Resumo: A doutrina tem por hábito dizer que as fontes do direito, por assim dizer, são as leis, costumes, jurisprudência, doutrina, analogia, princípios gerais do direito e equidade. E assim é, mas neste trabalho buscaremos traçar algumas nuances do direito contemporâneo até um dos livros mais antigos do mundo: O Livro dos Mortos do Antigo Egito. Abordaremos essa obra, não sob um prisma místico, como tem sido abordada ao longo da história, mas sob um prisma legal, identificando pontes entre o que era norma naquela cultura altamente ritualizada e distante com o que é praticado atualmente no direito, especialmente o brasileiro. Com isso, veremos que, por mais que soe improvável, tais pontes parecem existir. Será dedicada especial atenção às práticas descritas no Tribunal de Osíris e a algumas das que hoje adotamos, bem como à tentativa de compreender como aqueles remotos costumes legais chegaram até nós.
Palavras-chave: Contemporâneo; Costumes; Deuses; Egito; Mortos; Tribunal.
INTRODUÇÃO
Gostamos de pensar que somos avançados, tanto no que diga respeito às nossas maravilhas tecnológicas, como do que tange aos nossos costumes e leis que regem nossas vidas em sociedade.
Temos a tendência de olhar para as civilizações de outrora como meras empilhadoras de pedras e supersticiosos adoradores de corpos celestes ou de fenômenos naturais por elas incompreendidos. Olhamos para elas através de nossas lentes desinformadas e as vemos como se tivessem sido arcaicas e bárbaras, nas quais imperavam injustiças e as vontades inflexíveis de soberanos, contra as quais os súditos nada podiam, salvo suplicar por piedade quase nunca concedida.
Essa tendência é forte em nós, pois nos transmite certo conforto emocional, já que compilamos códigos legais que regram as relações entre os cidadãos e também entre esses e seus governos, impedindo abusos por parte de quem detém o poder de mando, de modo que arbitrariedades, outrora possíveis, não ocorrem mais, tudo graças aos avanços legais e às estruturas de Estado dotadas de força suficiente para dar vida à fria letra da lei, conservando a ordem e paz sociais.
Ocorre, todavia, que essa nossa visão do passado é bem curta e turva. Curta devido a distância temporal a que estamos de civilizações como a egípcia, que é a que nos interessa nesse trabalho e sobre a qual nos debruçaremos, de modo que tal hiato temporal, por si só, dificulta-nos enxergar a complexidade e sofisticação daquele povo. É também turva, pois, em nossa arrogância empolgada pelas modernidades de que dispomos, não admitimos o quanto devemos a esses antigos povos, sobre os quais erigimos nosso mundo, mas que, por ignorância, damos-lhes pouca importância, a ponto de subestimar suas valiosas contribuições para a humanidade. Talvez nos falte um pouco da humildade Newtoniana para compreender que as coisas que hoje existem, inclusive as leis que nos regem, há muito foram forjadas e vêm sendo aperfeiçoadas e moldadas para se adequarem aos tempos. Aprendamos com Sir. Isaac Newton (1643-1727):
Se eu vi mais longe, foi porque estava sobre os ombros de gigantes (HAWKING, 2015, p. 11).
Com essa colocação feliz, Newton se curvou em agradecimento ao italiano Galileu Galilei e ao alemão Johannes Kepler, que foram contemporâneos um do outro e que pertenceram à geração anterior à de Newton, cujas descobertas tiveram como pontos de partida os trabalhos de ambos, possibilitando alcançar patamares mais elevados.
Buscaremos compreender o que era o Livro dos Mortos e qual era sua importância no antigo Egito para, a partir daí, entendermos como um conjunto de máximas morais e religiosas, no decorrer de milênios, foi incorporado em legislações contemporâneas. Tentaremos descerrar o espesso véu do tempo apoiados, tal como Newton, em conhecimentos advindos de esforços mentais de brilhantes acadêmicos de outrora.
