“Qué difícil es cuando todo baja no bajar también”! (Antonio Machado) 1
Tornarei teus juízes semelhantes aos de outrora, e teus conselheiros como os de antigamente. Então te chamarão cidade da justiça, cidade fiel. Sião será remido pelo direito, e seus convertidos, pela justiça. (Isaías, 1,16)
Ao longo de muitos anos, o Supremo Tribunal Federal vinha estabelecendo os contornos a respeito da questão da competência especial por prerrogativa de função e da cessação definitiva do exercício funcional. Primava pela técnica ao determinar que o foro especial cessasse com o fim do exercício do cargo, bem como que, após o encerramento da instrução no juízo especial, não houvesse mais alteração. Era, então, preservada a prerrogativa de foro somente durante o exercício do cargo, pois é evidente que essa competência especial não se dá em razão da pessoa, mas em razão do cargo. Por outro lado, era necessário estabelecer um termo para que a competência se firmasse, ficando determinado que, após o encerramento da instrução, mesmo com a cessação do exercício do cargo, a competência especial sofreria prorrogação.
Torna-se oportuno expor, em breves linhas gerais, como se dá a evolução (ou agora involução) do tema ao longo dos anos.
A questão se refere à seguinte situação: um indivíduo, detentor de cargo que tem competência por prerrogativa de função (por exemplo, o Presidente da República), comete, em tese, um crime durante o exercício do mandato. Cessado o mandato, continua valendo o foro especial ou não?
A questão é polêmica e tem sofrido alterações legais e de entendimento jurisprudencial ao longo do tempo. Senão, vejamos.
a) 1964 – Súmula 394 do STF
O foro especial por prerrogativa de função persiste mesmo após o encerramento do mandato, desde que o crime tenha sido cometido durante o exercício funcional. Isso vale para qualquer crime, tenha ele ligação com o exercício da função ou não (ex.: tanto faz um desvio de verbas ou um furto em supermercado).
Fundamento: a garantia funcional seria inócua se se alterasse com o tempo.
b) 25/08/1999 – Cancelamento da Súmula 394 do STF
O STF cancela a Súmula 394. O foro por prerrogativa de função cessa com a cessação da atividade funcional. Isso vale para qualquer crime, tenha ele ligação com o exercício da função ou não (ex.: tanto faz um desvio de verbas ou um furto em supermercado).
Fundamento: o foro especial deve ser interpretado restritivamente, com vistas ao princípio da igualdade.
c) 26/12/2002 – Lei nº 10.628/02
A Lei nº 10.628/02 deu nova redação ao artigo 84 do CPP, acrescentando-lhe dois parágrafos.
§ 1º. “A competência por prerrogativa de função relativa aos atos administrativos do agente prevalece, ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.”
Surge, então, uma conformação intermediária entre a Súmula 394 do STF e o seu cancelamento. Agora, se o crime praticado durante o mandato for relativo ao exercício da função, mantém-se o foro privilegiado mesmo após a cessação do mandato. Mas, se o crime não for relativo ao exercício da função, não se mantém o foro privilegiado (ex.: no caso do desvio de verbas, mantém-se o foro privilegiado; já no caso do furto em um supermercado, não se mantém).
§ 2º. “A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.”
A Lei nº 10.628/02 foi ainda mais além: estabeleceu também foro privilegiado para os casos de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92), no novo § 2º do art. 84. do CPP. Esse foro também persistiria após o término do mandato, pois o § 2º estendia o alcance do § 1º a esses casos que, certamente, constituem atos relativos ao exercício da função.
d) 15/09/2005 – ADI 2797
O Plenário do STF (votação por maioria: 7 x 3) declarou a inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º do art. 84. do CPP. O STF considerou a edição da Lei nº 10.628/02 uma clara reação de afronta do Legislativo ao cancelamento da Súmula 394 do STF. Segundo a decisão, somente por emenda constitucional — e não por lei ordinária — seria possível criar novos casos de foro por prerrogativa de função.
