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Notas comerciais.

O reflexo da Lei nº 14.195/21 sobre esses instrumentos no Brasil

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14/03/2025 às 08:18
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3. TRAJETÓRIA HISTÓRICA

Neste capítulo, aborda-se a trajetória das Notas Comerciais, evidenciando seu surgimento no mercado financeiro estadunidense como uma alternativa de instrumento para captação de recursos e sua expansão ao longo do território global. Inicialmente, explora-se o contexto global que favoreceu seu desenvolvimento, destacando as práticas comerciais e financeiras que moldaram sua funcionalidade e regulamentação. Em seguida, analisa-se o processo de introdução das Notas Comerciais no Brasil, considerando as particularidades do ambiente econômico nacional, sua evolução ao longo das décadas até a promulgação da Lei 14.195/21, que consolidou sua relevância como ferramenta moderna de captação de recursos. Assim, busca-se compreender como esse instrumento se tornou parte integrante do mercado global e brasileiro.

3.1. AS NOTAS COMERCIAIS NO MUNDO

As Notas Comerciais ou, nesse caso, Commercial Papers, tiveram sua origem nos Estados Unidos durante o início do século XIX. Na época, o contexto do país era de um sistema bancário organizado em desenvolvimento e de transações financeiras realizadas, principalmente, por meio de letras de câmbio, consideradas títulos multi nominativos (constavam na letra de câmbio as informações a respeito dos vendedores e dos compradores). A partir desse cenário, a solução encontrada para tornar os títulos multi nominativos em valores mobiliários de credor único, foi a criação dos Commercial Papers, com o objetivo principal de facilitar e potencializar a obtenção de capital.

Desta forma, o mercado de Commercial Papers já se mostrava relevante no século XIX e com grande potencial20, sendo as limitações bancárias da época (intensificadas pela Lei Bancária estadunidense) um dos principais motivos para isso. Os bancos regionais muitas vezes não tinham condições para suprir a demanda de crédito sazonal, sobretudo pela proibição de obter recursos em outras jurisdições. Assim, algumas regiões enfrentavam dificuldades para oferecer recursos, enquanto outras possuíam excesso de capital, apresentando tendências de juros baixos. Logo, os Commercial Papers passaram a desempenhar um importante papel no intercâmbio de capital, viabilizando que empresas de regiões com escassez de capital acessassem mercados mais líquidos e com taxas mais baixas.

Neste período, o pioneiro e principal nome do mercado de Commercial Papers foi Marcus Goldman, um imigrante alemão que se mudou para Nova Iorque com sua família em 1869. Goldman iniciou suas atividades comprando Commercial Papers dos comerciantes que buscavam capital e vendendo-as aos bancos, criando, assim, o primeiro mercado desses instrumentos nos Estados Unidos (e no mundo). Em 1885, fundou a empresa Goldman, Sachs & CO, que se tornou a líder de vendas de Commercial Papers no mercado já antes de 1896, ano em que se juntou à Bolsa de Valores de Nova Iorque (New York Stock Exchange)21. Posteriormente, o Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos passaria a negociar Commercial Papers em conjunto aos títulos do Tesouro Nacional (Treasuries), até o período da Segunda Guerra Mundial, com o intuito de controlar o nível de reserva monetária em circulação entre os bancos no país22.

Durante as décadas de 1950 e 1960, foi possível observar um crescimento expressivo do mercado de Commercial Papers, expandindo-se como um meio de captação de recursos de curto prazo. Foi na década de 1950 que esse mercado alcançou novos países, sendo o Canadá o segundo a desenvolvê-lo, impulsionado especialmente pelo setor automobilístico que conectava fornecedores canadenses e montadoras estadunidenses.

Em 1970, a falência da Penn Central Transportation Company, a sexta maior empresa dos Estados Unidos e a maior ferrovia do país na época, marcou um grande ponto de inflexão na história dos Commercial Papers. A empresa tinha 87 milhões de dólares em Commercial Papers emitidos em default. O pânico gerado entre os investidores fez com que houvesse uma onda de resgates dos Commercial Papers de todas as empresas do país. Essa situação representava uma grande ameaça, já que muitas vezes as perdas potenciais para as empresas superavam seus próprios capitais.

Nesse cenário, os Commercial Papers passaram a ser classificados pelas agências de rating dos Estados Unidos, sendo a primeira classificação realizada pela Moody's Investor Services em 197123. A classificação dos Commercial Papers pelas agências de rating, a elevação das taxas de juros básicas no país, as baixas taxas pagas para a distribuição do título e a criação de novos instrumentos financeiros são motivos que levaram ao “boom” do mercado ainda na década de 1970, com o crescimento do volume de emissões desses papéis perdurando até 1990.

Em 1986, as Notas Comerciais chegaram à Inglaterra, porém, com algumas limitações impostas pelo Bank of England, tais como: (i) necessidade de registro das empresas emissoras; (ii) imposição de condições mínimas de patrimônio líquido; e (iii) imposição de valores mínimos dos títulos individuais. Já em 1987 as Notas Comerciais foram introduzidas no mercado japonês, após muitas divergências. Dentre as premissas das Notas Comerciais japonesas, estão que (i) as emissões deveriam ser coordenadas e distribuídas por entidades financeiras autorizadas; (ii) não havia necessidade de disclosure, mas exigia-se a elaboração de prospecto simples; e (iii) as empresas que não atingissem um determinado padrão, pré-determinado, deveriam estabelecer uma backup line (linha disponibilizada pelos bancos para garantir os investidores)24.

3.2. AS NOTAS COMERCIAIS NO BRASIL

A primeira operação envolvendo um título semelhante às Notas Comerciais no Brasil foi realizada pela indústria alemã Mannesmann, na década de 6025. Nessa época, o título emitido foi o Commercial Paper, que adotou no Brasil a forma de nota promissória. Essas emissões tiveram papel essencial na capitalização de recursos em massa pela indústria alemã, no entanto, o governo brasileiro considerou que a emissão dos Commercial Papers pela Mannesmann no Brasil representava a criação de uma “casa da moeda paralela”, sendo então a emissão interrompida.

