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Súmula vinculante, princípio da separação dos poderes e metódica de aplicação do direito sumular.

Repercussões recíprocas

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11. Proposta de metódica de aplicação do direito sumular.

Vistas as tensões que informam a relação entre o novo instituto da súmula vinculante e princípios basilares do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, especialmente o Princípio da separação dos poderes, as garantias da inafastabilidade da jurisdição e do devido processo legal, assim como, ainda que grosso modo, a metódica de aplicação do case law em sistemas estruturalmente informados pelo princípio do precedente vinculante, ou regra do stare decisis, cabe esboçar uma proposta de metódica de aplicação dos precedentes vinculantes por força das alterações promovidas pela EC n. 45/04 e pela Lei n. 11.417/2006 no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.

A proposta que ora se esboça baseia-se na comparação com o case law, por evidente, mas mantém-se fiel à concepção de que o direito brasileiro permanece, por óbvio, filiado à matriz romano-germânica ou européia-continental. A aplicação de direito nos moldes do case law em nosso sistema é, portanto, marcadamente residual (apenas as súmulas vinculantes do STF).

Reputa-se, outrossim, ser a única proposta coerente de aplicação, por minorar as tensões referidas, impedindo, de um lado, uma expansão anômala dos poderes normativos do Judiciário e, de outra, a violação das garantias da inafastabilidade da jurisdição e do devido processo legal, através da aplicação imprópria do direito jurisprudencial, seja por ser aplicado como se lei fosse, seja por se descurar das especificidades do caso decidendo para seu devido julgamento.

Primeiramente, reputa-se que, com as alterações advindas da inclusão do art. 103-A ao texto constitucional, operou o legislador constituinte uma recepção de direito, de índole legislativo-constitucional [44], adotando residualmente, o princípio do stare decisis em nosso direito (i.e., de maneira restrita às súmulas editadas como vinculantes pelo STF, atendidos todos os pressupostos e requisitos formais e substanciais).

Isto é, quanto a tais súmulas, estarão o Judiciário e a administração pública jungidos, delas não podendo afastar-se, salvo situações específicas que abordamos noutra oportunidade e que, em parte, aprofundaremos no presente estudo.

Por tal razão, a aplicação do direito oriundo da súmula e, por conseguinte, a argumentação jurídica subjacente à postulação e à aplicação de tal direito aos casos submetidos a julgamento perante o Poder Judiciário e sobre os quais incida, potencialmente (prima facie), súmula vinculante do Pretório Excelso, deverão pautar-se por parâmetros próprios e específicos, diversos daqueles que informam a aplicação do direito legislado, prevalentes em nosso direito, sob pena de violação do princípio da separação dos poderes e das garantias da inafastabilidade do judiciário e do devido processo legal.

Inicialmente insta partir da distinção feita entre a súmula da jurisprudência dominante em geral e seu enunciado. Como visto, aquela é integrada, composta dos precedentes uniformes sobre determinada questão jurídica, no âmbito de um tribunal, sendo o enunciado mero texto explicativo.

Assim, no âmbito da súmula vinculante, como a própria expressão está a indicar, a súmula – compreendida como conjunto de precedentes – é vinculante, não assim seu enunciado, sublinhe-se, o qual não é e nem pode ser vinculante, em nenhuma hipótese – o que vale, de resto, para qualquer aplicação de súmula da jurisprudência dominante em geral, como, v.g., para a hipótese de súmula meramente impeditiva de recurso.

A conferência de efeitos vinculantes ou normativos ao enunciado é inadmissível em nosso sistema, primeiramente, porque redundaria em conferência de poderes legislativos ao Poder Judiciário, o que é inadmissível, mesmo em face da reforma operada pela EC n. 45/04. [45]

Com efeito, em sistemas romano-germânicos, como o brasileiro, à lei cabe o traço de estabelecer, em termos de generalidade média – a denominada por René David generalidade ótima – e abstração, a regra jurídica.

