1. Introdução: A ADPF 635 e a Decisão Consensual do STF sobre a Segurança no Rio de Janeiro
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) em novembro de 2019, emergiu como um marco no debate sobre a segurança pública e a proteção dos direitos humanos no estado do Rio de Janeiro. O cerne da ação questionava a política de segurança pública fluminense, apontando para uma sistemática violação de preceitos fundamentais, especialmente no que tange à elevada letalidade decorrente de intervenções policiais, sobretudo em comunidades e favelas. A complexidade do cenário, marcado pela atuação de organizações criminosas, milícias e desafios socioeconômicos profundos, exigiu do Supremo Tribunal Federal uma abordagem diferenciada.
Reconhecendo a natureza estrutural do problema – ou seja, uma questão complexa, com múltiplas causas e que demanda soluções coordenadas e monitoradas ao longo do tempo –, o STF, sob a relatoria inicial do Ministro Edson Fachin, conduziu o processo de forma dialógica. Foram realizadas audiências públicas e institucionais, ouvindo não apenas as partes (Estado do Rio de Janeiro, Ministério Público Estadual), mas também uma vasta gama de amici curiae ("amigos da corte"), incluindo entidades de direitos humanos, associações de moradores, representantes de vítimas, especialistas em segurança pública, órgãos de classe policial e instituições acadêmicas. Essa amplitude de vozes, como destacado pelo Ministro Fachin, foi essencial para "precisamente a dimensão dialógica e aberta que procuramos imprimir na condução dos afazeres desse processo".
Após quase cinco anos de tramitação e um extenso esforço de construção colegiada, culminando em diversas reuniões deliberativas entre os magistrados, o STF chegou a uma decisão unânime, proferida em formato per curiam – um pronunciamento conjunto que reflete o consenso da Corte. O Presidente do STF, Ministro Luís Roberto Barroso, enfatizou esse esforço: "procuramos encontrar um ponto de consenso cada um fazendo quando necessário alguma pequena concessão, todos preocupados em atender da melhor forma o interesse público de conciliar a proteção dos direitos fundamentais".
A decisão reconheceu avanços importantes, notadamente a "expressiva redução da letalidade policial no Rio de Janeiro" durante a vigência das medidas cautelares anteriormente deferidas no âmbito da própria ADPF. Citando o Ministro Fachin, "o que dizem os fatos é que no período de vigência das medidas cautelares proferidas nesta ação caíram significativamente os índices de letalidade policial". Contudo, o Tribunal também constatou a persistência de "falhas administrativas", a "parcial omissão do Estado" e a consequente "violação de direitos fundamentais". Crucialmente, a Corte também reconheceu "a violação de direitos humanos por parte das organizações criminosas que se apossam de territórios e cerceiam direitos de locomoção da população e das forças de segurança", reiterando que "não há nem pode haver antagonismo entre a proteção de direitos humanos e fundamentais e a construção de políticas de segurança pública compatíveis com a Constituição".
Diante desse quadro, o STF optou por homologar parcialmente o plano apresentado pelo Estado do Rio de Janeiro para a redução da letalidade policial, mas determinou uma série de medidas adicionais e ajustes. O Tribunal afastou, por ora, a declaração de um "estado de coisas inconstitucional", reconhecendo, contudo, um "compromisso significativo por parte do Estado do Rio de Janeiro na cessação das violações mencionadas". Nas palavras do relator, reconhecer esse compromisso é "uma forma de expressar a confiança de que as medidas estruturais ainda necessárias serão de fato tomadas". A decisão, portanto, buscou equilibrar o reconhecimento dos esforços estaduais com a necessidade imperativa de aprofundar as reformas e garantir a conformidade da política de segurança com os ditames constitucionais e os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.
2. Mensuração e Transparência: Aprimorando a Coleta e Publicização de Dados sobre Letalidade
Um dos pilares da decisão do STF na ADPF 635 reside na necessidade premente de aprimorar a coleta, o monitoramento e, sobretudo, a transparência dos dados relativos à letalidade policial e à vitimização de agentes de segurança no Rio de Janeiro. O Tribunal compreendeu que a formulação de políticas públicas eficazes e o controle social e institucional da atividade policial dependem intrinsecamente da disponibilidade de informações precisas, detalhadas e acessíveis. Como ressaltado na leitura do voto condutor pelo Ministro Luís Roberto Barroso, "para a adoção das medidas profiláticas adequadas é preciso ter uma base de dados e um conjunto de informações imprescindíveis".