É válido destacar a afirmação de Roberto Teixeira da Costa, o primeiro presidente da CVM e um dos responsáveis pela sua organização e instalação, que abordou sobre esse episódio na Revista Relações com Investidores:

“Mas o ano de 1965 também teve outros importantes acontecimentos no mundo financeiro. Vale lembrar que o pedido de concordata de diversas companhias que operavam ilegalmente no chamado mercado paralelo de emissão de títulos de crédito, trazendo enormes prejuízos para milhares de indivíduos não esclarecidos sobre os riscos daquele tipo de aplicação, que culminou com o caso Mannesmann, com projeção internacional que não honrou no vencimento títulos de sua emissão”26.

Além disso, o governo brasileiro editou a Lei 4.728/65, que, por meio de seu artigo 17, passou a proibir e penalizar os Commercial Papers em curso. Desta forma, a Mannesmann foi obrigada a recorrer novamente aos empréstimos bancários convencionais. Ademais, as disposições da Lei 4.728/65 descaracterizaram os títulos privados com objetivo de circulação de capital produtivo, já que a legislação estabeleceu que eles deveriam ter a coobrigação de uma instituição financeira para sua colocação no mercado, sob pena de perda do acesso aos bancos oficiais, desestimulando a emissão de novos títulos.

O período entre 1966 e 1976 foi extremamente importante para o mercado brasileiro de títulos privados do ponto de vista legislativo e regulamentar, tendo impactos, inclusive, para as Notas Comerciais. Em 1966, foi promulgado o Decreto 57.663/66 que introduziu ao ordenamento jurídico brasileiro a Lei Uniforme de Genebra (LUG). Esta, dispunha sobre as letras de câmbio e as notas promissórias, buscando uniformizar esses instrumentos nos ordenamentos jurídicos de diversos países. A LUG, por consequência, era aplicável às Notas Comerciais, uma vez que tinham sido equiparadas às notas promissórias no Brasil.

No entanto, diversos artigos da LUG foram introduzidos ao direito brasileiro com reservas, uma vez que já existia no país o Decreto 2.044/08 que regulava as letras de câmbio e as notas promissórias, utilizando inspirações no direito cambiário alemão. Desse modo, pode-se afirmar que apesar das evoluções das legislações nesse período, o país não conseguiu oferecer um ambiente legal propício para a expansão das Notas Promissórias, e consequentemente das Notas Comerciais, por apresentar certa dubiedade quanto à regulamentação da nota promissória, pois duas legislações diferentes eram aplicáveis a esses instrumentos: (i) sobre as matérias da LUG introduzidas sem reservas pelo Decreto 57.663/66, prevalecia a aplicação da LUG; e (ii) sobre as matérias da LUG introduzidas com reservas pelo Decreto 57.663/66, prevalecia a aplicação do Decreto 2.044/08.

Em 1976, o Brasil editou a Lei 6.385/76 para dispor sobre o mercado de valores mobiliários, representando uma grande transformação no mercado de capitais brasileiro. Essa legislação foi responsável pela criação da CVM, um órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, cuja principal função é fiscalizar, regular e desenvolver o mercado de valores mobiliários no país. Desta forma, seria possível estabelecer um mercado de capitais mais robusto e bem regulamentado, trazendo desenvolvimento econômico, facilidade na captação de recursos, incentivos de investimento e expansão dos negócios no país.

Somente em 1990 que as notas promissórias, e consequentemente as Notas Comerciais, passaram a ser encaradas como valores mobiliários. O Conselho Monetário Nacional (CMN) publicou a Resolução nº 1.723, autorizando a emissão de notas promissórias, como valor mobiliário, pelas sociedades por ações, desde que destinadas à oferta pública. Ainda, autorizou a CVM a regulamentar essas emissões. Assim, ainda no fim de 1990, a CVM regulamenta a emissão de notas promissórias para distribuição pública, por meio da Instrução nº 134/90. Porém, essa instrução não se mostrou atraente para o mercado por conta do alto custo de emissão e das diversas limitações impostas para tal, sendo elaborada uma nova instrução (Instrução CVM nº 155/91) no ano seguinte com o intuito de simplificar os procedimentos de emissão e eliminar certos requisitos da antiga instrução.

Em 1994, após mais uma alteração realizada por meio da Portaria do Ministério da Fazenda nº 331, finalmente houve uma reação positiva do mercado, ocorrendo a primeira operação verificada com a emissão da Companhia Brasileira de Projetos e Obras (CBPO) no valor de 20,2 milhões de reais27.

Em 2001, a Lei 6.385/76 sofreu diversas alterações promovidas pela promulgação da Lei 10.303/01. A partir desta, incluíram-se as Notas Comerciais ao rol de valores mobiliários dispostos no artigo 2º da Lei 6.385/76, mais especificamente, ao inciso VI. Essa foi a primeira vez que a legislação brasileira tratou as Notas Comerciais de forma distinta das notas promissórias. No entanto, tal distinção não produziu muitos efeitos, uma vez que as Notas Comerciais continuaram a seguir o regime jurídico das notas promissórias.

Nos anos seguintes, a CVM prosseguiu com a publicação de instruções que impactavam as emissões das Notas Comerciais, como é o caso (i) da Instrução nº 422 de 2005, que dispõe acerca da emissão de Nota Comercial do Agronegócio para distribuição pública e dos registros de oferta pública de distribuição e de emissora dessas; (ii) da Instrução nº 480 de 2009, que dispõe sobre o registro de emissores de valores mobiliários admitidos à negociação em mercados regulamentados de valores mobiliários; e (iii) da Instrução CVM nº 566 de 2015, que dispõe sobre a oferta pública de distribuição de nota promissória. No entanto, até 2021, as Notas Comerciais não dispunham de ordenamento jurídico próprio, sendo aplicável a esses instrumentos as regras da Instrução CVM nº 566/15.

