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Direitos fundamentais e responsabilidade da administração pública na terceirização de serviços

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27/05/2008 às 00:00
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5.CONCLUSÃO

A terminologia empregada para designar os direitos fundamentais suscita controvérsia doutrinária. Para identificá-los são utilizados outros termos, tais como direitos humanos, direitos naturais, liberdades públicas e direitos da personalidade. A primazia, entretanto, é conferida à expressão direitos fundamentais, justamente por dizer respeito a princípios que resumem a concepção do mundo, indicam a ideologia política de cada Estado e designa as prerrogativas e instituições concretizadas em garantias de convivência digna, livre e igual para todas as pessoas, segundo a proveitosa lição de José Afonso da Silva.

É profunda a imbricação entre os direitos fundamentais e o princípio da dignidade humana, em especial no âmbito trabalhista, onde representam instrumentos para a asseguração a quem trabalha dos meios necessários para viabilizar existência digna.

Os direitos fundamentais foram inicialmente concebidos como direitos de defesa, mas a evolução social exigiu a chamada vinculação positiva dos poderes públicos. Em face da progressiva assimilação da força normativa da Constituição e da constatação de existência na complexa sociedade contemporânea de relações jurídicas entre particulares marcadas pela verticalidade, desigualdade e sujeição, notadamente no âmbito da relação de emprego, desenvolveu-se a teoria da eficácia privada dos direitos fundamentais. Assentada a premissa de sua aplicabilidade às relações de emprego, houve necessidade de desenvolver instrumento para equacionar eventuais colisões dessa categoria de direitos, encontrado na teoria da ponderação, que tem como fio condutor o princípio instrumental da proporcionalidade.

Os direitos fundamentais ocupam posição de destaque no âmbito laboral, servindo de instrumento para estabelecer limites à crescente escalada de precarização das relações de emprego, onde se insere a terceirização como fenômeno irreversível gerado pelos novos modos de produção e que exigiu normatização jurídica, para evitar a fraude e a simulação.

Não obstante a existência de lei disciplinando a terceirização, esta, na prática, passou a ser realizada de forma mais ampla do que a legalmente permitida, o que exigiu, de parte do Tribunal Superior do Trabalho, unificação do entendimento sobre o tema, consubstanciada inicialmente na Súmula 256 e sucedida pela Súmula 331, com destaque para o inciso IV, que consagra a responsabilidade subsidiária do tomador do serviço, inclusive da Administração Pública, na hipótese de inadimplemento das obrigações trabalhistas.

A responsabilidade do tomador do serviço, na terceirização de serviços, encontra supedâneo na teoria da responsabilidade subjetiva, na teoria do abuso de direito, na teoria objetiva (fundada no risco empresarial) e na função social do contrato. Os princípios constitucionais da dignidade humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, da consagração dos direitos sociais, dentre outros, positivados no mandamento constitucional, todos tendentes à exaltação da dignidade do trabalho e da pessoa do trabalhador, também representam alicerce inequebrantável à teoria da responsabilidade do tomador dos serviços na terceirização.

A atribuição de responsabilidade subsidiária à Administração Pública, em situações de terceirização, é lastreada na responsabilidade objetiva, sob a modalidade do risco administrativo, prevista no §6º, do art. 37, da Constituição Federal e que emerge na hipótese de danos causados por ação do Estado ou ligados a situação por ele criada.

O legislador ordinário, através do §1º, do art. 71, da Lei 8.666/93, pretendeu excluir a Administração Pública de qualquer responsabilidade pelos créditos trabalhistas devidos por força de contrato firmados entre empresas e órgãos públicos. Entretanto, o Judiciário tem negado vigência a esse dispositivo, por ofensivo ao princípio da dignidade humana, da valorização do trabalho e dos trabalhador insculpidos na Constituição Federal. Com efeito, a restrição contemplada no dispositivo em questão compromete o núcleo essencial dos direitos fundamentais dos trabalhadores, na medida em que circunscreve o reconhecimento dos haveres a mera formalidade. A intensidade com que o tema da responsabilidade subsidiária da Administração Pública freqüenta o cotidiano do Judiciário Trabalhista comprova o generalizado inadimplemento dos direitos trabalhistas pelas prestadoras de serviços. Também merece a pecha de inconstitucional a sobredita restrição por incompatibilidade com a regra da responsabilidade objetiva do Estado, consagrada na Constituição Federal.