Não cabe ao Judiciário, antes ou depois da Reforma do Judiciário, a formulação em tese de regras gerais e abstratas, sob pena de violação, de um só golpe, do princípio da separação dos poderes e da garantia da legalidade, segundo a qual ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei (texto constitucional original irretocável por caracterizar cláusula pétrea, intangível pelo poder de reforma que embasa a EC n. 45/04).

Assim, a aplicação do enunciado da súmula por subsunção ao caso concreto em julgamento caracteriza, como se dispositivo de lei fosse, para além de equívoco técnico na aplicação do direito, em inconstitucionalidade flagrante.

Enunciado de súmula vinculante não é lei e não possui força normativa, apenas explicita o conteúdo da súmula. Não cabe, por conseguinte, sua aplicação ao caso concreto por subsunção, como se dispositivo de lei, abstrato e geral, fosse.

Em sendo vinculante a súmula, compreendida em sua acepção técnica, como conjunto de precedentes representativos da jurisprudência dominante do STF e editada com força vinculante, segundo o iter constitucionalmente preconizado, insta ao julgador ir buscar nos precedentes integrantes da súmula – e não em seu enunciado – a norma jurídica a aplicar ao caso concreto.

Cabe, aqui, citar in verbis o magistério de Guido Fernando da Silva Soares, citado, por sua vez, por João Luís Fischer Dias: "Na verdade ‘o precedente não é uma norma abstrata, mas uma regra intimamente ligada aos fatos que lhe deram origem, razão pela qual o conhecimento das razões da decisão é imprescindível" (sem destaques no original). [46]

Assim, em tendo a reforma constitucional promovido a recepção de instituto assemelhado ao case law, é em tal sistema que podemos ir buscar um método de aplicação do direito judicial – ou jurisprudencial, no caso da súmula vinculante, por força da exigência de reiteradas decisões prévias –, buscando adaptá-lo e torná-lo compatível tanto com o sistema jurídico brasileiro, filiado à família romano-germânica (ou civil law) (resguardo da compatibilidade sistêmica do instituto recepcionado), quanto com os princípios constitucionais que se extraem da Constituição da República de 1988 (resguardo da compatibilidade material do instituto recepcionado para com a ordem constitucional vigente). [47]

Para tanto, viu-se o conteúdo da regra estruturante do case law, a stare decisis (et non quieta movere), segundo a qual o anteriormente decidido, em casos idênticos ou essencialmente semelhantes, vincula o órgão decisor prolator e os órgãos decisores a ele subalternos nos casos ulteriores.

Viu-se, ainda, que para a identificação e extração da norma jurídica aplicanda dos precedentes, por força do princípio da stare decisis, impõe-se a distinção entre elementos vinculantes (ratio decidendi) e não vinculantes (obiter dictum), estando os primeiros intimamente relacionados às circunstâncias fáticas que informam os precedentes e o caso em julgamento.

Assim, além de distinguir enunciado não vinculante de súmula da jurisprudência dominante vinculante, como primeiro passo, é essencial a identificação de todos os elementos de fato aos quais se prendem os fundamentos da decisão, de modo a identificar ou distinguir os precedentes invocados do caso em julgamento.

Eis a denominada técnica das distinções, que permite, pelo primeiro procedimento, a identificação dos elementos vinculantes dos precedentes, distinguindo-os daqueles não-vinculantes e, pelo segundo procedimento, a constatação de sua aplicabilidade ou inaplicabilidade ao caso presentemente sub judice.

Aqui se revela, nitidamente, a impropriedade e impossibilidade mesma de um raciocínio jurídico baseado no direito de tipo romano-germânico ou europeu continental (civil law), ao qual é estranha a idéia de precedente vinculante.

A argumentação jurídica subjacente tanto à postulação, pelas partes, quanto à aplicação, pelo julgador, do direito de fonte judicial ou jurisprudencial é essencialmente diversa, baseando-se na constatação da identidade ou similitude essencial dos precedentes para com o caso julgando.