Em 2021, foi promulgada a Lei 14.195/21, já citada no capítulo anterior, que estabeleceu um regime jurídico próprio para as Notas Comerciais entre seus artigos 45 e 51, afastando as Notas Comerciais do regime jurídico das notas promissórias e “criando” esse “novo” título no mercado brasileiro. A partir dessa legislação, determinou-se que a oferta de Notas Comerciais deveria atender às regras aplicáveis às ofertas públicas de valores mobiliários similares, dispostos, na ocasião, nas Instruções CVM nº 400/03 e nº 476/09, revogadas posteriormente pela Resolução CVM nº 160 em 2022.


4. CARACTERÍSTICAS

Neste capítulo, o estudo das Notas Comerciais será aprofundado, explorando suas características mais notáveis. Anteriormente neste trabalho, diversas características inerentes a esses instrumentos já foram abordadas, por serem aspectos fundamentais à conceituação e à definição das Notas Comerciais, como seus possíveis emitentes e livre negociação. No entanto, esses pontos serão retomados e novas características, ainda não explicitadas, serão introduzidas, conforme dispostas pela Lei 14.195/21 ao estabelecer regime jurídico próprio às Notas Comerciais.

4.1. EMITENTES

No início, por terem sido implementadas no mercado brasileiro sob forma equiparada às notas promissórias, as Notas Comerciais só podiam ser emitidas por uma única espécie de emitente: as sociedades anônimas (únicas autorizadas a emitir notas promissórias na época). No entanto, com o tempo, a CVM começou a permitir a emissão de Notas Comerciais por outros tipos de empresas.

Em 2009, houve a primeira menção de emissão das Notas Comerciais por sociedades limitadas pela CVM, que editou a Instrução CVM nº 480/09. Esta, por meio de seu artigo 33, caput, estabeleceu que poderiam se organizar sob a forma de sociedade anônima ou limitada os emitentes que realizassem emissões exclusivamente de Notas Comerciais e cédulas de crédito bancário, para distribuição ou negociação pública. As cooperativas eram brevemente mencionadas, sendo autorizadas apenas nos casos de cooperativas agrícolas que emitissem, exclusivamente, Notas Comerciais do Agronegócio, para distribuição ou negociação pública.

Posteriormente, a CVM promulgaria a Instrução CVM nº 566/15, passando a autorizar a emissão, para distribuição pública, de notas promissórias pelas sociedades anônimas e sociedades limitadas. Desta forma, como o regime jurídico das Notas Comerciais eram equiparadas aos das notas promissórias, a CVM também estendeu essa possibilidade às Notas Comerciais. As cooperativas, por sua vez, poderiam emitir notas promissórias para distribuição pública somente quando tivessem por atividade a produção, comercialização, beneficiamento ou industrialização de produtos ou insumos agropecuários, máquinas ou implementos utilizados na atividade agropecuária.

Diante desse cenário, pode-se dizer que a Lei 14.195/21 não realizou uma grande inovação quando estabeleceu o rol de emitentes das Notas Comerciais, constituído pelas sociedades anônimas, sociedades limitadas e cooperativas (artigo 46, caput). Como explicitado, as emissões de Notas Comerciais por esses emitentes já era algo defendido e aplicado pelo mercado antes da edição da nova Lei, além da prática já ser aceita e regulada pela própria CVM. Contudo, não havia qualquer tipo de previsão legal específica sobre o assunto. Ademais, a Lei 14.195/21 não especificou qualquer condição para a emissão das Notas Comerciais pelas sociedades anônimas, limitadas e cooperativas, sendo, portanto, esse rol de emitentes mais abrangente que as situações reguladas pela CVM.

4.2. COMPETÊNCIA DE DELIBERAÇÃO SOBRE EMISSÃO

Por meio do parágrafo único do artigo 46, a Lei 14.195/21 determina competência legal específica para a deliberação sobre a emissão das Notas Comerciais, dispondo que essa competência pertence aos órgãos de administração da emitente. Logo, vale destacar a definição de Tavares Borba do que são os “órgãos de administração”, mencionados na redação do parágrafo único:

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“Os órgãos administrativos são os que dão vida à sociedade, fazendo-a funcionar. São dois esses órgãos: o conselho de administração e a diretoria.

O conselho de administração tem funções deliberativas e de ordenação interna, enquanto a diretoria exerce atribuições efetivamente executivas, as quais, aliás, são de sua competência exclusiva e indelegável”28.

Desta forma, a competência para deliberação sobre a emissão das Notas Comerciais pode ser atribuída tanto ao Conselho de Administração quanto à Diretoria. Entretanto, a legislação brasileira não define de maneira explícita qual desses órgãos administrativos é diretamente responsável pela deliberação quando ambos coexistem. Essa determinação fica a cargo da estrutura organizacional específica de cada emitente, conforme estabelecido em seus atos constitutivos, seja ato cooperativo, contrato social ou estatuto social, dependendo do tipo de emitente.

Por exemplo, nas sociedades anônimas, a presença de ambos os órgãos - conselho de administração e diretoria - é obrigatória apenas para companhias abertas ou de capital autorizado, conforme § 2º do artigo 138 da Lei 6.404/76. Nas sociedades anônimas fechadas, a constituição de um conselho de administração é facultativa. Assim, nos casos de sociedades anônimas fechadas que possuam apenas a diretoria como órgão de administração, a competência para a deliberação sobre a emissão das Notas recairá exclusivamente sobre a diretoria. No entanto, caso um conselho de administração seja constituído, a competência dependerá do que estiver previsto no Estatuto Social, que especificará qual órgão ou administrador possui os poderes de representação necessários para aprovar dívidas e/ou financiamentos.

