6. O COMPORTAMENTO DA VÍTIMA COMO PRESSUPOSTO PARA APLICAÇÃO DA PENA
Neste tópico serão analisados os variados comportamentos que a vítima pode apresentar na gênese de determinados crimes, pois essa circunstância de caráter judicial possui grande influência sobre a dosimetria da pena, principalmente em face das recentes inovações trazidas pela parcial reforma do Código de Processo Penal Brasileiro.
Outro aspecto importante, prende-se à análise de como prevenir ou evitar o comportamento desviante da vítima no sentido de tornar-se autora de um delito para devolver ou compensar a violência sofrida ou ser alvo de revitimização em face de sua vulnerabilidade.
Embora as primeiras investigações policiais, após a ocorrência do delito, se dirijam exclusivamente contra o delinquente, apontando indícios de sua provável autoria, é bem verdade que muitos crimes somente são consumados em face da decisiva adesão da suposta vítima ao projeto criminoso do meliante, quer voluntária ou imprudentemente, pois é sabido que existem pessoas predispostas, consideradas vítimas ideais, que são vocacionadas e dirigidas para a cena criminosa com maior, menor ou nenhum grau de culpa.
Nos dias atuais, prolifera uma série de denúncias infundadas partidas de pessoas que se apresentam como vítimas das mais variadas formas de crimes. Sucede que, a despeito da conclusão das investigações policiais no sentido de apontar a autoria do indiciado, algumas dessas denúncias, após serem submetidas ao rito do devido processo legal judicial, no que tange à correta colheita das provas e sua valoração, revelam que os fatos não ocorreram conforme a versão da suposta vítima.
Julgamentos recentes de tribunais nacionais e estrangeiros revelam que determinadas pessoas, que foram submetidas a rigorosas investigações policiais e a cruéis acusações pela mídia eletrônica e pela imprensa, foram absolvidas pelas instâncias judiciais, porquanto a versão policial da vítima, bem como os elementos indiciários constantes do inquérito policial, não foram confirmados no âmbito do processo judicial contraditório.
É que, na maioria das vezes, a vítima denuncia o suposto autor da infração, com o intuito de reivindicar para si o ius puniendi in juditio. Acontece que a ninguém é dado o direito de utilizar dos mecanismos legais de controle judicial como instrumento de vingança, porque o monopólio da jurisdição pertence ao Estado.
Verificadas essas questões de grande relevância para a atualidade, examinaremos nos próximos itens, como foi dito alhures, esses pormenores do comportamento da vítima como sujeito passivo da conduta da pessoa apontada como sujeito ativo.
6.1. A Importância do Comportamento da Vítima para a definição da pena adequada e necessária
Como já dito anteriormente, durante muito tempo o comportamento da vítima não foi de importância significativa para o Direito Penal. Nesse contexto, bastava apenas o nexo causal entre a conduta do agente criminoso e o resultado, pouco importando se o comportamento da vítima de alguma forma tivesse influenciado decisivamente para a produção do resultado. As escolas do Direito Penal voltavam seus estudos tão somente ao delito-delinquente-pena, deixando de lado o comportamento da vítima.
Após a Segunda Guerra Mundial, em virtude dos crimes praticados contra a humanidade, muitos criminólogos passaram a estudar a vítima, tentando entender seu comportamento, bem como se este podia de alguma forma influenciar o ato criminoso.
Hodiernamente falar em estudo da vítima é falar em Vitimologia, ciência autônoma que estuda o comportamento da vítima e suas consequências para a consecução do ato criminoso, conforme lecionam nossos doutrinadores:
“A Vitimologia é uma ciência relativamente nova, com origem na década de 50 e tem por objeto o estudo da vítima, mais especificamente a análise de seu comportamento durante a incidência do ato delituoso, com o intuito de esclarecer como se deu a desencadeação do crime, isto é, verificar se a conduta exercida por ela influenciou, de alguma forma, na deflagração do delito39.”
“Tal ciência procura demonstrar a imprescindibilidade de apurar o papel praticado pela vítima, de maneira a checar aspectos freqüentes e costumeiros de sua personalidade, tais como temperamento e impulsividade (MENDELSON apud MOREIRA FILHO)40.”
“Pode-se dizer que até o recente surgimento desse novo ramo jurídico, a vítima se encontrava esquecida das investigações criminais, não se dando muita importância para uma averiguação da verdadeira conduta realizada por ela (OLIVEIRA,1999, p. 53)41.”
