Resumo: O presente artigo examina criticamente o exame criminológico no Brasil, evidenciando sua fundamentação na criminologia positivista e na medicalização social. Historicamente, essa prática tem sido utilizada para avaliar a periculosidade dos condenados e sua aptidão para a reintegração social. No entanto, a manutenção desse instrumento reflete um modelo punitivista que desconsidera fatores estruturais e socioeconômicos da criminalidade, reforçando a exclusão dos apenados. A pesquisa tem como objetivo discutir as implicações desse modelo no ordenamento jurídico e na política criminal brasileira. A metodologia adotada consiste em uma revisão crítica da literatura especializada e na análise normativa da legislação penal vigente. O estudo evidencia que o exame criminológico opera como mecanismo de segregação ao basear-se em avaliações psicológicas e psiquiátricas subjetivas, comprometendo a progressão de regime e a ressocialização dos condenados. Os resultados apontam para a necessidade de revisão desse procedimento, sugerindo a adoção de práticas mais inclusivas e humanizadas. A pesquisa conclui que a superação do paradigma positivista é essencial para a implementação de políticas penais mais eficazes, voltadas à reinserção social e à redução da reincidência criminal.
1. Introdução
O exame criminológico no Brasil constitui um dos elementos estruturantes da execução penal, sendo historicamente fundamentado em matrizes criminológicas positivistas e na herança da medicalização social. A sua persistência no ordenamento jurídico reflete não apenas um paradigma punitivista, mas também um conjunto de pressupostos cientificistas que buscam categorizar e controlar o indivíduo infrator por meio de mecanismos de classificação e intervenção técnico-científica.
A análise do exame criminológico como instrumento de avaliação da periculosidade e prognóstico de reinserção social do condenado demonstra a persistência de uma perspectiva que vincula o delito a aspectos biopsicossociais do indivíduo, remetendo a concepções do positivismo criminológico do século XIX.
A escola criminológica positiva, que tem como expoentes Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo, promoveu um modelo explicativo da criminalidade baseado na ideia de predisposição biológica e social ao crime, fundamentando-se no determinismo científico e na prevenção especial.
A medicalização social, por sua vez, confere ao exame criminológico um caráter terapêutico, no qual a privação de liberdade não se restringe a um meio de punição, mas se apresenta como um mecanismo de reabilitação e correção do indivíduo. No Brasil, a incorporação dessas concepções na estrutura penal consolidou um modelo normativo que não apenas orienta as práticas de execução da pena, mas também influencia o discurso jurídico sobre a criminalidade e a periculosidade do condenado.
O exame criminológico, nesse contexto, tornou-se um instrumento de seleção e classificação dos condenados, atribuindo à ciência penal um papel central na gestão dos corpos e das subjetividades psíquicas dentro do sistema prisional. Assim, observa-se a permanência de um discurso que desconsidera fatores estruturais e sociais, priorizando uma abordagem individualizante que desloca o foco do crime para a figura do criminoso. Essa perspectiva reforça mecanismos de exclusão e marginalização ao longo do tempo, dificultando um debate mais amplo sobre políticas de reintegração e alternativas ao encarceramento.
A influência do positivismo criminológico na legislação brasileira também é evidente no discurso normativo sobre a necessidade de "cura" e "reabilitação" do delinquente. A noção de que o crime resulta de desvios individuais sustentou a inserção de mecanismos de diagnóstico e tratamento na execução penal, contribuindo para a formação de um arcabouço jurídico que combina repressão e assistência técnico-científica. Entretanto, esse modelo se mostra insuficiente para abordar as reais causas da criminalidade, uma vez que desconsidera aspectos socioeconômicos e históricos que impactam significativamente o fenômeno da violência e da reincidência penal.
Ademais, a persistência do exame criminológico como requisito para a progressão de regime e para a individualização da pena evidencia a continuidade de práticas que se fundamentam em uma concepção ultrapassada da criminalidade. A mensuração da "periculosidade" do condenado a partir de testes psicológicos e avaliações subjetivas levanta questionamentos sobre a cientificidade desses procedimentos e sua efetividade na previsão da reincidência.
O presente estudo tem como objetivo analisar as bases teóricas e históricas do exame criminológico na legislação penal brasileira, destacando suas relações com o pensamento criminológico positivista e os processos de medicalização social.