Ainda, nos casos em que a emitente não possua nenhum dos órgãos de administração mencionados, ou quando seus atos constitutivos apresentarem disposição nesse sentido, a competência será atribuída ao administrador da emitente, de acordo com os poderes de representação estabelecidos no ato constitutivo.

4.3. FORMA ESCRITURAL E TITULARIDADE

Uma importante inovação trazida pela Lei 14.195/21 foi a alteração da forma das Notas Comerciais. Antes de sua promulgação, quando o regime jurídico das Notas Comerciais era equiparado ao das notas promissórias, havia uma obrigatoriedade das Notas Comerciais serem emitidas sob a forma cartular, ou seja, por meio de cártulas físicas. Essa exigência representava uma grande barreira prática, uma vez que a emissão de Notas Comerciais, nos casos em que se destinam a circulação em mercado, normalmente representam uma grande quantidade de títulos. Logo, a cartularidade dificultava a emissão em grandes quantidades das Notas Comerciais.

A partir da promulgação da Lei 14.195/21, a emissão das Notas Comerciais passou a ser exclusivamente escritural, ou seja, inexiste documento físico que represente as Notas Comerciais, estando elas registradas por meio dos sistemas eletrônicos das instituições autorizadas pela CVM a prestar os serviços de escrituração. A forma escritural está disposta na definição de Nota Comercial trazida pelo legislador, por meio do artigo 45 da Lei 14.195/21, tornando-se característica essencial desses instrumentos. Assim, a questão da cartularidade é superada e as Notas Comerciais são modernizadas, com o intuito de acompanhar a evolução da sociedade e do mercado, que estão cada vez mais informatizados.

Ademais, a Lei 14.195/21 também trata sobre a forma escritural em seu artigo 49, quando dispõe que a titularidade das Nota Comerciais será atribuída exclusivamente por meio de controle realizado nos sistemas informatizados do escriturador ou no depositário central, quando as Notas Comerciais forem objeto de depósito centralizado.

4.4. TERMO DE EMISSÃO

Conforme explicado anteriormente, a Lei 14.195/21 inovou significativamente ao retirar a cartularidade das Notas Comerciais. Em decorrência dessa mudança, não há mais emissão de Notas Comerciais por meio de cártulas físicas, como ocorria anteriormente. Atualmente, as emissões são realizadas por meio de um Termo de Emissão, que pode ser eletrônico/digital, registrado em alguma central depositária. O Termo de Emissão, nada mais é do que um documento formal, que estabelece os termos e condições sob os quais um título ou valor mobiliário será oficialmente constituído, além de definir os direitos e obrigações dos titulares e do emitente. Dessa forma, assegura transparência e segurança para todas as partes envolvidas na operação, detalhando as condições do investimento e as responsabilidades assumidas por cada parte.

Segundo o artigo 47, caput, da mencionada Lei, o Termo de Emissão das Notas Comerciais deve apresentar, obrigatoriamente, a descrição explícita das seguintes características: (i) a denominação “Nota Comercial”; (ii) nome/razão social do emitente; (iii) o local e a data de emissão; (iv) o número da emissão e a série; (v) o valor nominal das Notas Comerciais; (vi) o local de pagamento; (vii) a data e as condições de vencimento; e (viii) a taxa de juros (fixa ou flutuante, também sendo admitida a capitalização).

Ademais, há características específicas que podem ser estipuladas para as Notas Comerciais, dependendo do caso. Quando tais características existirem, elas também devem obrigatoriamente constar no Termo de Emissão dos instrumentos: (a) a divisão das Notas Comerciais emitidas em séries; (b) a descrição da garantia real ou fidejussória; (c) a cláusula de pagamento de amortização e de rendimento; (d) a cláusula de correção por índice de preço; e (e) os aditamentos e retificações.

A partir disso, é possível extrair a autorização que o legislador deu para a aplicação de certas cláusulas às Notas Comerciais, como é o caso da compatibilidade delas com qualquer garantia real ou fidejussória, da aplicação de taxa de juros e de correção por índice de preço e da divisão em séries das Notas Comerciais. Ainda, no tocante à divisão em séries, cabe destacar que as Notas Comerciais de uma mesma série nunca poderão ter valores nominais diferentes, nem conferir direitos diferentes aos seus titulares, devendo todas as Notas Comerciais de uma mesma série serem semelhantes.

4.5. ADITAMENTOS E RETIFICAÇÕES AO TERMO DE EMISSÃO

A Lei 14.195/21, em seu artigo 47, § 2º, prevê a possibilidade das características das Notas Comerciais mencionadas no subcapítulo 4.3 deste trabalho serem alteradas após a constituição. Para isso, a legislação estabelece que a alteração depende da aprovação, em assembleia, por maioria simples dos titulares das Notas Comerciais em circulação. No entanto, o próprio termo de emissão das Notas Comerciais pode prever um quórum de aprovação diferente do previsto na Lei 14.195/21, desde que seja maior. Essa fixação do quórum mínimo de aprovação em, pelo menos, a maioria simples dos titulares é extremamente importante para garantir segurança jurídica aos investidores das Notas Comerciais.

Ainda, a mencionada Lei estabelece, por meio do § 3º do artigo 47, que as regras da assembleia geral de debenturistas (previstas na Lei 6.404/76), como as de convocação e funcionamento, serão aplicáveis também à assembleia de titulares das Notas Comerciais. Essa disposição superou a discussão que havia sobre o funcionamento de tal assembleia e seu poder vinculante perante cada investidor individualmente, uma vez que as Notas Comerciais se baseavam no regime jurídico das Notas Promissórias antes da promulgação da Lei 14.195/21.