Consiste em um trabalho de comparação, identificação e distinção, pronunciadamente diverso do trabalho de subsunção dos fatos às prescrições genéricas e abstratas das normas.

Portanto, em termos de aplicação da súmula vinculante, insta, antes de tudo, como regra metodológica principal, jamais aplicar-se o texto do enunciado como se prescrição jurídica genérica e abstrata fosse, conscientizando-se de sua natureza meramente informativa.

Em seguida, insta perquirir-se, em profundidade, sobre a aplicabilidade ou inaplicabilidade dos precedentes que integram a súmula ao caso concreto em julgamento, através da constatação de sua identidade ou similitude essencial, o que somente é possível pela análise criteriosa dos precedentes que a integram.

Isto significa, em termos práticos, que o julgador jamais poderá deter-se na leitura do enunciado da súmula e na subsunção dos fatos aventados a tal enunciado, como se regra geral e abstrata fosse (i.e., como se dispositivo de lei fosse).

Deverá, isto sim, "abrir", por assim dizer, a súmula, isto é, recorrendo a um repositório de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ler e analisar cada um dos precedentes indexados na súmula, examinando não apenas suas ementas – também meras peças informativas, como os enunciados – mas o teor do voto vencedor e, se necessário, os votos dos demais ministros que tomaram parte no julgamento, com particular atenção para os fundamentos dos votos vencidos e as circunstâncias fáticas dos casos julgados.

São estes últimos elementos que, com maior clareza, podem trazer à baila fatos que distingam (ou identifiquem) os precedentes que integram a súmula ao caso presente sub judice.

Este trabalho de investigação do fundamento material dos precedentes, típico do case law, visa certificar-se da aplicabilidade ou inaplicabilidade dos precedentes vinculantes ao caso presente, o que se dá pela constatação de sua identidade ou similitude essencial.

Por isso deve-se ter em mente que a súmula é sempre, em um primeiro momento, aplicável apenas prima facie, eis que as circunstâncias dos precedentes e do caso em julgamento podem afastar sua aplicação a este.

Caso seja constatada, através da pesquisa dos precedentes, e não do enunciado da súmula, insista-se, a ausência de identidade ou similitude essencial entre os precedentes e o caso em julgamento, de ser afastada a aplicação da súmula, conforme preconizado pela teoria das distinções.

Isto se reporta à própria racionalidade subjacente ao case law: ora, se pela regra da stare decisis, por um imperativo de isonomia, casos iguais merecem julgamento igual, contrario sensu, casos diversos merecem tratamentos diversos.

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Com tal procedimento, minora-se ainda, além da invasão de competência do Legislativo pelo Judiciário, a possibilidade de vulneração da garantia da inafastabilidade da jurisdição e, ainda, do devido processo legal.

Explica-se: de um lado, tal análise de precedentes, a qual deverá ser minudentemente exposta na fundamentação da decisão proferenda (por força do art. 93, IX, da CRFB/88), demonstrará cabalmente ter sido devidamente apreciada a questão crucial em sede de direito jurisprudencial, vale dizer, aquela da aplicabilidade ou inaplicabilidade dos precedentes invocados ao caso sub judice.

A fundamentação da decisão demonstrará ter havido, portanto, significativa apreciação judicial, e não mera aplicação de interpretação pré-formatada sob a forma de um enunciado genérico e abstrato, consistente no enunciado da súmula, com ela corriqueiramente confundido.

De outro lado, a mesma exposição da análise efetuada, na motivação, que demonstra a efetiva apreciação judicial da questão, minora a possibilidade de vulneração do devido processo legal, na medida em que evita os julgamentos apressados, às dezenas ou centenas, por aplicação mecânica de um enunciado de súmula ao qual, por pressa, se confere "força de lei", descurando completamente das especificidades do caso concreto em confronto com os precedentes integrantes da súmula.