Para tanto, será realizada uma revisão crítica da literatura especializada, articulando uma abordagem teórica e normativa para compreender como esses elementos continuam a influenciar a prática penal contemporânea.
Ao final, espera-se contribuir para um debate mais aprofundado sobre os impactos da permanência do exame criminológico na execução penal e os desafios que ele impõe à efetiva reintegração social dos condenados.
2. A escola criminológica positivista
Com a evolução do pensamento científico surge a projeção do problema do crime sobre ideais filosóficos e o ethos político do humanismo racionalista. Desse modo, surge a escola clássica no final do século XIX trabalhando a sua linha delimitadora no jusnaturalismo (direito natural), possuindo o aspecto de racionalista, desprezando todo elemento ou dado social da lei e reduzido seu objeto a um sistema de normas que a razão constrói sem levar em conta a realidade1.
Surge, então, matrizes basilares da construção cognitiva, sendo:
O respeito absoluto ao princípio da legalidade;
O delito não é uma entidade factual, mas uma entidade jurídica;
Livre Arbítrio. O sujeito do Direito Penal, é capaz de ser consciente, livre e inteligente;
A pena só poderá ser aplicada aos indivíduos moralmente responsáveis;
A pena deve ser proporcional ao delito cometido e o dano causado;
A penalidade representa a resposta, sendo a consequência negativa imposta ao transgressor em virtude do dano causado à sociedade. “O mal que, de acordo com a lei do estado, os magistrados infringem àqueles que, devidamente reconhecidos culpados de um crime, são punidos conforme as formas estabelecidas” (Carrara, 1944, p. 406);
O direito de castigar pertence ao Estado a título de tutela jurídica;
As penalidades constituem medidas punitivas que são precisas, definidas, certas e exemplares, ao mesmo tempo simples e proporcionais. Devem obedecer aos critérios de publicidade, integridade, prontidão, fracionamento e reparação (Vieira, 1972);
A finalidade da pena é para o reestabelecimento da ordem social.
Nesse contexto, desenvolveu-se uma perspectiva naturalista voltada para a observação dos fatos da vida social e individual, fomentando o interesse pelo uso de métodos científicos na explicação das condutas humanas, segundo o princípio da causalidade, isto é, buscando explicações científicas para a origem do comportamento delituoso.
Assim, as teorias que englobam a Escola Positiva se encontram nas bases filosóficas de Auguste Comte e as cientificas em Charles Darwin. Contudo, é crucial ressaltar que a Escola Criminal Positiva não adota nem reflete qualquer sistema filosófico ou social, tampouco a filosofia positiva (Comte, Spencer, Ardigó etc.) ou alguma doutrina biológica específica (Darwin, Lamarck, Moleschott etc.). O elemento determinante reside no fato de que a característica distintiva da Escola Criminal Positiva é a sua ênfase no método científico (Ferri, 1933).
Então a Escola Positiva surge manifestando-se com "um grupo de homens (médicos, juristas, sociólogos), que se unem de forma coesa em relação aos demais, a outros intelectuais e a outras ideias. Intelectuais que têm Cesare Lombroso como líder, transformando seus conhecimentos e intuições em uma doutrina" (Pfset, 1975, p.13).
No âmbito dessa construção positivista, a primeira resposta foi dada por Cesare Lombroso, que acreditava ser possível identificar a causa do crime em um conjunto de anomalias de natureza orgânica presentes no delinquente. Segundo ele, do ponto de vista estrutural, morfológico e biológico, o criminoso seria distinto dos demais indivíduos. Lombroso sustentava que os delinquentes formavam uma "espécie" dentro do "gênero" humano e que reproduziam características somáticas e biológicas de um estágio primitivo da evolução. De acordo com essa perspectiva, seu comportamento criminoso seria compreendido não apenas a partir das concepções modernas sobre utilidade ou nocividade das ações, mas também em referência a um estágio mais arcaico do desenvolvimento humano. Assim, os positivistas consideravam os delinquentes como indivíduos rudimentares, primitivos e selvagens, incapazes de se adaptar à vida social moderna devido a um desenvolvimento deficiente de seu organismo (Bettiol, 1966).