4.6. VALOR NOMINAL E REMUNERAÇÃO

Conforme já visto anteriormente, é obrigatório que o Termo de Emissão das Notas Comerciais contenha a indicação do valor nominal do instrumento. Este nada mais é do que o valor monetário atribuído à Nota Comercial no momento de sua emissão, representando o valor que será pago ao investidor na data de vencimento da nota. Além disso, o valor nominal é importante para fins de cálculo da remuneração, pois é sobre ele que incidem as taxas de juros previstas no Termo de Emissão.

Já sobre o tema da remuneração, a Lei 14.195/21 trouxe um importante avanço para as Notas Comerciais, afastando-as das notas promissórias e aproximando-as das debêntures. A remuneração das Notas Comerciais é calculada por meio da aplicação de taxa de juros sobre o valor nominal do instrumento. Essas taxas podem ser fixas ou flutuantes, ou seja, podem ser: (i) taxas específicas e determinadas no próprio Termo de Emissão, proporcionando certa previsibilidade já que o investidor saberá exatamente quanto receberá ao final do prazo de vencimento; ou (ii) taxas vinculadas a índices de referência, por exemplo, Selic e CDI, fazendo com que o rendimento possa aumentar ou diminuir conforme as variações apresentadas pelo índice escolhido.

Ademais, a Lei 14.195/21 admitiu a capitalização no contexto da remuneração das Notas Comerciais. Portanto, criou-se a possibilidade dos juros acumulados serem incorporados ao valor nominal do instrumento para fins de cálculo de rendimentos, resultando em juros compostos. Assim, pode-se aumentar significativamente o valor final recebido pelo investidor, deixando as Notas Comerciais ainda mais flexíveis e atraentes para o mercado.

Outro ponto relevante, alterado pela mencionada lei, é o fato de que até a sua promulgação em 2021, em virtude da natureza semelhante às notas promissórias, havia a impossibilidade do pagamento do valor devido pelo emitente das Notas Comerciais ao investidor ser realizado de forma periódica. Logo, o pagamento era realizado uma única vez e de forma integral ao fim do prazo máximo de vencimento. Na prática, a amortização das Notas Comerciais ocorria no mercado durante esse período, mas era bastante dificultosa. Devido à impossibilidade de pagamentos periódicos, as empresas realizavam emissões de Notas Comerciais divididas em numerosas séries, contendo cada uma um prazo de vencimento distinto, na tentativa de simular uma amortização periódica.

Com a chegada da Lei 14.195/21, o legislador, de forma bastante clara e evidente, permitiu que as Notas Comerciais contenham cláusulas de pagamento de amortização. Em outras palavras, o emitente pode acordar com seu investidor uma maneira de realizar o pagamento do valor nominal e dos rendimentos das Notas Comerciais de maneira parcial e periódica. Portanto, atualmente é possível prever no próprio Termo de Emissão da Nota Comercial que seu valor nominal, seus rendimentos ou ambos sejam amortizados em quantidade de parcelas e a periodicidade específicas, determinadas pelos envolvidos.

Ainda, é válido mencionar que as Notas Comerciais podem ter seu valor nominal e seus rendimentos atualizados, por meio de correção monetária conforme a inflação. Essa faculdade adiciona uma possibilidade de proteção ao poder de compra do investidor, garantindo que o valor real de seu investimento não seja prejudicado pelo decorrer do tempo, principalmente nos casos em que a Nota Comercial for emitida como um título de longo prazo ou em economias que estejam enfrentando períodos de crise com alta inflação.

4.7. EMISSÃO

A partir do disposto nos artigos 50 e 51 da Lei 14.195/21, pode-se inferir que o legislador autorizou duas modalidades de emissão das Notas Comerciais: pública e privada. Cada tipo de emissão possui características específicas. Este trabalho abordará as duas formas de emissão, destacando suas particularidades e implicações.

4.7.1. Emissão Pública

O artigo 50 da Lei 14.195/21 destaca a possibilidade de emissão pública das Notas Comerciais, dispondo o seguinte:

“Art. 50. A Comissão de Valores Mobiliários poderá estabelecer requisitos adicionais aos previstas nesta Lei, inclusive a eventual necessidade de contratação de agente fiduciário, relativos à nota comercial que seja:

I - ofertada publicamente; ou

II - admitida à negociação em mercados regulamentados de valores mobiliários”.

Com base nesse artigo, compreende-se a viabilidade das emissões públicas das Notas Comerciais e a competência da CVM para regulamentá-las. A CVM possui autoridade para regulamentar as emissões públicas desses instrumentos, sendo autorizada pela legislação a exigir requisitos adicionais, além dos determinados pela Lei 14.195/21.

Em um ofício publicado pela CVM, foi estabelecido que a emissão pública desses instrumentos de crédito não mais se assemelha à emissão das Notas Promissórias, reguladas pela Resolução CVM nº 163/22. As Notas Comerciais devem respeitar o regramento aplicável às ofertas públicas de distribuição primária ou secundária de valores mobiliários e à negociação dos valores mobiliários ofertados nos mercados regulamentados. Isso significa que serão aplicadas as disposições da Resolução CVM nº 160/22, de 13 de julho de 2022, com as alterações estabelecidas pelas Resoluções CVM nºs 179/22, 180/23 e 183/23.

A emissão pública permite alcançar simultaneamente diversos destinatários, além de apresentar como características: (i) utilização de material publicitário; (ii) procura de investidores indeterminados para as Notas Comerciais; (iii) consulta sobre a viabilidade da oferta ou a coleta de intenções de investimento junto a potenciais subscritores ou adquirentes indeterminados; (iv) negociação realizada em loja, escritório, estabelecimento aberto ao público, internet, rede social ou aplicativo, dirigida a subscritores ou adquirentes indeterminados; e (v) prática dos atos descritos de “ii” a “iv” ainda que os destinatários sejam individualmente identificados, quando consequência de comunicação padronizada e massificada.