A partir dessa decisão do STF, ficou estabelecida a seguinte situação:
d.1) Não existe foro por prerrogativa de função para os casos de improbidade administrativa.
d.2) O foro por prerrogativa de função não se estende mais aos ex-ocupantes de cargos, não importando se o ilícito penal é comum ou relativo ao exercício do cargo — e muito menos nos casos de improbidade administrativa.
e) 2014 – AP 606 QO
A renúncia ao cargo após o fim da instrução criminal não conduz à alteração do foro privilegiado. Trata-se de estabelecer um limite temporal para a alteração da competência do juízo especial.
f) 2015 – INQ 3734
Se o réu não é reeleito após a conclusão da instrução criminal, isso não altera o foro por prerrogativa. Mais uma vez, trata-se de estabelecer um limite temporal para a alteração da competência do juízo especial. Após a instrução criminal, não há mais mudança possível.
g) 2018 – AP 937 QO
Nessa ocasião, foram estabelecidas as seguintes teses:
g.1) O foro por prerrogativa somente é aplicável a crimes praticados durante o exercício do cargo e que estejam relacionados a este.
g.2) Mantém-se a orientação de que a competência não pode mais ser alterada após o fim da instrução criminal.
h) 2025 – HC 232.627 e INQ 4787
Em um retorno curioso à lógica de 1964, afirma-se que o foro por prerrogativa é mantido mesmo após o término do exercício do cargo ou mandato. É abandonada a chamada “regra da atualidade”. Não se exige mais que a autoridade esteja no exercício do cargo. Passa-se a adotar a “regra da contemporaneidade”, ou seja, exige-se apenas que o ilícito em apuração tenha sido perpetrado durante o exercício do cargo e/ou em razão dele.
Nota-se claramente que, ao longo dos anos, o STF atuou na defesa da competência em conformidade com a Constituição, o que é, aliás, sua função precípua. Impediu a tentativa do legislador ordinário de burlar as regras constitucionais com a edição da Lei nº 10.628/02. Preservou a boa técnica no que diz respeito às regras de competência especial que, embora denominadas pela expressão latina ratione personae, na verdade não se referem à pessoa processada, mas ao cargo por ela ocupado. Cessado o exercício, é natural que essa competência seja afastada.
Havia, entretanto, dúvidas quanto ao momento final em que essa competência se firmava, impedindo sua alteração — inclusive por questões de razoabilidade temporal do processo —, já que a mudança do juízo competente após a conclusão da instrução poderia conduzir à impunidade pela prescrição. Também nesse ponto o STF julgava com técnica, estabelecendo que, após a instrução, mesmo cessado o exercício do cargo, a competência especial se prorrogava, não sendo mais passível de alteração.
Estava tudo bem, tudo dentro dos parâmetros da constitucionalidade, legalidade, tecnicidade e razoabilidade.
Mas, repentinamente, em 2025, opera-se um retorno a 1964!
Qual o motivo dessa involução súbita? Estaria fundada em questão constitucional, legal ou técnica que passou despercebida por tantos anos? Teria ocorrido, apenas em 2025, uma espécie de “iluminação” no seio do nosso chamado Pretório Excelso? Não é o que parece.
O que parece é que a atual composição do STF interpreta a lei, a Constituição e a jurisprudência — assim como as demais denominadas “fontes do direito” — como uma espécie de “Leito de Procusto” moldável à conveniência política do momento, ainda que tal maleabilidade resulte na subversão dos ditames legais e constitucionais, comprometendo a segurança jurídica e esvaziando o valor das manifestações jurisprudenciais.
Na mitologia grega, o personagem Procusto, da história do herói Teseu, foi um ladrão que assolou a Grécia Antiga. O sádico Damastes, ou Polipêmon, como também era chamado Procusto, hospedava viajantes em sua casa, situada na serra de Elêusis, entre Trezena e Atenas, local onde articulava um procedimento singular com seus hóspedes: deitava-os em uma cama de ferro que dispunha, serrando os pés daqueles que excedessem o tamanho do leito, bem como distendendo violentamente as pernas dos que não preenchessem todo o comprimento da cama. Todos acabavam vítimas. 2
Assim é que se esticam e cortam as leis, a Constituição e a jurisprudência por meio de decisionismos políticos ou de um voluntarismo ativista.