A ascensão do movimento positivista no âmbito do direito penal decorreu desse contexto cultural. Como base de sua proposta de reforma, os positivistas criticavam a ineficácia do sistema penal desenvolvido pela escola clássica como meio de repressão ao crime. Dessa forma, propunham a substituição do princípio da retribuição, baseado no livre-arbítrio, por um sistema de prevenção especial, fundamentado em estudos antropológicos sobre o criminoso e na compreensão do crime como um fato social. Essa abordagem retomava a ideia de defesa social já enfatizada no período iluminista.
Relata Bitencourt,
A ressocialização do delinquente passa a um segundo plano. A aplicação da pena passou a ser concebida como uma reação natural do organismo social contra a atividade anormal dos seus componentes. O fundamento do direito de punir assume uma posição secundária, e o problema da responsabilidade perde importância, sendo indiferente a liberdade de ação e de decisão no cometimento do fato punível. Admitindo o delito e o delinquente como patologias sociais, dispensava a necessidade de a responsabilidade penal fundar-se em conceitos morais. A pena perde seu tradicional caráter vindicativo-retributivo, reduzindo-se a um provimento utilitarista; seus fundamentos não são a natureza e a gravidade do crime, mas a personalidade do réu, sua capacidade de adaptação e especialmente sua perigosidade [...] (Bitencourt, 2017, p.113).
Contudo, os principais fatores explicativos da Escola Positiva incluem a ineficácia das concepções clássicas na redução da criminalidade, o desvalor dos ensinamentos espiritualistas e metafísicos diante da difusão da filosofia positivista, a aplicação de métodos de observação no estudo antropológico com ênfase nas características psíquicas, os novos estudos estatísticos desenvolvidos pelas ciências sociais que permitiram identificar regularidades e padrões nos fenômenos sociais, incluindo a criminalidade, e as novas ideologias políticas que defendiam uma atuação mais ativa do Estado na realização dos fins sociais, ao mesmo tempo em que criticavam o excesso de proteção dos direitos individuais em detrimento dos direitos coletivos.
A Escola Positiva pode ser dividida em três fases interligadas, mas distintas, cada uma representada por um expoente máximo. A fase antropológica foi liderada por Cesare Lombroso, cuja principal obra, L’Uomo Delinquente, buscava explicar o crime a partir de características biológicas dos criminosos. A fase sociológica teve como principal representante Enrico Ferri, que, em Sociologia Criminale, enfatizou a influência dos fatores sociais no comportamento delinquente. Por fim, a fase jurídica foi conduzida por Raffaele Garofalo, autor de La Criminología, que propôs a reformulação do direito penal com base nos estudos positivistas, introduzindo conceitos como o de periculosidade criminal.
Diante dessas considerações contextuais, passaremos à discussão sobre a medicalização social no Brasil, com o objetivo de construir uma crítica sólida à aplicação do exame criminológico no país.
3. Medicalização social no brasil
Não distante das ideias apresentadas anteriormente, o positivismo-criminológico na América Latina, surge com um paradigma epistemológico de cunho etiológico, em que a infração de uma norma é explicada exclusivamente por uma relação causal que conecta a conduta criminosa às características biopsicossociais do indivíduo, relacionando-a à sua periculosidade social. O crime é visto como uma consequência previsível ou determinada pelas condições do sujeito que o pratica.
Desta forma, em toda a América Latina, o positivismo estabeleceu as bases "científicas" para um modelo de intervenção penal em relação àqueles considerados infratores; supunha-se uma patologia prévia no sujeito desviante ou infrator que precisava ser tratada por meio de uma pena. Desenvolveu-se, assim, um modelo correcionalista focado em classificar, isolar e corrigir "tendências" e "estados perigosos". Os detidos seriam classificados como anormais e, consequentemente, potencialmente perigosos, exigindo atenção e controle.
A partir disso, as ideias do professor de Turim, Cesare Lombroso, e da implementação da medicina social no Brasil, consolidou-se, já no primeiro século, uma reflexão sobre a higiene nas prisões. O objetivo era tornar os cárceres mais arejados e limpos, prevenindo possíveis focos de epidemias e organizando-os de forma a impedir a convivência perniciosa entre os malfeitores, preocupação que passou a ser compartilhada por médicos e juristas (Machado, 1978).