Nesse sentido, o STF determinou que o Estado do Rio de Janeiro implemente adequações normativas e administrativas para incluir novos indicadores e detalhar os já existentes. Foi determinada "a inclusão de dois novos indicadores que abarquem a) eventos de uso excessivo ou abusivo da força legal e b) eventos com vitimização de civis em contexto de confronto armado com a participação de forças de segurança, mas com autoria indeterminada do disparo". O Tribunal fez a ressalva de que "este segundo indicador não compõe o conceito de letalidade policial", mas sua mensuração é crucial para compreender a dimensão total da violência em áreas de conflito e a segurança da população civil. A criação desses indicadores visa lançar luz sobre situações que, embora não resultem necessariamente em morte, representam graves violações ou riscos, permitindo uma análise mais fina da proporcionalidade no uso da força.
Além de novos indicadores, a Corte exigiu maior detalhamento e publicidade na divulgação dos dados já coletados. Foi determinada a "publicização dos dados desagregados sobre as ocorrências com morte de civis especificando qual a corporação (se polícia civil ou militar), qual unidade ou batalhão, e se o agente envolvido estava em serviço e se o fato ocorreu no contexto de operação policial". Essa desagregação é fundamental para identificar padrões, direcionar ações corretivas e responsabilizar comandos específicos, superando a generalidade que muitas vezes mascara problemas localizados. A mesma exigência de detalhamento foi estendida aos casos de vitimização fatal de agentes: "publicização dos dados desagregados sobre as ocorrências com morte de policial especificando qual a corporação [e] se a vítima estava em serviço".
Para garantir a padronização e a comparabilidade desses dados em nível nacional, o STF também direcionou uma determinação ao governo federal. Ordenou "que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública adote as providências cabíveis junto ao Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (SINESP) para que sejam abertos os campos necessários, viabilizando a inserção por parte de todos os entes federados dos dados desagregados sobre as mortes decorrentes de intervenção policial". Essa medida reforça a importância de um sistema integrado e robusto, capaz de fornecer um panorama nacional fidedigno sobre a letalidade policial, alinhado aos princípios da transparência e do acesso à informação, consagrados na Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação). A publicidade e a qualidade dos dados são, portanto, vistas pelo STF não como um fim em si mesmas, mas como ferramentas indispensáveis para o aprimoramento contínuo da segurança pública, o fortalecimento do controle externo exercido pelo Ministério Público e a participação informada da sociedade civil no debate e na fiscalização das ações do Estado.
3. Protocolos Operacionais em Casos de Morte: Preservação da Cena, Perícia e Investigação
A decisão do STF na ADPF 635 detalhou minuciosamente os protocolos a serem seguidos pelas forças de segurança e órgãos de investigação do Rio de Janeiro nas "hipóteses de homicídio consumado vitimando agentes de segurança pública no exercício da função ou em decorrência dela, bem como de mortes de civis decorrente de intervenção policial, estando ou não o agente em serviço". Essas regras visam garantir a integridade da investigação, a correta produção de provas e a responsabilização por eventuais excessos, assegurando a observância do devido processo legal desde os momentos iniciais da ocorrência.
A primeira e fundamental diretriz é a preservação do local do fato. Conforme determinado pelo STF, "os policiais que primeiro atenderem a ocorrência deverão preservar o local até a chegada do delegado de polícia e providenciar para que não se alterem o estado e conservação das coisas para a realização de perícia". Essa medida, alinhada ao que dispõe o Código de Processo Penal em seu artigo 6º, inciso I, é crucial para evitar a contaminação ou destruição de vestígios. A decisão também estabelece uma cadeia de comunicação imediata: o órgão administrativo central competente deve ser informado, que por sua vez notificará o comando da área, a Corregedoria da respectiva força (Polícia Militar ou Civil) e o delegado de polícia de sobreaviso.
O Ministério Público Estadual, órgão constitucionalmente incumbido do controle externo da atividade policial (Art. 129, VII, CF/88), assume papel central nesse protocolo. A decisão ordena que o MPRJ "deverá ser imediatamente comunicado das ocorrências para que, se entender cabível, determine o comparecimento de um promotor de justiça ao local dos fatos". A regulamentação dessa comunicação direta entre a Procuradoria-Geral de Justiça e a Secretaria de Segurança Pública foi determinada, visando agilizar a atuação fiscalizatória do MP desde o início.
