isso significa que um mesmo documento pode preencher todos os requisitos que definem um título de crédito e um valor mobiliário simultaneamente. Sobre essa possibilidade de sobreposição, Fábio Ulhoa Coelho afirma que existem quatro hipóteses de relação entre esses instrumentos: (i) há títulos de crédito que não podem ser classificados como valores mobiliários devido às suas estruturas, como as duplicatas e os cheques; (ii) há títulos de crédito que podem se transformar em valores mobiliários, quando utilizados para captar investimentos coletivos ofertados publicamente, como as Cédulas de Crédito Bancário e os Certificados de Recebíveis Imobiliários; (iii) Há títulos de crédito que são considerados, simultaneamente, valores mobiliários, como é o caso das debêntures; e (iv) há valores mobiliários que não podem ser enquadrados como títulos de crédito, como as ações e o bônus de subscrição emitido por uma sociedade anônima17.

2.2.3. Definição da Categoria das Notas Comerciais

A categorização das Notas Comerciais, conforme vista atualmente, resultou das diversas modificações legislativas responsáveis por definir os valores mobiliários no Brasil. Com a edição da Lei 6.385/76, e suas subsequentes alterações, a noção de valor mobiliário brasileiro adquiriu crescente autonomia, ganhando independência do conceito de título de crédito e alcançando seu auge com a consolidação de um conceito abrangente de valor mobiliário e a introdução do rol de documentos reconhecidos como tal.

Dessa forma, como consequência dessa autonomia, surgiram duas premissas: nem todo título de crédito constitui valor mobiliário, e vice-versa. No entanto, uma consequência menos óbvia dessa separação foi a possibilidade de um documento ser, simultaneamente, um valor mobiliário e um título de crédito. Segundo André Pitta, a intersecção entre os regimes desses instrumentos pode ocorrer das seguintes maneiras: (i) os títulos de créditos típicos, definidos em lei, podem constituir valores mobiliários típicos, elencados nos incisos I a VIII do artigo 2º da Lei 6.385/76; (ii) os títulos de crédito típicos podem constituir valores mobiliários atípicos, enquadrados na definição do inciso IX do mencionado artigo; (iii) os títulos de crédito atípicos, regidos somente pelo Código Civil, podem constituir valores mobiliários típicos; ou (iv) os títulos de crédito atípicos podem constituir valores mobiliários atípicos18.

Diante das conclusões apresentadas por Pitta, pode-se afirmar que as Notas Comerciais, assim como as debêntures, são grandes exemplos da intersecção entre os regimes dos títulos de crédito típicos e dos valores mobiliários típicos (atualmente, Fábio Ulhoa Coelho também concorda com essa afirmação19). A classificação das Notas Comerciais como valores mobiliários típico é bastante clara, uma vez que o conceito de valor mobiliário está atrelado ao rol disposto no artigo 2º da Lei 6.385/76. O legislador estabeleceu no inciso VI do mencionado artigo que esses instrumentos são considerados valores mobiliários para o Direito brasileiro, sendo assim considerados como típicos.

Para a classificação das Notas Comerciais como títulos de crédito, tomamos como base o conceito apresentado por Fábio Ulhoa Coelho, que destaca cinco características definidoras dos títulos de crédito, todas preenchidas pelas Notas Comerciais. Esses instrumentos representam uma promessa de pagamento concedida pelo emitente da Nota Comercial em favor de seu investidor. Ademais, as Notas Comerciais foram reguladas pela Lei 14.195/21, que estabeleceu requisitos específicos para sua emissão. Logo, as duas primeiras características descritas por Coelho foram preenchidas pelas Notas Comerciais.

A necessidade de individualização de um determinado crédito, por sua vez, também é facilmente preenchida, visto que o artigo 47 da Lei 14.195/21 exige que constem no termo constitutivo das Notas Comerciais informações como valor nominal, data de emissão, data de vencimento, garantias associadas e sujeitos envolvidos. Da mesma forma, preenche-se o requisito da executabilidade forçada dos instrumentos por meio do artigo 48 da mencionada Lei, que estabelece as Notas Comerciais como títulos executivos extrajudiciais. Por fim, as Notas Comerciais atendem ao requisito de inoponibilidade de exceções pessoais a terceiros de boa-fé, característico dos títulos de crédito, pois, ao serem transferidas, asseguram que o devedor não pode opor defesas pessoais contra o novo portador do título.

Portanto, o legislador brasileiro acertou ao tratar as Notas Comerciais como títulos de crédito e valores mobiliários simultaneamente. Embora essa dualidade possa parecer uma contradição à primeira vista, na realidade, não há conflito entre os conceitos. A aparente contradição surge da crença comum de que títulos de crédito e valores mobiliários são conceitos opostos, o que não é verdade. Assim, a categorização das Notas Comerciais, como ambos os tipos de instrumentos, reflete a evolução e a intersecção dos regimes jurídicos no Brasil, demonstrando como um instrumento pode atender a múltiplos requisitos legais, sem representar uma contradição real.

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Sobre o autor
João Vítor Lopes Cunha

Graduado na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP). Associado na área de Consultivo e Estratégia de Negócios do TN Advogados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA, João Vítor Lopes. Notas comerciais.: O reflexo da Lei nº 14.195/21 sobre esses instrumentos no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7926, 14 mar. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/112569. Acesso em: 27 abr. 2025.

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