Nesse tipo de emissão, é obrigatório que a oferta seja previamente submetida a registro ou seja objeto de dispensa junto à CVM. A emissão deve contar com a coordenação de uma entidade registrada para atuar como coordenadora de oferta de valores mobiliários. Ainda, devem ser acompanhadas de um prospecto, documento que contém todas as informações necessárias para um investidor, e uma lâmina, documento que sintetiza o conteúdo do prospecto, apresenta as características essenciais da oferta e a natureza de seus riscos.

4.7.2. Emissão Privada

As emissões privadas de Notas Comerciais estão legalmente previstas no artigo 51 da Lei 14.195/21, que estabelece quatro requisitos que devem ser atendidos pelos sistemas de serviço de escrituração utilizados na emissão desses instrumentos. O primeiro, exige a “comprovação da observância de padrões técnicos adequados, em conformidade com os Princípios para Infraestruturas do Mercado Financeiro do Bank for International Settlements (BIS), inclusive no que diz respeito à segurança, à governança e à continuidade de negócios”.

Esses princípios do BIS foram desenvolvidos após a crise do subprime estadunidense, uma grande crise financeira ocorrida em meados de 2007, causada pela concessão excessiva de créditos imobiliários e falhas na regulação do sistema financeiro, que autorizavam a transferência de créditos hipotecários. Os objetivos dos princípios são harmonizar as normas existentes e mitigar o risco sistêmico do mercado financeiro. Para melhor compreensão da intenção do legislador ao destacar os temas da segurança, governança e continuidade de negócios, destacam-se os seguintes princípios:

“Governança: Uma infraestrutura do mercado financeiro deverá contar com mecanismos de governança que sejam claros e transparentes, que fomentem a segurança e a eficiência da própria infraestrutura, e que respaldem a estabilidade do sistema financeiro em geral, outras considerações de interesse público, e os objetivos das partes interessadas.

Risco geral de negócios: Uma infraestrutura deverá identificar, controlar e gerir seu risco empresarial geral e manter ativos líquidos suficientes financiados através de seu patrimônio para cobrir possíveis perdas gerais do negócio de maneira que possa continuar prestando serviços como empresa em funcionamento. Esta quantidade deverá ser suficiente em todo momento para garantir a reestruturação ou liquidação ordenada das atividades e serviços mais importantes da infraestrutura durante um período de tempo adequado.

Risco Operacional: Uma infraestrutura deverá identificar todas as fontes possíveis de risco operacional, tanto internas quanto externas, e minimizar seu impacto através do uso de sistemas, controles e procedimentos adequados. Os sistemas deverão dispor de um alto grau de segurança e confiabilidade operacional, e ter uma capacidade adequada e versátil. Os planos de continuidade do serviço deverão ter como objetivo a recuperação oportuna das operações e o cumprimento de obrigações da infraestrutura, incluindo-se o caso em que se produzam alterações de grande escala”29.

O segundo requisito, previsto no inciso II do já citado artigo, exige a “garantia de acesso integral às informações mantidas por si ou por terceiros por elas contratados para realizar atividades relacionadas com a escrituração”. Enquanto o inciso III, terceiro requisito, exige garantia de acesso amplo a informações claras e objetivas aos participantes do mercado, sempre observadas as restrições legais de acesso a informações. Quanto ao último requisito previsto na lei, trata da “observância de requisitos e emprego de mecanismos que assegurem a interoperabilidade com os demais sistemas de escrituração autorizados pela Comissão de Valores Mobiliários”.

Adicionalmente, a lei proíbe que instituições autorizadas a prestar serviços de escrituração façam a escrituração de títulos dos quais sejam credoras ou emissores, direta ou indiretamente. Por fim, provavelmente a maior novidade trazida pela Lei 14.195/21 em relação à emissão privada é a autorização, exclusivamente para este tipo de emissão, de que as ofertas de Notas Comerciais contenham cláusula de conversibilidade em participações societárias, exceto para sociedades anônimas (§ 2º, do artigo 51).

4.8. VENCIMENTO

Desde a chegada das Notas Comerciais ao Brasil até a publicação da Instrução CVM nº 566 em 2015, as Notas Comerciais respeitavam duas possibilidades de prazo máximo para vencimento: o prazo de 360 dias, no caso de emissão por empresas de capital aberto, e o prazo de 180 dias, nos casos de emissão por companhias de capital fechado. Por isso, as Notas Comerciais eram consideradas títulos de crédito de curto prazo, uma vez que nunca ultrapassavam o prazo de um ano.

No entanto, a CVM estabeleceu, a partir de 2015, que o prazo máximo de vencimento deveria ser de até 360 dias a contar da data de emissão, independente da emitente. Ainda, passou a autorizar a ampliação do prazo máximo de vencimento das Notas Comerciais por meio do § 1º, do artigo 5º, da Instrução CVM nº 566/15, desde que duas condições fossem cumulativamente cumpridas: (i) as notas deveriam ter sido objeto de oferta pública de distribuição com esforços restritos (oferta restrita); e (ii) as notas deveriam conter a presença de agente contratado para representar e zelar pela proteção dos interesses e direitos da comunhão dos titulares das notas (agente fiduciário). Uma vez cumpridos esses requisitos, as Notas Comerciais deixavam de se sujeitar ao prazo máximo mencionado pela CVM, podendo o emitente determinar prazo maior de vencimento.

Atualmente, com as disposições da Lei 14.195/21, não há mais prazo máximo de vencimento determinado para as Notas Comerciais, podendo elas serem de curto, médio ou longo prazo, conforme o desejo de seu emitente. Desta forma, elas mostram-se bastante flexíveis para atender as necessidades de seu emitente, podendo, então, o prazo de vencimento ser “moldado” da maneira que melhor satisfaça a situação prática. Ainda, cabe destacar que no caso de inadimplemento de obrigação constante no termo de emissão, as Notas Comerciais poderão ser consideradas vencidas, mesmo antes do prazo previsto para tal.