A atuação do delegado de polícia também foi especificada: ele "deverá dirigir-se imediatamente ao local da ocorrência, apreender os objetos que tiverem relação com o fato após liberados pelos peritos criminais", além de "colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias e desde logo identificar e qualificar as testemunhas presenciais".
Paralelamente, a Polícia Técnico-Científica tem o dever de enviar "imediatamente uma equipe especializada para comparecer ao local devidamente preservado para a realização das necessárias perícias". O STF detalhou procedimentos periciais essenciais, como a obrigatoriedade de fotografar os cadáveres na posição encontrada e suas lesões, e determinou que, "nas hipóteses de morte decorrente de intervenção policial, sempre será realizada a autópsia". Estabeleceu-se ainda o prazo máximo de 10 dias para a elaboração dos laudos periciais. Essa ênfase na perícia técnica e na sua autonomia, reafirmada pela Corte à luz de precedentes como as ADIs 6621, 2943, 3309 e 3318, é vista como "condição essencial para que a investigação conduzida pelo Ministério Público possa ser levada a efeito". A preservação efetiva dos vestígios, em linha com padrões internacionais como o Protocolo de Minnesota sobre a Investigação de Mortes Potencialmente Ilegais, passa a integrar a avaliação posterior da legalidade da ação policial.
As Corregedorias das Polícias Civil e Militar também tiveram seu papel reforçado, devendo acompanhar as ocorrências, coletar informações para instruir procedimentos administrativos e concluí-los no prazo máximo de 60 dias (prorrogável uma vez, mediante justificativa). Por fim, todos os inquéritos policiais e procedimentos correcionais instaurados sobre essas mortes devem ser "comunicados imediatamente ao órgão do Ministério Público Estadual que exerça a função de controle externo da atividade policial", garantindo a supervisão contínua pelo Parquet.
4. Tecnologia a Serviço da Fiscalização: Câmeras Corporais, Viaturas e Financiamento
A implementação de tecnologia como ferramenta de controle, transparência e prova foi um ponto central na decisão do STF sobre a ADPF 635. O Tribunal reconheceu os esforços já em andamento pelo Estado do Rio de Janeiro, que "vem instalando equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas fardas dos agentes de segurança com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos". Contudo, a Corte considerou necessário expandir e aprimorar o uso desses recursos, estabelecendo novas determinações complementares.
Uma das principais ordens foi a comprovação, no prazo de 180 dias, da "implantação das câmeras nas viaturas policiais da Polícia Militar e da Polícia Civil, quando não estiverem em atividades investigativas". Adicionalmente, determinou-se a instalação de câmeras "nas fardas ou uniformes dos agentes da Polícia Civil nas hipóteses pertinentes", especificando que a respectiva regulamentação deve abranger "somente os casos em que a Polícia Civil do Estado realiza diligências ostensivas ou operações policiais planejadas".
O STF, contudo, fez uma ressalva importante, afastando "a obrigatoriedade de uso de equipamentos de geolocalização e gravação audiovisual em atividades e diligências investigatórias desempenhadas pela Polícia Civil exclusivamente no exercício da função de polícia judiciária". A justificativa para essa exceção, conforme lido pelo Ministro Barroso, reside no "potencial comprometimento do caráter sigiloso e eficiência dessas atividades e da segurança de policiais e testemunhas". Essa ponderação busca equilibrar a necessidade de transparência em operações ostensivas com a preservação do sigilo essencial para o sucesso de investigações complexas.
Ciente dos custos envolvidos na aquisição, manutenção e armazenamento de dados gerados por esses equipamentos, o STF abordou diretamente a questão do financiamento. A decisão autorizou expressamente "o recebimento de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) pelo Estado do Rio de Janeiro por meio de convênio, contrato de repasse ou instrumento congênere para viabilizar o cumprimento da presente decisão".
De forma inovadora e visando maior agilidade, o Tribunal autorizou excepcionalmente, "na mesma forma que a Lei Complementar 79 de 1994 permite em relação ao Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN)", a "transferência direta de recursos financeiros do Fundo Nacional de Segurança Pública aos fundos específicos de segurança dos Estados [...] com a finalidade de garantir maior celeridade e eficiência à cooperação federativa". Essa modalidade "fundo a fundo", como destacou o Ministro Alexandre de Moraes ao comentar a decisão, é "muito mais rápido do que assinatura de convênio cheio de requisitos".