Desse modo, ao se estudar o fato criminoso, não se pode expurgar o comportamento da vítima, pois este será de fundamental importância na elucidação do crime e, por conseguinte, na aplicação da pena justa e adequada, tendo em vista que no ordenamento jurídico brasileiro, o comportamento da vítima pode influir na dosagem ou até mesmo isentar o réu de pena, como será estudado posteriormente.
Essa particularidade nos obriga a jamais esquecermos que a vítima, como um dos protagonistas do delito, não pode ser ignorada pelos órgãos da persecutio criminis, a ponto de ser excluída completamente do processo penal. Essa tendência, praticada frequentemente pelos operadores do direito, é péssima e aniquiladora, por que “el excluído no cuenta, está de más, es un descartable que no sirve, sólo molesta.”42
6.2. Classificação das Vítimas
Como dito anteriormente, o criminoso nem sempre atua de forma isolada ao praticar o ato delituoso, tendo em vista que sua conduta pode derivar de uma interação com o comportamento da vítima, havendo uma correlação entre criminoso-vítima-crime. Da observação dessa relação pode-se inferir que:
“... a vítima em nenhum momento contribuiu para a prática do evento típico, ou então, que sua participação (que pode se dar de modo consciente ou inconscientemente, direta ou indireta) foi decisiva para a ocorrência do delito. Em algumas circunstâncias, é possível alegar, portanto, que o criminoso também é um pouco vítima e vice-versa”.43
Nesse contexto para que o órgão julgador encontre a “verdade real”, almejada na elucidação dos fatos e busca por justiça, não pode ele dispensar a análise do comportamento da vítima e sua parcela de influência no fato criminoso, bem como até que ponto tal comportamento pode influenciar na aplicação da pena, pois quanto mais influente na ação delituosa, menor a culpabilidade do criminoso.
Benjamin Mendelsohn44, vitimólogo a quem se deve o termo Vitimologia, classifica as vítimas conforme a correlação da culpabilidade entre o ofendido e o infrator, sustentando que há uma relação inversa entre a culpabilidade do agressor e a do vitimizado, e que a maior culpabilidade de um é menor que a culpabilidade de outro. Mendelsohn conclui que as vítimas podem ser classificadas em três grandes grupos para efeitos de aplicação da pena ao infrator, conforme diagnóstico abaixo:
“No primeiro grupo enquadram-se as vítimas inocentes, as que não concorreram de modo algum para a ocorrência do fato típico, também intituladas de “vítimas ideais”. O segundo são as vítimas provocadoras, as que voluntária ou imprudentemente colaboram com a prática do crime, sendo subdivididas nas que possuem menos culpa que o criminoso, as que estão no mesmo grau de culpa que este (o que ocorre na prática conhecida por roleta russa, por exemplo) e as que são mais culpadas que o delinquente (vítima que estaciona o carro deixa sua porta aberta e com a chave na ignição). Por fim, o terceiro e último grupo estariam as vítimas agressoras, simuladoras ou imaginárias que, na verdade, são pseudovítimas, as únicas responsáveis pelo desencadeamento do crime, o que se verifica nos casos em que se autoriza a legítima defesa.”45
Do enunciado extraímos que há dois tipos de vítimas, as “não-incitadoras”, que pertencem ao primeiro grupo proposto por Mendelsohn, ou seja, aquelas cujo comportamento não teve importância para a consecução do fato criminoso perpetrado pelo delinquente, mas que tão somente são vítimas por caso fortuito, má sorte, infortúnio, azar, coincidência ou mero acaso. A par disso, “só será possível afirmar que a vítima não provocou o crime, depois de se eliminar todas as hipóteses possíveis em que ela poderia ser enquadrada como instigadora do delito. 46
O outro grupo de vítimas são as “incitadoras”, aquelas que de algum modo incitam a ação do criminoso ou mesmo facilitam sua conduta, seja não tomando o devido cuidado ou não oferecendo resistência a sua investida. Pode ocorrer de manterem certo consenso, às vezes inconsciente, quanto à atitude criminosa. Então vejamos:
“Essas vítimas chegam a sê-lo porque inicialmente sua conduta estimulou o iminente delinquente, oferecendo-lhe, [...], uma expectativa de comportamento favorável a desígnios que ela já tinha ou, então, que foram suscitados por essa conduta inicial delas”.47
Cabe, portanto, ao julgador sopesar, através do conjunto probatório dos fatos que lhe chegam ao conhecimento, se a vítima do delito por ele analisado é incitadora ou não-incitadora, se seu comportamento influiu ou não na ação do criminoso. Sem que com isso se queira eximir o criminoso da sua responsabilidade pelos supostos atos praticados, mas antes de tudo, para que se tenha uma real justiça, que ele venha pagar somente pelo mal que de forma consciente tenha causado.
