A Constituição Federal, com seu efeito irradiante no ordenamento jurídico, traz consequências que interferem no cotidiano do sistema judiciário brasileiro, especialmente na persecução penal (em sentido amplo), desde a abordagem policial do indivíduo até as últimas instâncias de julgamento do caso concreto.
O Supremo Tribunal Federal, em repercussão geral (Tema nº 280), fixou a seguinte tese:
A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que, dentro da casa, ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.
Na teoria, tudo parece perfeito. Na prática, como consequência da decisão da Suprema Corte, os tribunais superiores foram chamados a se manifestar sobre o significado de “fundadas suspeitas” — termo que, até então, gerava insegurança jurídica diante da dificuldade de determinar, no caso concreto, se havia ou não uma suspeita suficiente para legitimar a ação.
Com as decisões dos tribunais superiores, que passaram a reconhecer balizas para o que caracteriza e quando se evidencia uma fundada suspeita — seja na abordagem, seja na entrada em domicílio —, observou-se o surgimento dos fenômenos conhecidos como dropsy testimony e testilying, sendo este último uma forma mais ampla daquele.
O Superior Tribunal de Justiça, no HC 768440/SP, de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, trouxe a origem dos fenômenos e indicou quando foi percebida sua aparição:
Tomando como experiência estrangeira sobre a temática ora em julgamento, vale mencionar que, nos Estados Unidos da América, depois do julgamento do caso Mapp v. Ohio (1961) — no qual a Suprema Corte expandiu a regra de exclusão das provas ilícitas (exclusionary rule) aos tribunais estaduais —, observou-se que, em muitas ocasiões, em vez de adequar sua conduta para respeitar as regras sobre a legalidade de medidas invasivas, a polícia passou a burlar a proibição por meio da alteração das narrativas sobre as prisões.
Por exemplo, o que antes era uma justificativa pouco comum começou a ser frequente nos depoimentos policiais: ao avistar a guarnição, o indivíduo supostamente haveria corrido e dispensado uma sacola com drogas, circunstâncias que tornavam a apreensão das substâncias válida.
Em um estudo empírico que analisou quase quatro mil autos de prisão em flagrante no distrito de Manhattan, no período de seis meses antes e seis meses depois do julgamento do caso Mapp, constatou-se um aumento de até 85,5% desse tipo de descrição da ocorrência — fenômeno comportamental que ficou conhecido como dropsy testimony, em razão do verbo to drop (soltar/largar).
Outro estudo, realizado na cidade de Nova Iorque em período similar, chegou a resultados semelhantes e concluiu que “mudanças suspeitas nos dados de prisões após o julgamento do caso Mapp indicam claramente que muitas alegações policiais foram alteradas para se adequarem aos requisitos de Mapp”.
O fenômeno denominado dropsy testimony — expressão derivada do verbo inglês to drop (soltar/largar) — surgiu após o julgamento do caso Mapp v. Ohio, em que a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, em 19 de junho de 1961, por 6 votos a 3, que evidências obtidas em violação à Quarta Emenda da Constituição norte-americana, a qual proíbe “buscas e apreensões irracionais”, são inadmissíveis em tribunais estaduais.
Em decorrência da decisão, as abordagens policiais que culminavam em apreensões — geralmente de drogas ou armas — passaram a apresentar justificativas padronizadas. Antes, tais alegações eram incomuns. Um exemplo recorrente passou a ser: “ao avistar a guarnição, o indivíduo supostamente haveria corrido e dispensado uma sacola com drogas.” Circunstâncias como essa tornavam a apreensão das substâncias válida e se amoldavam perfeitamente às novas balizas estabelecidas.
O testilying — fenômeno mais amplo que engloba o dropsy testimony — decorre da junção dos verbos testify (testemunhar) e lying (mentindo). Trata-se da prática de forjar ou alterar narrativas policiais com o intuito de conferir aparente legalidade a uma ação ilegal, como, por exemplo, justificar uma invasão domiciliar sem mandado, adequando-a retroativamente aos parâmetros das “fundadas razões”, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal.