4.9. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL

Mais uma característica relevante das Notas Comerciais, é a possibilidade de sua execução extrajudicial. Segundo consta no artigo 48, caput, da Lei 14.195/21, elas podem ser executadas independente de protesto, sendo necessário apenas a certidão emitida pelo escriturador das Notas Comerciais (ou pelo depositário central, quando o título for objeto de depósito centralizado). Essa disposição é bastante relevante para o mercado, uma vez que não é obrigatório existir garantias reais ou fidejussórias no Termo de Emissão das Notas Comerciais. Assim, a desnecessidade de protesto para execução é uma importante facilidade para os investidores, tornando todo o processo de execução mais rápido e menos custoso.

4.10. EXISTÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA DAS NOTAS COMERCIAIS

A Lei 14.195/21 estabelece diversos requisitos para a emissão de Notas Comerciais, incluindo quem está autorizado a emiti-las e as informações que devem constar no Termo de Emissão, entre outras regras. Contudo, a referida lei não especifica de forma explícita as hipóteses de nulidade, anulabilidade e ineficácia das Notas Comerciais, sendo necessário recorrer ao Código Civil para tratar dessas questões. Por ser considerada um título de crédito, a Nota Comercial possui natureza de ato unilateral30. Assim, os casos de nulidade, anulabilidade e ineficácia dos negócios jurídicos, dispostos no Código Civil, são aplicáveis às Notas Comerciais.

Logo, para tratar desses tópicos, será útil adotar a análise sob a perspectiva da teoria criada pelo jurista Pontes de Miranda, conhecida como Escada Ponteana. A partir dessa abordagem, é possível afirmar que as Notas Comerciais possuem três planos: existência, validade e eficácia. Uma Nota Comercial pode “ser, valer e não ser eficaz, ou ser, não valer e ser eficaz. [...] O que não se pode dar é valer e ser eficaz, ou valer, ou ser eficaz, sem ser; porque não há validade, ou eficácia do que não é”31.

4.10.1. Plano de Existência

O plano da existência não faz uma avaliação qualitativa do negócio jurídico, limitando-se a verificar se os elementos estruturais ou pressupostos de existências estão presentes. São eles: partes (agentes), objeto (finalidade), forma e vontade (manifestação). Na ausência de um desses elementos, a Nota Comercial não pode sequer ser considerada existente, uma vez que lhe falta um dos requisitos mínimos de um negócio jurídico. Assim, as Notas Comerciais, para que sejam consideradas existentes no mundo jurídico, devem contar obrigatoriamente com um emitente (agente), que manifeste sua vontade de realizar o negócio, um objeto (que consiste na obrigação de pagar uma quantia em dinheiro) e uma forma.

No caso do elemento da vontade, por se tratar de um ato unilateral (que é justamente aquele que depende da manifestação de vontade de apenas uma parte), a ausência da manifestação de vontade não resultaria na “inexistência” do ato, mas sim na inexistência da própria situação que poderia ser considerada como um negócio jurídico, confundindo-se a ideia de “inexistência” com a ausência total do ato. No entanto, um exemplo de ato que poderia ser considerado inexistente, no caso das Notas Comerciais, seria a presença de uma assinatura falsa no Termo de Emissão. Desta forma, pode-se constatar que há um ato a ser analisado, mas a manifestação de vontade estaria ausente, configurando a inexistência do negócio jurídico.

Antes de prosseguir, é importante fazer uma ressalva. O Código Civil brasileiro não adota o plano de existência dos negócios jurídicos, limitando-se aos planos de validade e eficácia. Segundo Carlos Roberto Gonçalves, “não há necessidade de mencionar os requisitos de existência, pois esse conceito encontra-se na base do sistema dos fatos jurídicos”32. Embora o Código Civil não aborde explicitamente esse plano, a tricotomia existência-validade-eficácia ainda é amplamente utilizada no Direito brasileiro, sendo frequentemente mencionada em doutrinas e jurisprudências para explicar questões relacionadas aos negócios jurídicos. Assim, compreender o plano de existência é essencial para examinar os componentes de um negócio jurídico, uma vez que possibilita verificar se um ato satisfaz os requisitos básicos para ser reconhecido como existente, estabelecendo, assim, a base para a análise dos planos de validade e eficácia que se seguem.

4.10.2. Plano de Validade (Nulidade e Anulabilidade)

Após analisar o plano de existência das Notas Comerciais, deve-se avançar para o estudo do plano de validade, essencial para determinar se uma Nota Comercial está apta a produzir seus efeitos. Para tanto, é preciso que ela também cumpra certos requisitos de validade. A análise do plano de validade envolve elementos semelhantes aos do plano de existência dos negócios jurídicos, mas, diferentemente deste, deixa de ser uma mera verificação da presença dos elementos e passa a focar nas qualificações desses elementos. Flávio Tartuce faz uso de uma analogia bastante esclarecedora para diferenciar ambas as análises, afirmando que o plano de existência examina o substantivo, enquanto o plano de validade analisa os adjetivos que o qualificam33.

Antes de aprofundar o estudo sobre cada um dos elementos dispostos no artigo 104 do Código Civil, é importante destacar que a análise de validade é utilizada para definir se um negócio jurídico é nulo ou anulável, ou seja, se o ato já nasceu nulo ou se pode tonar-se nulo a pedido de alguém, em razão de violação a alguma disposição legal. Quando a Nota Comercial ofende preceitos de ordem pública que interessam à sociedade, sendo considerada uma invalidade mais grave, ela será tida como nula, podendo sua nulidade ser declarada de ofício pelo juiz. As hipóteses de nulidade estão previstas no artigo 166 do Código Civil e serão exploradas ao longo do estudo do plano de validade.