Os recursos federais poderão ser utilizados para uma gama específica de finalidades, incluindo: "manutenção dos serviços e realização de investimentos de segurança pública, inclusive em inteligência, informação e operações"; "aquisição de material permanente, equipamentos e veículos especializados"; e "políticas de redução da criminalidade e financiamento e apoio a políticas e atividades preventivas, inclusive de inteligência policial, vocacionadas à redução da criminalidade e da letalidade policial".
A liberação desses repasses, no entanto, está condicionada à "apresentação e aprovação de planos associados aos programas específicos de segurança pública", que deverão detalhar a contrapartida estadual, se exigida. A fiscalização do uso desses recursos será realizada por órgão gestor do FNSP, sem prejuízo do controle exercido pelos Tribunais de Contas e pelo Ministério Público. Assim, o STF busca não apenas determinar o uso de tecnologia para maior controle, mas também viabilizar financeiramente sua implementação, estabelecendo mecanismos de financiamento e fiscalização para garantir a efetividade das medidas.
5. Combate ao Crime Organizado e Corrupção: O Papel da Polícia Federal e Órgãos de Controle Financeiro
Reconhecendo a complexa teia do crime organizado no Rio de Janeiro, suas ramificações interestaduais e internacionais, e a grave ameaça representada pela infiltração de agentes criminosos em estruturas do poder público, o Supremo Tribunal Federal (STF), na decisão da ADPF 635, determinou uma atuação mais incisiva de órgãos federais, com destaque para a Polícia Federal. A Corte entendeu que a dimensão dos desafios ultrapassa, em muitos aspectos, a capacidade de resposta isolada das forças estaduais, exigindo uma ação coordenada e especializada em nível federal.
A decisão ordena expressamente a "instauração de inquérito policial pela Polícia Federal para apuração de indícios concretos de crimes com repercussão interestadual e internacional e que exigem repressão uniforme, bem como de graves violações de direitos humanos derivadas das organizações criminosas". O foco dessa investigação deve ser a identificação das "suas lideranças e seu modus operandi, sobretudo [as] movimentações financeiras em atuação no estado do Rio de Janeiro". Essa atuação, que pode ocorrer "em conjunto com as forças de segurança estaduais", deve seguir os termos da Lei nº 10.446/2002, que dispõe sobre infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme.
Indo além, o STF determinou especificamente "à diretoria geral da Polícia Federal de imediata instauração de inquérito específico com equipe de dedicação exclusiva com a finalidade de atuação permanente e dedicada à produção de inteligência e à condução de investigações sobre a atuação dos principais grupos criminosos violentos em atividade no Estado e suas conexões com agentes públicos". O texto da decisão enfatiza a necessidade de reprimir "às milícias, aos crimes de tráfico de armas, munições e acessórios, de drogas e lavagem de capitais, sem prejuízo da atuação dos órgãos estaduais em suas respectivas atribuições". Como ressaltou o Ministro Alexandre de Moraes durante a sessão, essa determinação visa apurar "a relação da milícia, das milícias e do narcotráfico com agentes públicos e agentes políticos do estado do Rio de Janeiro, da infiltração do crime organizado nos órgãos públicos", considerando-a um "passo gigantesco no combate à criminalidade organizada".
Para viabilizar essa atuação robusta, o Tribunal determinou "à União que garanta o incremento necessário da capacidade orçamentária da Polícia Federal, visando a estrutura, equipamentos e pessoal necessários à execução da força tarefa". Reconhece-se, assim, que a complexidade das investigações demanda investimento e estrutura adequados.
Complementarmente, a decisão aciona órgãos de controle financeiro, determinando "ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), à Receita Federal e à Secretaria de Estado da Fazenda do Rio de Janeiro a máxima prioridade para atendimento das diligências relativas ao inquérito policial acima requisitado". O rastreamento do fluxo financeiro é visto como essencial para desarticular as organizações criminosas e identificar seus elos com agentes corruptos. O Ministro Flávio Dino, em sua intervenção, corroborou essa visão, destacando a importância de investigar os fluxos financeiros, pois "o que tem de principal no crime organizado no Rio de Janeiro não está nos bairros populares [...] na verdade está no asfalto, tanto no que se refere ao financiamento do crime organizado e das milícias, quanto no que se refere à lavagem de dinheiro". A decisão do STF, portanto, aposta na inteligência financeira e na repressão qualificada à corrupção como elementos-chave para enfraquecer o poderio do crime organizado no estado.