O Judiciário brasileiro já tem se deparado com situações semelhantes, demonstrando que esses fenômenos também ocorrem em solo nacional. Como consequência, reacendeu-se a discussão sobre o valor probatório do testemunho policial, que vem sendo progressivamente relativizado. Torna-se, assim, de extrema importância a corroboração do depoimento policial com outros elementos independentes — como, por exemplo, as câmeras corporais.
É possível identificar tais fenômenos em casos de flagrante inverossimilhança, nos quais, mesmo sem o auxílio de elementos técnicos ou jurídicos, apenas pela experiência das relações interpessoais, nota-se a distância entre os fatos narrados nos depoimentos e a realidade social, tornando-os, muitas vezes, inacreditáveis.
Um caso que ilustra perfeitamente esse cenário é o HC 930648/MG, de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, no qual se reconheceu a ilicitude da busca pessoal e da entrada no domicílio, por não terem sido observadas as normas legais aplicáveis. Destacou o ministro:
Com efeito, soa completamente inverossímil a versão policial, ao narrar que o réu, depois de ser abordado em via pública e ser submetido a busca pessoal em que dinheiro foi apreendido, haveria, livre e espontaneamente, convidado os policiais voluntariamente para ir até sua residência e franqueado o ingresso no domicílio para uma varredura à procura de substâncias ilícitas. Ora, um mínimo de vivência e de bom senso sugerem a falta de credibilidade de tal versão. Pelas circunstâncias em que ocorreram os fatos – ré já detida, quantidade de policiais, todos armados etc. –, não se mostra crível a voluntariedade e a liberdade para consentir no ingresso.
Se, de um lado, se deve, como regra, presumir a veracidade das declarações de qualquer servidor público, não se há de ignorar, por outro lado, que o senso comum e as regras de experiência merecem ser consideradas quando tudo indica não ser crível a versão oficial apresentada, máxime quando interfere em direitos fundamentais do indivíduo e quando se nota um indisfarçável desejo de se criar uma narrativa amparadora de uma versão que confira plena legalidade à ação estatal.
Essa relevante dúvida não pode, dadas as circunstâncias concretas – avaliadas por qualquer pessoa isenta e com base na experiência quotidiana do que ocorre nos centros urbanos –, ser dirimida a favor do Estado, mas a favor do titular do direito atingido (in dubio pro libertate). Em verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento da moradora foi livremente prestado ou que, na espécie, havia em curso, na residência, uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido do morador.
Reconhecidos os fenômenos utilizados nas fundamentações das decisões do Superior Tribunal de Justiça, conclui-se, consequentemente, que a antiga prática de atribuir valor inquestionável aos depoimentos prestados por testemunhas policiais — como se fossem absolutos — deve ser revista. Tais depoimentos devem ser submetidos a especial escrutínio, levando-se em consideração a coerência, a verossimilhança e a consonância com as demais provas produzidas. Caso contrário, a persecução penal estará maculada.
É legítimo e honrado o trabalho policial, de fundamental importância para a sociedade. Contudo, os órgãos de persecução penal devem investigar, apurar e punir os autores de crimes utilizando meios que estejam, necessariamente, vinculados aos limites e ao regramento das leis e da Constituição da República — sob pena de estarmos promovendo um direito penal subterrâneo.
Referências
https://www.britannica.com/event/Mapp-v-Ohio
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordaonum_registro=202202786540&dt_publicacao=29/08/2024
https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?pesquisaAmigavel=+2024%2F0264920-6&b=DTXT&numDocsPagina=10&i=1&O=&ref=&processo=&ementa=¬a=&filtroPorNota=&orgao=&relator=&uf=&classe=&data=&dtpb=&dtde=&tp=T&operador=e&thesaurus=JURIDICO&p=true&livre=2024%2F0264920-6