Por outro lado, quando a Nota Comercial viola preceitos que afetam interesses particulares, caracterizando uma invalidade menos grave, ela será considerada anulável, necessitando que a parte interessada requeira a anulação do negócio jurídico. Nesse caso, a Nota Comercial pode ser até confirmada ou ratificada, se assim desejarem os envolvidos. As hipóteses de anulabilidade do negócio jurídico estão previstas no artigo 171 do Código Civil e, resumidamente, incluem situações em que são constatados vícios resultantes de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.

Voltando ao plano de validade, seus elementos de análise estão expressamente enumerados no Código Civil, artigo 104, sendo eles: (i) agente capaz; (ii) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e (iii) forma prescrita ou não defesa em lei. Adicionalmente, a doutrina brasileira acrescenta a “vontade livre” como elemento de validade dos negócios jurídicos, ou seja, a vontade do emitente deve ser espontânea e sem qualquer tipo de vício ou interferência.

A análise da capacidade do agente busca verificar se ele possui capacidade de exercício ou de fato, em outras palavras, se está apto a exercer os atos da vida civil. No contexto das Notas Comerciais, que são negócios jurídicos praticado exclusivamente por pessoas jurídicas, é necessário observar se tais atos estão sendo praticado por quem tem poderes para representá-las. Em geral, as empresas são representadas por seus diretores ou administradores, mas é fundamental verificar quem tem poderes para emitir as Notas Comerciais em nome da empresa, conforme determinado por seu ato constitutivo.

Nesse sentido, o legislador, no artigo 46, parágrafo único, da Lei 14.195/21, estabelece que a deliberação sobre a emissão das Notas Comerciais deve ser feita pelos órgãos de administração ou administrador, observado o que dispuser o respectivo ato constitutivo. Assim, caso não haja disposição em contrário no ato constitutivo da empresa, apenas o administrador seria considerado “agente capaz” para a análise do plano de validade. Portanto, em um cenário hipotético em que uma pessoa natural tente emitir uma Nota Comercial, ou que um sócio sem poderes específicos para isso o faça, a Nota Comercial será considerada inválida e nula (artigo 166, inciso I, Código Civil).

Ainda no plano de validade, há a determinação de que o objeto do negócio jurídico seja lícito, possível, determinado ou determinável. No caso das Notas Comerciais, o objeto deve estar em conformidade com a legislação vigente, não podendo ser contrário aos bons costumes, à ordem pública e à boa-fé. Além disso, o valor da Nota Comercial deve ser possível, sendo inválida qualquer Nota Comercial emitida que implique em prestações impossíveis de serem cumpridas, podendo a impossibilidade ser física ou jurídica.

Ademais, o objeto das Notas Comerciais deve ser determinado, conforme o artigo 47, inciso V, da Lei 14.195/21, que exige a inclusão do valor nominal no termo de emissão. Dessa forma, o valor e as condições de pagamento devem estar claramente especificados na Nota Comercial para que ela produza seus efeitos. Os instrumentos que descumprirem essas especificações quanto ao seu objeto serão considerados inválidos e nulos, com base no artigo 166, inciso II, do Código Civil. Este artigo também estabelece que o motivo determinante para a celebração de um negócio jurídico deve ser lícito, sendo caso de nulidade quando tal exigência é desrespeitada (artigo 166, inciso III, Código Civil).

O último requisito de validade trata sobre a forma prescrita ou não defesa em lei. Apesar dos negócios jurídicos serem, em regra, informais, as Notas Comerciais apresentam forma especial (título de crédito escritural e emissão por meio de Termo de Emissão) e um conjunto de solenidades que precisam ser observadas para que a declaração de vontade possua eficácia jurídica. É nesse momento que todas as informações exigidas pelo artigo 47 da Lei 14.195/21 são verificadas, assim como a assinatura do emitente exigida pelo artigo 889 do Código Civil. Caso a Nota Comercial não esteja revestida na forma prescrita em lei ou alguma dessas solenidades previstas na Lei 14.195/21, consideradas essenciais para sua validade, estejam ausentes, o instrumento será considerado inválido e nulo (artigo 166, incisos IV e V, Código Civil).

4.10.3. Plano de Eficácia

O plano de eficácia, por sua vez, concentra-se em aspectos mais específicos de cada negócio jurídico. Nesse plano, são analisados os fatores que podem ser acrescentados ao negócio jurídico para modificar seus respectivos efeitos, conhecidos como elementos acidentais do negócio jurídico. Esses elementos não são obrigatórios e incluem a condição, o termo e o encargo. No caso das Notas Comerciais, os elementos acidentais não apenas influenciam a eficácia do instrumento, mas também podem alterar a relação entre as partes envolvidas.

Por exemplo, o artigo 47, inciso VIII, da Lei 14.195/21, que trata das condições de vencimento da Nota Comercial. Dependendo das condições impostas, o crédito pode ser exigível a curto, médio ou longo prazo pelo seu investidor. Além disso, as Notas Comerciais podem conter cláusulas com previsão de eventos específicos que podem acelerar o vencimento desses instrumentos, como as cláusulas de vencimento antecipado, que são comuns para proteger os investidores de possíveis inadimplementos. Dessa forma, a eficácia da Nota Comercial pode ser afetada por essas cláusulas, que antecipam ou retardam a exigibilidade do pagamento.

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Sobre o autor
João Vítor Lopes Cunha

Graduado na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP). Associado na área de Consultivo e Estratégia de Negócios do TN Advogados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA, João Vítor Lopes. Notas comerciais.: O reflexo da Lei nº 14.195/21 sobre esses instrumentos no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7926, 14 mar. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/112569. Acesso em: 6 dez. 2025.

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