Nesse contexto,
a reivindicação da superioridade do saber médico sobre as demais ciências ganhou força na década de 1830, com a criação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro. Na ocasião, a classe médica sustentou que seu conhecimento era indispensável até mesmo ao sistema jurídico, uma vez que o direito, por si só, seria incapaz de garantir a liberdade e a segurança dos indivíduos sem a contribuição da ciência médica (Cabral, 2019, p. 50).
Como esclarece Katia Muricy (1988), a medicina que se desenvolveu ao longo do século XIX consolidou-se como uma instituição autônoma, assumindo o papel de auxiliar científico do Estado no exercício de seu poder. Com as transformações políticas e econômicas desse período, o saber médico deixou de ser um prolongamento da autoridade real, como ocorria na era colonial, e ampliou seu escopo de atuação para abranger toda a esfera social. Ao eleger o meio urbano como foco central de suas reflexões e intervenções, essa nova medicina configurou-se como uma teoria da periculosidade social, legitimando-se como um mecanismo de prevenção e controle do cotidiano urbano, com o objetivo de assegurar o funcionamento adequado desse organismo social.
E foi exatamente no século XIX, por volta de 1833, a medicina social direcionou sua análise para o funcionamento da sociedade brasileira, dando início a um aumento gradual no processo de medicalização. Foi nesse cenário que a decisão de construir a Casa de Correção da Corte foi tomada, tornando-se a pioneira ao estabelecer explicitamente a reabilitação dos criminosos como seu objetivo principal (Machado, 1978).
Logo, se sob a perspectiva jurídica, o crime é caracterizado como uma afronta à sociedade, uma quebra do pacto social, uma opção pelo interesse individual em detrimento dos direitos alheios, uma violação contratual e uma transgressão da lei, a medicina o descreve fundamentalmente como uma condição patológica: sendo concebido como uma enfermidade moral (Machado, 1978).
A prisão começava a ser tratada com um hospital da moral, com a função elementar de construção do homem virtuoso, um espaço para a restauração da saúde moral entendida como o controle do comportamento, o predomínio do equilíbrio e da razão. A prisão é como uma enfermaria para o crime, um hospital moral (Machado, 1978). Pois, segundo pensador da época seria a criminalidade atribuída à falta de conhecimento ou à inadequada formação educacional. É na classe daqueles mais propensos à animalidade do que à humanidade que se encontra a maioria dos criminosos. São indivíduos que apresentam pensamento, sensibilidade e vontade em funcionamento, mas em uma infeliz condição de anormalidade. Essa anomalia pode originar-se de um defeito cerebral congênito no indivíduo ou da ausência de um desenvolvimento apropriado desse órgão, decorrente da falta de uma educação moralizadora (Figueiredo, 1864).
Quiçá seja o período pioneiro da incrementação e padronização da positivista criminológica punitiva no Brasil, pois o olhar criminológico atenta-se para os costumes brasileiro, sendo esses: o samba, o carnaval, os cangaceiros e a miscigenação (Leal, 1896). Esses costumes se tornam indícios de incapacidade para um controle moral, aonde se encontra a justificativa da morosidade para o trabalho, a propensão para o desacato à autoridade e destinação para o injusto penal, em outras palavras, “o grande número de crimes violentos tem origem nos sambas, se não mesmo durante eles praticados” (Bevilaqua, 1896, p.94).
A elementar do positivismo-criminológico reside na inferiorização das outras raças. Para Bevilaqua, a mistura de raças não está relacionada ao aumento da propensão ao crime. No entanto, à medida que essa miscigenação se aproxima das características das raças negras, a tendência criminal pode se tornar mais pronunciada. Isso ocorre porque as raças consideradas inferiores, como a negra e a indígena, são percebidas como estágios menos avançados em um processo evolutivo. Esse processo culminaria com a raça branca ariana, que é geralmente associada a uma menor propensão à criminalidade (Bevilaqua, 1896).
Era classificado o positivismo-criminológico de raça por meio da miscigenação, como sendo assim os indivíduos de ascendência europeia direta ou mista podem permanecer na raça branca, enquanto os afrodescendentes e aqueles que retornam à raça negra são frequentemente vítimas de preconceito. Mulatos, caboclos ou mamelucos, cafuzos e pardos representam misturas raciais complexas que desafiam uma inclusão clara em grupos específicos de primeira geração de mestiços, sendo os menos favorecidos no corpo social (Rodrigues, 2006).