DAS AREIAS DO DESERTO
Antes de tratar de aspectos legais, objetivo último deste trabalho, temos de mergulhar nos mistérios de Isis e Osíris, revolver camadas de areia acumuladas por milênios e entender o que, afinal de contas, é o Livro dos Mortos e qual era seu significado na vida das pessoas que habitavam às margens do Nilo na época dos Faraós. Releva frisar que aquela rica cultura despertava encanto, assombro e curiosidade de outras culturas, de modo que nos períodos ptolomaico e helenístico fora visitada por ilustres pensadores daquela época, todos ávidos por penetrar em seus mistérios, guardados a sete chaves pelos Sacerdotes, nos quais o povo egípcio confiava sem vacilação, como se infere:
Era cega a fé nos sacerdotes egípcios, pois o povo acreditava piamente em sua sabedoria. E de tal modo que, mesmo no auge das letras e ciências gregas, estas se voltavam ao misterioso Egito, de onde emanavam os conhecimentos da época. Muitos dos grandes gregos dessa era ali compareceram, buscando encontrar nos mistérios egípcios resposta para suas dúvidas, como Platão, Heródoto, Architas de Tarento, Teodoros de Kyrene, Aristóteles, entre outros (FREITAS, 1982, p.10).
O que hoje conhecemos como Livro dos Mortos, na verdade, em tradução literal do egípcio, chamava-se “Saída para o Dia” (ou para a Luz, dependendo da interpretação). Para os egípcios, tratava-se de um manual de que o falecido dispunha na busca da eternidade e nos revela algumas ideias daquela cultura relativas ao destino além - túmulo, representado como um lugar onde os falecidos deveriam fazer praticamente as mesmas coisas que se faziam na vida terrena.
Constava de cento e noventa e dois encantamentos, embora alguns escritos tivessem variantes e diferentes seleções do mencionado repertório. Essas liturgias envoltas em mistérios eram escritas em rolos de papiros, um tipo de papel usado naquele tempo, que depois eram depositados nos sarcófagos com as múmias ou, mais tardiamente, dentro de imagens ocas da divindade composta Ptah-Sokar-Osíris (deusa simbolizando os três aspectos do universo: criação, estabilidade e morte), que eram colocadas nas tumbas.
A crença dos egípcios nos encantamentos contidos naqueles rolos de papiro era tão enraizada que nem mesmo os mais humildes ousavam partir para o além sem antes providenciar que seus exemplares ou, quando a morte se dava de maneira inesperada, os familiares providenciavam. Os Egiptólogos determinaram exemplares eram personalizados e que os de boa qualidade custavam muito caro, mas que havia um vasto comércio de exemplares previamente escritos e que podiam ser adquiridos por valores mais acessíveis, nos quais bastava que as pessoas que fariam uso ou seus familiares escrevessem seus nomes antes de depositá-los juntos aos corpos.
O mais famoso e bem conservado exemplar do Livro dos Mortos é o chamado Papiro de Ani. Segundo os Egiptólogos, Ani teria sido um escriba egípcio e seu papiro foi descoberto em Luxor no ano de 1888, tendo sido levado para o Museu Britânico, onde está em exposição até hoje. Ele teria vivido e trabalhado na cidade de Tebas, no Alto Egito. Levando-se em consideração que seu exemplar mede expressivos 24 metros, depreende-se que sua situação financeira era bastante confortável, indicando que Ani não era um escriba comum, visto que ele trabalhava em Tebas e, provavelmente, tinha um cargo elevado.
Apesar da riqueza de elementos contidos nos papiros, sua leitura permaneceu impossível por anos, uma vez que a linguagem hieroglífica dos egípcios era indecifrável para os linguistas daquela época, o que apenas começou a mudar com a descoberta da Pedra de Roseta, havida quando o exército de Napoleão Bonaparte chegou o Egito em 1799:
A “pedra”, na realidade uma estela comemorativa, contém um texto cujo conteúdo é um decreto dos sacerdotes de Mênfis em honra ao faraó Ptolomeu V Epifânio, gravado em três formas de escrita: Hieroglífica, Demótica e Grega. A importância deste documento está na possibilidade de que a escrita grega poderia ser comparada com a egípcia, fato que impulsionou a pesquisa de inúmeros estudiosos europeus da época (COELHO, 2012).