6. Uso da Força, Reocupação Territorial e Direitos Fundamentais: Novas Diretrizes para Operações Policiais
A decisão do STF na ADPF 635 estabeleceu um conjunto robusto de diretrizes que redefinem parâmetros para a atuação policial no Rio de Janeiro, buscando conciliar a necessidade de combate à criminalidade com o respeito intransigente aos direitos fundamentais. O Tribunal substituiu o critério de "excepcionalidade" para operações policiais, aplicado durante a pandemia de Covid-19, por um enfoque permanente na proporcionalidade do uso da força.
Determinou-se a "observância da lei 13.060 de 2014 [que disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública], declarada constitucional pelo Supremo", cabendo "às próprias forças de segurança avaliar e definir o grau de força adequado a cada contexto, com controle a posteriori". Enfatizou-se a necessidade de observar "a proporcionalidade das ações e, preferencialmente, um planejamento prévio das operações". Embora o planejamento seja a regra, o STF ressalvou "a possibilidade de justificação a posteriori de operações de emergência", cabendo "aos órgãos de controle e ao Poder Judiciário avaliar as justificativas apresentadas". Com isso, a Corte rejeitou o pedido específico para que o Estado se abstivesse de "utilizar helicópteros como plataforma de tiro ou instrumento de terror", entendendo que a avaliação sobre o armamento e táticas empregadas insere-se na análise de proporcionalidade a ser feita pelas forças policiais, sujeita a controle posterior.
Um dos pontos de maior destaque da decisão é a determinação para a elaboração de um plano de reocupação territorial de áreas sob domínio de organizações criminosas. Este plano, a ser desenvolvido pelo Estado do Rio de Janeiro e pelos municípios interessados, deve observar "os princípios do urbanismo social e com o escopo de viabilizar a presença do poder público de forma permanente". O objetivo não é apenas a presença policial, mas a "instalação de equipamentos públicos, políticas voltadas à juventude e à qualificação de serviços básicos". O STF exigiu que o plano tenha "caráter operacional com cronograma objetivo, contando com a alocação obrigatória de recursos federais, estaduais e municipais, inclusive oriundos de emendas parlamentares impositivas". Essa medida visa combater a raiz do problema, enfrentando o vácuo estatal que permite o florescimento do crime organizado e a violação sistemática de direitos, como mencionado pelo Ministro Alexandre de Moraes ao descrever a "nova forma de servidão compulsória" imposta à população nessas áreas.
O Tribunal também estabeleceu regras específicas para operações próximas a escolas, creches, hospitais ou postos de saúde. Embora tenha afirmado que "não há restrições territoriais por perímetro à ação policial", exigiu "o respeito rigoroso às exigências de proporcionalidade no uso da força, especialmente no período de entrada e de saída dos estabelecimentos educacionais". O comando policial deverá "justificar posteriormente, em expediente próprio, as razões concretas que tornaram necessário o desenvolvimento das ações nos referidos horários". O uso dessas instalações como base operacional policial só será permitido "em caso de extrema necessidade", como quando se verifica o uso dos estabelecimentos para atividades criminosas.
Quanto às buscas domiciliares, o STF reafirmou, em linhas gerais, a jurisprudência consolidada no julgamento do Recurso Extraordinário 603.616 (Tema 280 de Repercussão Geral), que trata da inviolabilidade de domicílio (art. 5º, XI, CF/88). Determinou que, no cumprimento de mandado judicial, a diligência "deve ser realizada somente durante o dia", sendo vedado "o ingresso forçado em domicílios à noite". Exigiu-se que a diligência seja "justificada e detalhada por meio da elaboração de auto circunstanciado", que deverá instruir prisões em flagrante e ser remetido ao juiz da audiência de custódia para controle judicial posterior. Contudo, a Corte indeferiu o pedido para que os mandados indicassem de forma mais precisa o local, motivo e objetivo, e reafirmou "a validade constitucional de buscas domiciliares executadas no contexto de flagrância delitiva, inclusive no período noturno", como em casos de uso de residências para depósito de drogas e armas.