Em razão da características degenerativas invocadas pela miscigenação, torna-se o uso da tal como mecanismo positivista-criminológico, era justificadas por autores como José Mesquita (1936, p. 27), sugerindo que,
[...] admirável caldo de cultura para as mórbidas manifestações do crime essa nova sociedade, formada de uma miscigenação ... desenvolvida à solta num ambiente em que o império da lei mal se fazia sentir, dominada pelos imperativos do instinto e da força [...]
Já na visão Mário Gameiro (1935, p. 184):
O mais triste e desanimador, porém, está em sermos uma espantosa população de bárbaros heterogêneos... entre nós não existe o brasileiro, mas os tipos brasileiros. Diferenças raciais profundas ou individualidades profundamente dissemelhantes, com o agravante do atraso e da incultura... daí sermos uma população de mentalidade anárquica, incoerente, desordenada, sem nenhuma noção de consciência, quer individual, quer (sobretudo) coletiva... o delinquente... e o criminoso... encontram-se em estado potencial no psiquismo dos bárbaros híbridos das cidades e dos sertões.
A semântica da degeneração vincula-se mais a uma propensão de eliminação e exclusão do desviante, pela graduação significativa do aumento do poder estrutural punitivo através de leis, do que o prisma de cura ou reforma. Ele engatilha o judiciário numa política estrategista na qual a austeridade das pena torna-se justificada, através de um malabarismo semântico de críticas incansáveis a dispositivos excessivamente progressista, malpropício a personalidade do povo etc.
A partir do vínculo teórico correcionalistas da medicalização social, aparece no século XX, uma nova forma baseada na medicina de se tratar (ou curar) o desviante. Ganha reconhecimento a hodierna tendencia médica no bojo do discurso criminológico. O método transforma-se na tentativa de encontrar um corpo doente para o criminoso, seja prescrevendo correlações entre sífilis, lesões cardíacas, verminose e crime, seja buscando relacionar a variação da quota hormonal com complicações psíquicas, está vai ser a propensão do discurso nesses tempos.
Estamos no tempo em que a medicina estuda o doente, para tractal-o da molestia e não do modo contrário, como o era antigamente; hoje, o crime é punido, mas o criminoso estudado é o thermometro que deve regular o gráo da punição, o modo e o quantum da penalidade que lhe deve ser applicada pelos encarregados da justiça social (LEAL, 1896, p.141).
A mulher desviante e o homossexual passarão a ser objeto social de considerações, no sentido estrito de comprovar a influência hormonal sobre o caráter delituoso. O mênstruo feminino, enxergado com característica endócrina natural, poderia levar a propensão da manifestação criminosa, assim como na estação puerperal. O homossexual aparece figurado sobretudo com doente, tratável pelas dosagens exacerbadas de hormônios sexuais, pois através dessa via seria a maior solução dos crimes contra os costumes, inclusive da prostituição.
Vislumbra-se, então, a possibilidade de sustentar que a privação da liberdade, imposta a um indivíduo e a consequente supressão de suas prerrogativas cidadãs, não decorrem meramente da perpetração de um ilícito, mas sim em virtude de uma enfermidade que se busca remediar. A detenção, tradicionalmente concebida como uma medida de intimidação ou represália, encontra-se, dessa forma, permeada pela intenção de tratamento de uma condição patológica.
Como corolário dessa busca em estabelecer o elo corpo doente/ crime, temos o crescimento em importância da figura do médico junto às instituições judiciárias. Será cada vez mais aconselhável ter-se um médico como diretor de presídios, este técnico capaz de curar a doença do crime. Ele reúne, segundo esta estratégia de poder, as condições ideais para a boa realização da vigilância e manutenção da ordem, porque os controles institucionais, quando administrados por um médico, podem aparecer como terapêuticos. Ou, mesmo que naprática a violência tenha continuado a mesma nas prisões, ao menos ela pode aparecer como uma deturpação, como um desvio indevido da nova vocação curativa do cárcere (Rauter, 2003, p.40).
A compendiação da medicalização social no âmbito criminológico pode ser elucidada por meio de três conjecturas que serão instauradas no corpus juris penal, a saber, (i) a concepção do delinquente enquanto enfermo, (ii) a sanção dos sujeitos transformando-se em uma modalidade de terapêutica que atua em prol do acusado, e (iii) A detenção não objetiva a punição, mas sim a restauração do equilíbrio psicossocial.