Com a chave para o enigma nas mãos, Jean-François Champollion (1790 – 1832), filósofo, arqueólogo e linguista francês, após se debruçar detidamente sobre ela, conseguiu descortinar para o mundo os misteriosos símbolos e os segredos neles encerrados. A partir de seu trabalho, o Egito antigo, finalmente, começou a revelar sua cultura para o mundo moderno e, junto dessa cultura, o conjunto de leis e valores cultuados durante as dinastias faraônicas, senão vejamos:
Na realidade, quem descobriu o Livro dos Mortos foi Champollion, arqueólogo francês, que decifrou a pedra de Roseta, chave dos hieróglifos egípcios. Estudando os monumentos egípcios do Museu de Turim, especialmente um papiro de uns vinte metros, coberto de hieróglifos dispostos verticalmente, e descobrisse outros semelhantes em fragmentos diversos, denominou ao todo "Ritual Funerário", já que eles tratavam da morte e do culto aos mortos (FREITAS, 1982, p.12).
O Livro dos Mortos, para nós, leitores modernos, apresenta-se como um amontoado de crenças primitivas e sem sentido. Revela-nos um panteão de deuses antropomórficos com poderes mágicos que parecem saídos de quadrinhos ou filmes de super-heróis. Entretanto, olhando mais de perto, percebemos que tudo isso bem poderia ser alegorias para algo bem mais palpável. Quiçá uma maneira elaborada de transmitir conhecimentos ao povo, estabelecer certos costumes e regras de convívio social, ou ainda, uma maneira sofisticada de submeter o povo ao jugo dos soberanos através do medo, como se depreende:
Cabe agora ao leitor julgar se O Livro dos Mortos é um chorrilho de loucuras, mentiras e disparates, produto de uma crença absurda, ou se, ao contrário, é um conjunto sublime de crenças e ciências esotéricas; ou se, ainda, é o meio de que se valiam, como parece, os sábios sacerdotes egípcios para melhor viver na Terra, enquanto ofereciam, através de seus dogmas, meios para que os crentes pudessem viver no Além. Cabe ao leitor verificar, tendo em mãos O Livro dos Mortos, se o mesmo é produto de mentes voltadas ao egoísmo, interesse e venalidade, ou de ideias fanáticas de culto ao desconhecido, como, aliás, tem base todas as religiões (FREITAS, 1982, p.18).
Agora sim, detendo uma compreensão razoável do que é O Livro dos Mortos abordado neste trabalho, dispomos de meios suficientes a nos permitir aventurar-nos por seus enigmas e tentar entender quais caminhos tortuosos seus ensinamentos percorrem ao longo de milênios para chegar a nós na forma de leis e regras de convívio. Trataremos ainda de personagens, inclusive bíblicos, que por mais improvável que possa parecer, desempenharam papeis fundamentais nessa jornada, cuja compreensão da perspectiva histórica lançará luz sobre alguns mistérios.
O SACERDOTE LEGISLADOR
Para entender como alguns dogmas milenares praticados no antigo Egito deixaram o deserto e acabaram se tornando leis modernas, precisaremos olhar para a bíblia, porém, não da perspectiva religiosa, mas histórica. Uma das principais figuras Bíblicas, especialmente no Velho Testamento, é Moisés, universalmente conhecido por ter libertado os judeus da situação do jugo faraônico e da escravidão, tê-los guiado no árido deserto com destino à terra prometida e, principalmente, por ter recebido e transmitido os dez mandamentos aos hebreus, como se depreende do próprio texto:
O SENHOR Deus disse a Moisés: Corte duas placas de pedra iguais àquelas que você quebrou, e eu escreverei nelas as mesmas palavras que estavam nas primeiras. Amanhã cedo esteja pronto para subir o monte Sinai a fim de se encontrar comigo ali no alto do monte. Ninguém deverá subir com você, ninguém deverá estar em qualquer parte do monte. As ovelhas, as cabras e o gado não deverão ficar pastando perto do monte (BÍBLIA, Êxodo 34: 1–3).
No Êxodo, Segundo Livro do Velho Testamento, Moisés é o protagonista de vários feitos além dos que descritos acima, mas sua origem e educação é o que nos importa neste momento.