Outras diretrizes importantes incluem a determinação para regulamentar, em 180 dias, a presença obrigatória de ambulâncias em operações policiais planejadas com risco de conflito armado, ressalvando operações emergenciais e a indisponibilidade momentânea de veículos. Por fim, determinou-se expressamente aos agentes de segurança e profissionais de saúde que "preservem todos os vestígios de crimes cometidos em operações policiais", de modo a "evitar a remoção indevida de cadáveres sob o pretexto de suposta prestação de socorro e o descarte de peças e objetos importantes para a investigação".
7. Fortalecimento do Controle Externo e Monitoramento: O Papel do Ministério Público e do CNMP
A efetividade das complexas determinações exaradas pelo STF na ADPF 635 depende crucialmente de mecanismos robustos de controle e acompanhamento. Ciente disso, a Corte dedicou parte significativa de sua decisão ao fortalecimento do controle externo da atividade policial, função constitucionalmente atribuída ao Ministério Público pelo artigo 129, inciso VII, da Constituição Federal, e à criação de uma estrutura específica de monitoramento sob a égide do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
O STF reafirmou e detalhou a atuação do MP em casos sensíveis. Determinou que "sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de crime doloso contra a vida, a investigação será atribuição do órgão do Ministério Público competente". Este deverá "buscar a realização de perícias com autonomia", conforme os requisitos de independência técnica já mencionados na decisão. A Corte também enfatizou a necessidade de dar "prioridade absoluta nas investigações de incidentes que tenham como vítimas quer crianças quer adolescentes", em observância ao dever de proteção integral previsto no artigo 227 da Constituição. Para garantir a prontidão nesses casos, determinou-se que o MP designe "um membro para atuar em regime de plantão".
Para municiar o MP com as informações necessárias ao exercício de sua função fiscalizatória, o Tribunal ordenou ao Estado do Rio de Janeiro que "compartilhe e envie ao Ministério Público, por meio do canal por este indicado, os dados e microdados com georreferenciamento sobre operações policiais, registros de ocorrência, laudos periciais e demais informações sobre investigações penais". Esse fluxo contínuo e detalhado de informações é essencial para um controle externo efetivo e baseado em evidências.
Elevando a transparência a um nível nacional e institucional, o STF determinou "ao Conselho Nacional do Ministério Público que, em conjunto com as corregedorias dos Ministérios Públicos locais, passe a publicar relatórios semestrais de transparência com informações sobre o exercício da função de controle externo da atividade policial". Esses relatórios deverão conter "dados objetivos de atuação e resultados, discriminando as unidades responsáveis", permitindo à sociedade e aos próprios órgãos de controle avaliar a efetividade dessa função em todo o país, com foco inicial decorrente desta ADPF.
A principal inovação, contudo, foi a criação de um Grupo de Trabalho de acompanhamento, sob a coordenação do CNMP e presidido pelo Procurador-Geral da República. Este GT, de "caráter administrativo de natureza exclusivamente consultiva", terá a missão de "monitorar o cumprimento e implementação desta decisão", atuando "em conjunto com o Estado do Rio de Janeiro e órgãos competentes". Sua composição deverá garantir a "participação democrática de representantes da sociedade civil".
As funções do GT incluem: coletar dados e informações da população em reuniões públicas (sem prejuízo de reuniões restritas); e divulgar, a cada seis meses, "relatório técnico de monitoramento com os principais indicadores de medição da letalidade e da vitimização policial no estado do Rio de Janeiro". O prazo inicial para este acompanhamento foi fixado em dois anos.
Finalmente, para assegurar que o monitoramento se traduza em ações concretas caso necessário, o STF estabeleceu um mecanismo de execução: "em caso de notícia de descumprimento de decisão do Supremo proferida no âmbito desta ADPF, o grupo de trabalho reportará a magistrado auxiliar designado pelo ministro relator do Supremo Tribunal Federal". A este magistrado auxiliar fica delegada a "competência para a análise de eventuais providências judiciais em fase de execução", com poderes para garantir o cumprimento das determinações, cabendo ao relator original eventuais pedidos de reconsideração. Recomendou-se, ainda, o diálogo do GT com o Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força (Decreto 12.341/2024) para troca de experiências. Essa estrutura busca garantir que a decisão não se perca no tempo, estabelecendo um ciclo contínuo de monitoramento, avaliação e, se necessário, intervenção judicial para assegurar sua plena implementação.