6.3. Visão do Comportamento da Vítima no Direito Penal e Processual Penal Brasileiro
Serão analisadas a seguir as formas que o comportamento da vítima no Direito Penal e Processual Penal Brasileiro podem influenciar na aplicação da pena.
Como circunstância judicial, prevista no art. 59. do Código Penal, o comportamento da vítima é o último item que o Juiz deve analisar para a fixação da pena-base, termo inicial da dosimetria da pena. A redação do mencionado dispositivo confirma essa assertiva, in verbis:
Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
Torna-se evidente quão importante é o estudo do comportamento da vítima em um determinado delito, haja vista que nesta primeira fase de aplicação da pena é que será fixado a pena-base, que servirá de parâmetro para o posterior aumento ou diminuição das duas fases seguintes. Ou seja, qualquer aumento acima do mínimo nesta fase pode acarretar um aumento significativo nas fases posteriores.
Há de se salientar, por oportuno, que o comportamento da vítima nesta fase, também influenciará em outra circunstância judicial, qual seja, a culpabilidade do agente, pois como dito anteriormente, quanto maior o grau de culpa da vítima menor o do agente, e vice-versa.
Na aferição das circunstâncias judiciais, o comportamento da vítima, também é requisito primordial na determinação do regime inicial do cumprimento da pena pelo réu, conforme previsto no art. 33, § 3.º do Código Penal.
O comportamento da vítima também incidirá na segunda fase de aplicação da pena, qual seja, a das circunstâncias atenuantes e agravantes, como atenuante genérica. O art. 65, III, c, do CP, estabelece infra:
São circunstâncias que sempre atenuam a pena:
III – ter o agente:
c) cometido o crime sob a coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob influência de violenta emoção, provocado por ato injusto da vítima.
Aqui se observa que o comportamento da vítima pode atenuar a quantidade da pena do acusado, reduzindo a mesma até o mínimo legal. Ele também pode incidir como causa de redução de pena, analisado na terceira fase de sua aplicação, conforme previsto no art. 121, § 1.º, CP, que trata do homicídio doloso simples (denominado privilegiado), e no art. 129, § 4.º, CP, que trata do crime de lesão corporal, quando o crime é cometido sob a influência de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, podendo o juiz reduzir a pena de um sexto a um terço. Nas duas hipóteses, a redação dos parágrafos supracitados utiliza a expressão “o juiz pode”, contudo penso que o correto seria ter utilizado “o juiz deve”, porque o reconhecimento da causa de redução ou de diminuição da pena impõe ao magistrado seu deferimento compulsório.
Há também situações em que o comportamento da vítima é tão ignóbil, que seria uma injustiça condenar a conduta do acusado. É que seu comportamento, embora esteja tipificado, é justificado pelo ordenamento legal, que não o considera antijurídico. É o caso da legitima defesa prevista no art. 25. do CP: “Entende-se em legítima defesa48 quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”
Neste caso, o comportamento da vítima não é mensurado com o efeito de interferir na quantidade de pena aplicada, mas na sua não aplicação. A conduta exercida pelo suposto acusado em relação ao comportamento inicial que a “suposta vítima” tomou contra este não é uma figura típica, pois está amparada pela legislação penal brasileira (e também pela argentina) como causa excludente de ilicitude ou da antijuridicidade, como já dito anteriormente.
Assim, pode-se observar que a análise do comportamento da vítima é pressuposto, antes de tudo, fundamental para uma correta e adequada aplicação da pena, para que o Direito Penal não seja um instrumento do terror e que os julgadores não contribuam para um brutal e desnecessário sofrimento do criminoso, forçando-o a cumprir pelos atos praticados (caso sejam antijurídicos) além do que seja necessário e suficiente para a sua punição.