Segundo os textos bíblicos (Êxodo 1 e 2), após ter sido abandonado à própria sorte nas águas do Nilo, foi resgatado pela filha do Faraó Ramsés II, que tomava banho no rio. Retirado dos braços da morte, foi criado na corte do soberano e, depois de crescido, o menino foi entregue de volta à filha do Faraó, que lhe deu o nome de Moisés e o educou como nobre no ambiente palaciano.
Alguns estudiosos defendem que esse golpe de sorte na vida de Moisés deu a ele a oportunidade ímpar de, mesmo sendo estrangeiro, receber ensinamentos secretos dos Sacerdotes, ensinamentos esses que, pela tradição, não poderiam ser transmitidos para quem não fosse egípcio, mas que lhe foram facultados pela proximidade com a família do Faraó:
Não há nem lógica nem razão em, nem existem quaisquer fatos para sustentar tal teoria. Não, nossa Grande Ordem foi originada a partir dos ensinamentos sublimes de Ptah, os quais foram transportados para fora do Egito por Moisés, e os Sumo Sacerdotes originais ou primeiros dos Druidas que vieram para estas ilhas, e transmitiram de geração em geração, e esta vai durar até ao final da atual existência da terra (CHURCHWARD, 1913, p. 23).
Na mesma esteira de pensamento, o historiador brasileiro Rodrigo Otávio da Silva, em seu trabalho intitulado Apropriações contemporâneas do Egito Antigo: antiguidade e tradição no discurso maçônico brasileiro, cita:
A evocação de Moisés tem a vantagem de ver-se bem amparada nos Textos Sagrados. A sua própria ligação com o pensamento egípcio é atestado em Atos dos Apóstolos 7:22, quando se diz: “Assim foi Moisés iniciado em toda a sabedoria dos egípcios, e tornou-se poderoso em palavras e obras”. Os cinco primeiros livros da Bíblia são tradicionalmente atribuídos a ele, além de ter protagonizado dois dos maiores eventos testamentários: a libertação dos hebreus da escravidão egípcia e o recebimento no Monte Sinai do Decálogo. Some-se a isto as informações da Arqueologia Bíblica e da Egiptologia que o colocam como um hebreu de cultura egípcia (SILVA, 2005, p. 100).
Com a libertação, Moisés teria guiado seu povo e, como forma de estabelecer normas de convívio social e leis, recorreu aos conhecimentos e astúcia adquiridos dos altos Sacerdotes egípcios e de sua educação privilegiada ao lado do Faraó e outras autoridades que certamente circulavam com frequência pelo palácio tratando de assuntos de Estado.
Tais conhecimentos teriam sido, ao longo dos séculos, espalhados não só pela Península do Sinai e Oriente Médio, mas seguido com outros seguidores mais próximos a Moisés, inclusive por regiões da Europa.
Decorrente desse êxodo de pessoas e conhecimentos, diversas civilizações floresceram, como os Celtas, que tinham como legisladores e líderes religiosos uma casta de sábios conhecidos como Druidas, citados acima por Albert Churchward como sumo Sacerdotes que deixaram o Egito junto de Moisés ou, como alguns estudiosos defendem, teriam descendido dele e de outras figuras bíblicas, senão vejamos:
O druidismo adormeceu por muitos séculos. Somente algumas tradições locais perduraram e outras, foram engolidas pelo cristianismo. O que restou instigou muitos estudiosos no fim do período moderno e início do contemporâneo. Arqueólogos, historiadores, sociólogos, esotéricos, estudiosos de mitologia, entre outros, se depararam com uma rica descrição e descoberta de artefatos pela Europa. Aqui surge o que denominaríamos de um “druida abrâamico”. Sim, não é piada. Os druidas foram ditos como descendentes de Abraão, Moises, Jesus e outros personagens bíblicos (MAW, 2012).
O papel, não só como sacerdotes, mas também como legisladores e juízes desempenhados pelos Druidas na sociedade Celta é consenso entre estudiosos de culturas, línguas e religiões antigas, como se depreende a seguir:
Druida Juiz (Brithem) - Era o responsável pelo cumprimento da lei, pela resolução de conflitos e querelas entre os habitantes da Tuath, o clã. Para os celtas não havia muita distinção entre jurisprudência e profecia, legislação e sacrifícios. A separação entre o sagrado e o profano era algo desconhecido. Tanto quanto a noção de pecado. A distinção entre direito público e privado, invenção dos romanos e que influenciou toda a legislação ocidental, era algo ainda mais estranho para os celtas. O que importava para eles era a existência do direito privado, já que o direito público não existia (LARA, 2010, p. 31. e 32).