Assim, de um só golpe, através de uma metódica adequada de aplicação do direito de origem jurisprudencial, inspirada no estudo do case law estrangeiro, minora-se a tensão do novel instituto para com a separação dos poderes e a garantia da legalidade (CRFB/88, art. 5º, II), a inafastabilidade da jurisdição e o devido processo legal (CRFB/88, art. 5º XXXV) e, ainda, a motivação das decisões judiciais (CRFB/88, art. 93, IX).

Já a aplicação superficial do enunciado como se dispositivo de lei fosse (i.e., regra geral e abstrata), vulnera, de uma só vez, todos estes princípios e garantias, seja porque confere verdadeiros poderes legislativos ao STF, seja porque pode ter o condão de vincular o particular, indiretamente (i.e., através do agir da administração pública ou do Poder Judiciário) a obrigações positivas ou negativas sem assento em lei, seja porque afasta o pretenso titular de direito ou interesse juridicamente relevante do acesso à jurisdição, seja porque permite decisões não fundamentadas, pré-formatadas e remissivas, unicamente, ao enunciado da súmula.

Além do mais, com tal procedimento, afere-se um dos requisitos constitucionais à adoção da súmula, qual seja, aquele das reiteradas decisões precedentes à adoção da súmula vinculante (o que, por si só, é requisito para a própria súmula da jurisprudência dominante em geral, i.e., que haja jurisprudência dominante).


12. Considerações finais de ordem geral.

Tecem-se algumas considerações finais de ordem geral sobre o tema em comento, em parte resgatando tópicos já abordados, desta feita de forma sumária, em parte abordando aspectos que não foram explorados ao longo dos itens precedentes, aos quais, de todo modo, não se pode deixar de fazer menção.

a)A súmula é vinculante, o enunciado não. O epíteto súmula vinculante é redução da expressão súmula da jurisprudência dominante vinculante, pelo que o requisito de reiteradas decisões precedentes e uniformes do STF no mesmo sentido, erigido em requisito constitucional (art. 103-A, caput, da CRFB/88) é essencial e indispensável à adoção válida da súmula vinculante (caso contrário, sequer há súmula de jurisprudência dominante);

b)Há uso impróprio, atécnico e equívoco entre as expressões súmula e enunciado. Há flagrante discrepância entre a dicção constitucional inscrita no art. 103-A, caput, da Carta Política, que fala em súmula vinculante, e a dicção legal ordinária observável nos arts. 2º,3º, 5º, 6º, 7º e 10, todos da Lei n. 11.417/06, que mencionam enunciado de súmula vinculante, havendo incorreção técnica na lei, devendo-se ler súmula vinculante em lugar de enunciado vinculante, seja por apreço à correção técnica, seja por resguardo do sistema jurídico-constitucional, como visto, seja por respeito à primazia da dicção constitucional;

C)A imprecisão técnica do legislador infraconstitucional fica ainda mais manifesta e flagrante no confronto entre os artigos 4º e 5º da Lei n. 11.417/06, eis que o diploma legal refere-se, no primeiro dispositivo, a súmula vinculante, ao passo que, no segundo dispositivo, refere-se a enunciado da súmula vinculante. A questão não é meramente terminológica ou acadêmica, mas de fundo, tendo repercussões significativas no modo de aplicação do direito, conforme demonstrado.

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Sobre os autores
Geziela Jensen

Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Membro da Société de Législation Comparée (SLC), em Paris (França) e da Associazione Italiana di Diritto Comparato (AIDC), em Florença (Itália), seção italiana da Association Internationale des Sciences Juridiques (AISJ), em Paris (França). Especialista em Direito Constitucional. Professora de Graduação e Pós-graduação em Direito.

Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JENSEN, Geziela ; SGARBOSSA, Luis Fernando. Súmula vinculante, princípio da separação dos poderes e metódica de aplicação do direito sumular.: Repercussões recíprocas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1798, 3 jun. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11327. Acesso em: 7 mai. 2024.

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