A defesa dos direitos fundamentais integra o núcleo essencial da funções do Poder Judiciário. Assegurar a satisfação dos créditos trabalhistas e recusar aplicação a preceitos que não respeitem os direitos fundamentais é, a par de tarefa imposta pela vinculação dos juízes e das cortes a essa categoria de direitos, também meio de promover a dignidade humana, princípio situado no ápice da pirâmide das leis e cujo papel normativo é elemento de legitimação da autoridade e do Estado no penoso caminho de resgate dos direitos sociais.


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NOTAS

01 MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.226.

02 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9ª ed., rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.35.

03 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Almedina: 1999, p. 393.

04 COELHO, Luiz Fernando. Direito Constitucional e Filosofia da Constituição. 1ª ed. 2ª tir. Curitiba: Juruá, 2007, p. 181.

05 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2008, p. 178.

06 ROMITA, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 36.

07AMARAL, Júlio Ricardo de Paula. Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Trabalhistas. São Paulo: LTR, 2007, p.47-49.

08 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3ª ed. 3ª tir. São Paulo: Saraiva, 2007, p.2.

09 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Almedina: 1999, p. 383.

10 MÜNCH, Ingo von. Drittwirkung de derechos fundamentales em alemania. Apud PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos sobre a Aplicação das Normas de Direito Fundamental nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 121.

11 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3ª ed. 3ª tir. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 120-121.

12 HESSE, Konrad. Significado de los derechos fundamentales. Apud PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos sobre a Aplicação das Normas de Direito Fundamental nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 138.

13 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos sobre a Aplicação das Normas de Direito Fundamental nas Relações Jurídicas entre Particulares. In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 148-149.

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14BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 348.

15 AMARAL, Júlio Ricardo de Paula. Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Trabalhistas. São Paulo: LTR, 2007, p.100.

16 GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. Direito do Trabalho e Dignidade da Pessoa Humana, no Contexto da Globalização Econômica. São Paulo: LTR, 2005, p. 57-58.

17 HOFFMANN, Fernando. O Princípio da Proteção ao Trabalhador e a Atualidade Brasileira. São Paulo: LTR 2003, p. 134-151.

18 HOFFMANN, Fernando. Op. cit. São Paulo: LTR 2003, p. 152.

19 CAMINO, Carmen. Direito Individual do Trabalho. Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 259.

20 DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Contratual Individual de Trabalho. Uma Visão Estrutural. São Paulo: LTR, 1998, p. 78.

21 ABDALA, Vantuil. Terceirização: atividade-fim e atividade-meio – responsabilidade subsidiária do tomador de serviço. Revista LTR, São Paulo, v. 60, n. 5, p. 589, maio/1996.

22 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil. 2ª ed. v. III, t. II. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 112.

23 STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 151.

24 LORENZETTI, Ari Pedro. A Responsabilidade pelos Créditos Trabalhistas. São Paulo: LTR, 2003, p. 286.

25GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. V.4. t.1. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 50.

26 STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 958-959.

27 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 957.

28 MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 804.

29 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 971.

30 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 974.

31 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit. p. 983.

32 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3ª ed. 3ª tir. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 2,

33 MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit. p. 13-45.

34 MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 963.

35 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2008, p. 47.

36 MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 240.

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Sobre a autora
Ilse Marcelina Bernardi Lora

Juíza do Trabalho no Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LORA, Ilse Marcelina Bernardi. Direitos fundamentais e responsabilidade da administração pública na terceirização de serviços. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1791, 27 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11314. Acesso em: 28 mar. 2024.

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