Parafraseando Escrivá, vemos atualmente que a pretensa Justiça, em nosso país, não passa de um “falso incêndio de fogos-fátuos, produto às vezes de cadáveres decompostos”. 3 Nada mais do que a aparência externa de “sepulcros caiados” (Mateus 23,27), 4 cujo interior está infecto, putrefato e serve de repasto aos vermes.
Ora, já que a tese firmada retorna a 1964, por que não ressuscitar a Súmula 394 do STF? E mais: por que não reavivá-la em forma de Súmula Vinculante — recurso que, à época, sequer existia?
Porque não interessa, na atual conjuntura, firmar definitivamente qualquer entendimento. É necessária a maleabilidade de Procusto, a fim de que, amanhã ou depois, se possa retomar o entendimento oposto, de acordo com as circunstâncias e os interesses políticos. Agora é interessante, por exemplo, manter os congressistas (deputados e senadores) reféns de um foro especial, cientes de que, em qualquer caso, podem ser incluídos em algum inquérito ou processo, sendo processados e julgados pelo STF. É conveniente, no momento atual, que saibam que detêm um foro “privilegiado”, cujo “privilégio” é o julgamento — condenatório e implacável — por um tribunal político de exceção. É importante, para esse tribunal, deter instrumentos de exercício de poder não apenas jurídico, mas também político.
O grande exemplo é o do ex-Presidente da República, cuja investigação, processo e julgamento se darão, após essa decisão, indiscutivelmente, pelo tribunal supremo — ainda que ele não seja mais presidente de coisa alguma. Aliás, na verdade, de acordo com o entendimento que se firmou desde 1999, todos os atos praticados perante o STF, relativos a tal pessoa, eram nulos por incompetência absoluta. A decisão em destaque neste texto foi uma espécie de super “despacho saneador”, convalidando todas as nulidades e abusos.
Mas não existe nada disso! Isso não é juridicamente viável! O que é nulo não se convalida! A pergunta que nos é remetida pela jurisdição — que deveria “dizer o direito” — é: E daí?
Efetivamente, não podemos crer na Justiça dos homens — mesmo porque, atualmente, não se pode sequer saber no que poderíamos crer como Justiça humana. Afinal, tudo que um dia foi sólido se desmancha no ar. 5
REFERÊNCIAS
ESCRIVÁ, Josemaria. Forja. Trad. Emérico da Gama. 5ª. ed. São Paulo: Quadrante, 2023.
MACHADO, Antonio. Que difícil és... Disponível em https://es.wikisource.org/wiki/%C2%A1Qu%C3%A9_dif%C3%ADcil_es... , acesso em 22.03.2025.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.
ROSA, Alexandre Morais da, TOBLER, Giseli Caroline. Quando o Juiz pensa “Esse Cara Sou Eu” e se vale do jeitinho de Procusto. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/quandoojuiz-pensa-esse-cara-sou-euese-vale-do-jeitinho-de-procusto , acesso em 22.03.2025.
Notas
1 MACHADO, Antonio. Que difícil és... Disponível em https://es.wikisource.org/wiki/%C2%A1Qu%C3%A9_dif%C3%ADcil_es... , acesso em 22.03.2025.
2 ROSA, Alexandre Morais da, TOBLER, Giseli Caroline. Quando o Juiz pensa “Esse Cara Sou Eu” e se vale do jeitinho de Procusto. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/quandoojuiz-pensa-esse-cara-sou-euese-vale-do-jeitinho-de-procusto , acesso em 22.03.2025.
3 ESCRIVÁ, Josemaria. Forja. Trad. Emérico da Gama. 5ª. ed. São Paulo: Quadrante, 2023, p. 40.
4 "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia".
5 Cf. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 48.