Pois bem, depois de percorrer essa jornada, analisemos algumas passagens do Livro dos Mortos que, mesmo hoje em dia, nos soam familiares, tanto nos costumes diários de boa conduta social, como na seara legal. O Decálogo, ou dez mandamentos de Moisés, já muito difundidos e conhecidos pela maioria das pessoas encontram eco numa passagem que foi extraída do chamado Papiro de Nu, todavia, veremos que é mais extensa e de linguajar mais arcaico:
Eis que trago em meu Coração a Verdade e a Justiça, pois que arranquei dele todo o mal. Não causei sofrimento aos homens. Não empreguei violência com meus parentes. Não substituí a Injustiça pela Justiça. Não frequentei os maus. Não cometi crimes. Não trabalhei em meu proveito com excesso. Não intriguei por ambição. Não maltratei meus servidores. Não blasfemei contra os deuses. Não privei o indigente de sua subsistência. Não cometi atos execrados pelos deuses. Não permiti que um servidor fosse maltratado por seu amo. Não fiz ninguém sofrer. Não provoquei o homem. Não fiz chorar os homens meus semelhantes. Não matei e não mandei matar. Não provoquei enfermidade entre os homens. Não subtraí oferendas dos templos. Não roubei pães dos deuses. Não me apoderei das oferendas destinadas aos Espíritos santificados. Não cometi ações vergonhosas no recinto sacrossanto dos templos! Não diminuí a porção das oferendas. Não tratei de aumentar meus domínios empregando meios ilícitos, nem usurpando campos de outros. Não adulterei os pesos nem o braço da balança. Não tirei leite da boca de uma criança. Não me apoderei do gado nos prados. Não apanhei a laço as aves destinadas aos deuses. Não pesquei peixes com peixes mortos. Não obstruí as águas quando deviam correr. Não desfiz as barragens da passagem das águas correntes. Não apaguei as chamas de um fogo que devia arder. Não violei as regras das oferendas de carne. Não me apoderei do gado pertencente aos templos dos deuses. Não impedi um deus de se manifestar. (Livro dos Mortos, 1982, p. 137. e 138).
O extenso trecho acima é chamado na obra de Confissão Negativa, sendo composto de nada menos que trinta e quatro (muitos mais que as dez do Velho Testamento) menções a crimes e condutas indignas negadas pelo espírito do falecido diante de Osíris, que ao lado de sua irmã e esposa, Isis, presidia o Tribunal. Cabe explicar que várias outras divindades tinham papel nesse julgamento, como por exemplo, Thoth, deus da escrita e interprete das leis, atuava como advogado; e Maat, deusa alada da justiça e da verdade, cuja pena emprestava para pesar o coração do falecido na balança, que para ser absolvido, por assim dizer, e renascer, deveria ser tão leve quanto a pena. A balança, aliás, como símbolo moderno da justiça, talvez também remonte ao Livro dos Mortos do antigo Egito.
Pois bem, explicado brevemente sobre o Tribunal de Osíris, tornemos a analisar o trecho do Papiro de Nu acima transcrito, no qual vemos várias regras modernas do direito, inclusive presentes no nosso Código Civil, como invasão de propriedade alheia ou represamento de águas correntes. Exporemos abaixo o que diz o Código Civil Brasileiro nesse último aspecto apenas, como forma de demonstrar quão patente é a semelhança:
O dono ou o possuidor do prédio inferior é obrigado a receber as águas que correm naturalmente do superior, não podendo realizar obras que embaracem o seu fluxo; porém a condição natural e anterior do prédio inferior não pode ser agravada por obras feitas pelo dono ou possuidor do prédio superior (CÓDIGO CIVIL, art. 1288, 2002).
Parecem leis e normas de conduta modernas para o tempo em que foram escritas, mas são o que são. Em que pese seja desnecessário observar, mas talvez seja conveniente, a chamada Confissão Negativa, mesmo a ouvidos leigos, soa como o nosso caro princípio constitucional da não autoincriminação.