Em 1995, por força da Lei 9.099 (lei dos juizados especiais), o legislador brasileiro fez uma opção político-criminal decisiva em favor da despenalização, que significa suavizar, restringir ou eliminar a pena de prisão. Não se pode confundir despenalização com descriminalização, visto que esta última significa proscrever (aniquilar) o caráter de crime do fato. A lei dos juizados criminais não retirou do ordenamento jurídico-penal brasileiro nenhum delito. Tudo ficou intacto (tal como estava): o que ela fez foi prever penas alternativas para as infrações de menor potencial ofensivo e isso configura, claramente, despenalização (não descriminalização).
Uma grande questão pendente no cenário punitivo nacional diz respeito à elaboração de um amplo programa de descriminalização. Há muitas infrações que hoje ainda ostentam a categoria de delito ou contravenção, mas que deveriam ser eliminadas do Direito penal. Enquanto não chega esse momento de enxugar a quantidade exorbitante de infrações penais que temos no Brasil, muitas outras alternativas devem ser pensadas.
Quem fez isso (agora), com a profundidade necessária, foi o emérito Promotor de Justiça Geder Rocha Gomes, que é um dos nossos maiores especialistas em matéria de execução penal e Presidente do Instituto Brasileiro respectivo. Geder acaba de defender a tese de que devemos dar um passo a mais na nossa política criminal de despenalização, eliminando-se a pena de prisão, desde o momento da cominação, naquelas infrações que não contam com relevância suficiente para suportar essa drástica conseqüência penal.
A pena de prisão, mesmo após o advento da Lei 9.099/1995, permaneceu como eixo do sistema penal brasileiro, ou seja, a referência obrigatória do poder punitivo estatal.
A proposta apresentada no seu trabalho é outra: consiste na eliminação apriorística da pena de prisão naquelas infrações médias ou menores. E isso deveria ser feito já desde o momento da cominação da pena. Cuida-se, como se vê, de proposta político-criminal invertida em relação à que foi adotada em 1995. Parte-se (na nova proposta) de uma cominação direta de pena alternativa, tal como ocorreu, v.g., com o art. 28 da nova lei de drogas (penas alternativas para os usuários de drogas).
A idolatria do sistema penal brasileiro em relação à pena de prisão vem sendo questionada diariamente, em razão da falência da pena privativa de liberdade. A prisão continua sendo concebida como a principal resposta do Direito penal para aqueles que infringem as normas penais. Impõe-se a inteira remodelação desse provecto sistema punitivo, para privilegiar as penas e medidas alternativas, que deveriam já aparecer diretamente no tipo penal, deixando-se a prisão como medida extremada (medida de ultima ratio).
Os princípios da dignidade humana, da humanização da pena e da proporcionalidade fundamentam a mudança pretendida, que um dia, com certeza, será mais radical (ou seja: um dia ainda vamos levantar com todo vigor a bandeira da descriminalização de centenas de infrações penais, retirando-as inteiramente do sistema penal). Só assim, aliás, é que se poderá conferir racionalidade a esse sistema.
Se humanização e razão (racionalidade) eram as duas grandes bandeiras do Iluminismo (segunda metade do século XVIII), não há dúvida que esse movimento filosófico (inspirado em Beccaria, Voltaire etc.) continua mais atual que nunca. Nesse âmbito prisional, a humanidade apresentou poucos progressos e muitos retrocessos. Quem conhece minimamente o sistema carcerário brasileiro sabe o quão medieval é nossa realidade penitenciária, que foge completamente dos padrões civilizatórios já alcançados em outros países.
O Brasil, hoje, figura como um dos países mais violentos e corruptos do mundo. As prisões brasileiras não desmentem essa assertiva, ao contrário, a confirmam de modo retumbante. Daí o acerto de todas as propostas que procuram evitar ou suavizar ou restringir a pena de prisão.